domingo, 23 de outubro de 2016

Lula e Trump, dupla improvável - HÉLIO SCHWARTSMAN


FOLHA DE SP - 23/10

O que Luiz Inácio Lula da Silva e Donald Trump têm em comum? Além de serem ambos homens brancos, eles são autênticos representantes do que a imprensa já chama de era pós-verdade que não hesitam em colocar seus projetos pessoais acima das instituições.

Acossado pela Justiça e sem conseguir explicar seu relacionamento com empreiteiras, Lula elabora uma sofisticada narrativa, com toques de surrealismo, segundo a qual foi montado um enorme complô conservador para bani-lo da política e eliminar um projeto de governo popular.

O problema é que, para essa versão parar em pé, é preciso que Polícia Federal, Ministério Público e Justiça, além da imprensa, tenham se mancomunado com o intuito de persegui-lo, o que parece pouco plausível, em especial quando se considera que foram governantes do PT que indicaram os nomes que hoje compõem a cúpula dessas instituições.

Já Trump, com a campanha atravessando uma crise e em queda livre nas pesquisas, recusa-se a assegurar que aceitará o resultado do pleito de novembro, caso seja derrotado por Hillary Clinton. O que ele coloca em questão é a própria legitimidade do processo eleitoral dos EUA. Nem Al Gore, que perdeu a Casa Branca para George W. Bush na ultracontrovertida disputa de 2000, decidida por pouco mais de 500 votos na Flórida, se negou a reconhecer a derrota.

É verdade que nem Lula, nem Trump chegaram a dizer com todas as letras que se consideram acima das instituições, mas o simples fato de seus discursos apontarem nessa direção já preocupa. Nem a democracia, nem as instituições de Estado são perfeitas. Ao contrário, padecem de graves problemas. Mas não é absurdo afirmar que boa parte do que deu certo no Ocidente nos últimos dois séculos se deve ao fato de que aprendemos a respeitar processos institucionais, mesmo admitindo que possam conter erros. É essa virtude que a improvável dupla ameaça.

Juro começa a cair, devagar - SAMUEL PESSÔA ( pauta Helene)


FOLHA DE SP - 23/10

O Banco Central reduziu a taxa básica de juros, Selic, de 14,25% ao ano, nível que perdurava desde julho de 2015, para 14%. Redução mínima de 0,25 ponto percentual. A última vez que houve queda da taxa básica foi em outubro de 2012, há quatro anos.

Nesses quatro anos em que o BC foi obrigado a realizar esse longo ciclo de aumento de juro, a inflação média foi de 7,5% ao ano, três pontos percentuais acima da meta inflacionária.

De 2007 até 2014, a inflação acumulada de administrados foi de 30% aproximadamente, ante inflação de preços livres de mais de 60%. Houve forte controle dos preços da gasolina e de tarifas no período.

Ou seja, boa parcela da inflação que tivemos nos últimos dois anos foi devolução dos preços administrados que estiveram artificialmente contidos por causa de equívoco de política econômica.

É comum a heterodoxia criticar a política monetária de juros elevados, uma vez que em boa medida a inflação é de bens administrados: a recomposição das tarifas no ano passado produziu inflação de 18%, o que explica 4,5 pontos percentuais da inflação de 10,7% de 2015.

Evidentemente, os técnicos do BC não são tão limitados quanto sugerem os heterodoxos. Eles sabem que não se combate choque de oferta com elevação dos juros. Mas eles sabem que se combate com elevação dos juros os efeitos secundários do choque de oferta. O que é isso?

Suponha que haja recomposição das tarifas que eleve a inflação do ano em 4,5 pontos percentuais. Este aumento da carestia será repassado para os demais preços. Se não houver um combate duro e direto ao repasse, a inflação ganhará dinâmica própria, a inércia aumentará e a inflação se estabilizará em um novo patamar.

Ao longo do final dos anos 70 e da primeira metade dos anos 80, esse fenômeno ocorreu a cada desvalorização do câmbio: a inflação sempre se estabilizava, em seguida à desvalorização, em um patamar superior ao precedente.

É exatamente pela facilidade com que a inflação adquire inércia que não se pode brincar com o dragão. E é exatamente por esse motivo "que uma inflaçãozinha de 15% ao ano", como defendia uma ministra da Casa Civil da década passada, faz muito mal para a economia, para a sociedade e principalmente para os mais pobres.

Há sinais de que a inflação vem cedendo. No entanto, como apontou o comunicado do Banco Central, há sinais também de que a desinflação de serviços, que vinha bem até junho, arrefeceu no terceiro trimestre. Trimestre horroroso para a economia: a recuperação da atividade rateia e a desinflação de serviços arrefece.

Assim, frente a todos os riscos de surgir forte resistência dos serviços, penso que o Banco Central continuará com atitude mais cautelosa até o primeiro trimestre de 2017, quando teremos melhor noção da extensão do processo de desinflação dos serviços.

O passado recente nos ensinou mais uma vez que o experimento tentado a partir de meados de 2011, de baixar a taxa básica de juros na marra, sob a hipótese de que o juro elevado representa equilíbrio ruim e conspiração da Faria Lima com o Leblon, não se sustenta.

Os juros básicos de nossa economia são muito elevados porque nos últimos 20 anos a taxa de crescimento do gasto primário do setor público foi o dobro da taxa de crescimento do PIB real. Resultado da baixíssima capacidade de poupança pública, o que pressiona os recursos e, portanto, a inflação.

Governar será o próximo teste - ROLF KUNTZ, Estadão


ESTADÃO - 23/10

Orçamento e PEC 241 são a receita do bolo. Falta ver se o governo saberá cozinhar



Governar será o próximo desafio para o presidente Michel Temer e seus ministros, se o Congresso trabalhar direitinho, sem muitos truques, e aprovar para o próximo ano um Orçamento parecido com aquele proposto pelo Executivo, com despesa corrigida apenas pela inflação e déficit primário, isto é, sem juros, de até R$ 139 bilhões. A primeira condição para a mudança fiscal, a aprovação do limite para o aumento de gastos, vem sendo cumprida. A Proposta de Emenda Constitucional 241, a PEC do Teto, passou pela primeira votação na Câmara. A segunda deve ocorrer em poucos dias. Se der tudo certo, o assunto estará resolvido no Senado antes do fim do ano. É um cenário positivo, mas ainda é preciso algum otimismo para imaginar uma tramitação normal da proposta de lei orçamentária, sem mágicas e sem distorções. Será complicado, já se sabe, acomodar as despesas no limite previsto. Cortes serão necessários para compensar um espaço maior para saúde. O truque de aumentar a previsão de receita, usado habitualmente pelos parlamentares há muitos anos, está fora da pauta. Nem teria sentido, porque a restrição, agora, está no lado da despesa.

E se o governo gastar, neste fim de ano, mais que o previsto na última revisão das contas? Nesse caso, a base de cálculo será aumentada. A ideia já circulou no Parlamento. A receita de impostos e multas da repatriação de recursos – há quem fale em R$ 80 bilhões – poderia, quem sabe, permitir um dispêndio maior em novembro e dezembro. Se a correção for feita sobre essa base, a programação para 2017 poderá ser menos severa, com uma folga um pouco maior para emendas apresentadas por deputados e senadores. Mas o governo, segundo também se especula, poderá aproveitar aquele dinheiro extra para uma limpeza mais ampla de restos a pagar. É difícil imaginar uma escolha mais prudente que essa.

De toda forma, dois pontos parecem claros. Primeiro, a seriedade fiscal continua longe de ser uma obsessão dos políticos brasileiros, ou da maior parte deles. Segundo, usar qualquer despesa extra para ampliar a base de cálculo será uma irresponsabilidade, se essa despesa tiver sido coberta por uma receita excepcional. A mera consideração dessa hipótese, noticiada nos últimos dias, deveria bastar para mostrar a distância entre os velhos costumes, ainda muito vivos, e as propostas de maior responsabilidade na administração das finanças oficiais.

Se o Orçamento sair de acordo com o melhor figurino, os maiores problemas de 2017 ainda nem terão começado. Para manter no limite de R$ 139 bilhões o déficit primário do governo central, será preciso garantir a receita de R$ 1,41 trilhão, ou 20,66% do PIB projetado para o ano. Controlar as despesas será fundamental, é claro, mas a contenção será complicada. O resultado final dependerá provavelmente mais da arrecadação que do freio nos gastos.

Nada garante a receita projetada. O governo estima para o próximo ano um crescimento econômico de 1,60%, depois de uma contração de 3% em 2016. Os números são muito parecidos com aqueles coletados entre instituições financeiras e consultorias na pesquisa Focus, do Banco Central (BC). As medianas das projeções apontavam recuo de 3,19% neste ano e expansão de 1,30% no próximo. Bem menos otimistas, os técnicos do Fundo Monetário Internacional (FMI) calculam para 2017 um crescimento de 0,5%. Esse resultado, em todo caso, é melhor que a estimativa anterior, divulgada em julho, de expansão zero.

Mesmo um crescimento modesto, de apenas 1,60%, dependerá de um impulso inicial difícil de prever neste momento. Nos três meses terminados em agosto o Brasil abrigou 12 milhões de desempregados e, além disso, mais de 4 milhões de pessoas subocupadas, isto é, com trabalho considerado insuficiente. Qualquer melhora do consumo será quase certamente muito limitada, nos primeiros tempos. A exportação poderá dar alguma ajuda, mas com certeza limitada, porque a indústria continua com baixo poder de competição. O investimento industrial deverá continuar deprimido, porque o setor opera com um terço de capacidade ociosa.

O governo terá dois motivos muito fortes, nesse quadro, para negociar concessões na infraestrutura e na exploração de petróleo e gás. O primeiro, e mais óbvio, será o interesse em movimentar grandes investimentos em áreas de utilidade pública. Pelo tamanho, esses empreendimentos poderão criar empregos e movimentar negócios em vários setores – material de construção e máquinas, por exemplo. O segundo motivo será de ordem fiscal. A proposta de Orçamento inclui uma previsão de R$ 24 bilhões de receita proveniente dessas licitações.

Não se pode, é claro, descartar a hipótese de uma história diferente, com o estímulo inicial derivado em boa parte de uma inesperada reativação do consumo. Vários fatores poderão combinar-se, mas, a julgar pelos dados hoje disponíveis, o empurrão mais importante dependerá da atração de capitais para a infraestrutura. Para isso o governo terá de provar, na condução dessa política, um realismo e uma competência quase nunca exibidos pela administração anterior. Se essas qualidades serão mostradas de fato pelo presidente e por sua equipe ministerial só se saberá nos próximos meses.

Se o ajuste avançar e as pressões inflacionárias cederem de fato, o BC poderá continuar cortando os juros e criando condições de crédito mais favoráveis à retomada. Os bons efeitos serão passageiros, no entanto, assim como a confiança na autoridade monetária, se o afrouxamento da política depender do voluntarismo.

Mas o desafio de governar deverá ir muito além da gestão fiscal do próximo ano e da reativação inicial da economia. Será preciso muito empenho para racionalizar a gestão e torná-la eficiente. Os maiores obstáculos serão políticos.