domingo, 9 de outubro de 2016

O que é voto válido? - MERVAL PEREIRA


O GLOBO - 09/10

Sem falar nas abstenções, que bateram recordes em várias capitais do país, nas recentes eleições municipais houve também uma enxurrada de votos brancos e nulos, que são considerados inválidos pela Justiça Eleitoral. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), numa jurisprudência do século passado, considera que votos nulos não existem, "é como se nunca tivessem sido dados".
Essa interpretação mais parece uma alienação dos especialistas em lei eleitoral do que uma decisão baseada em alguma boa base técnica. Ignorar o recado que as urnas enviaram aos nossos políticos, considerando que os votos nulos nunca existiram, é um reflexo na legislação oficial da leniência com que tratamos nossas mazelas político-partidárias.
Os votos em branco eram considerados válidos até a Constituição de 1988, quando também entraram na lista dos não-votos, que não influem no resultado das eleições. Na eleição municipal de domingo passado, houve o maior índice de votos brancos e nulos no Rio de Janeiro desde a implantação das urnas eletrônicas, em 1966.
Foram 204.110 votos em branco e 473.324 votos nulos. A taxa de nulos em São Paulo foi de 7,35% (516 mil votos). O percentual de votos brancos para prefeito de São Paulo foi de 5,29% (367 mil), o maior índice desde a eleição de 2012. O interessante é observar que a partir das urnas eletrônicas, o voto em branco, embora não válido, tem uma tecla só dele.
Já o voto nulo exige que o eleitor digite um número que não está registrado e o confirme. É preciso, pois, ter uma informação que não está dada na urna eleitoral, para confirmar um voto nulo. Quando se digita um número inexistente, a urna informa que a escolha está errada. Mesmo assim, e com um barulho diferente que revela seu voto, você tem que confirmar o erro para anular seu voto.
Há muito já se sabe, embora ainda existam dúvidas, que mesmo com mais de 50% de votos nulos, uma eleição continua válida, pois o critério de votos válidos despreza os nulos e em branco. A Lei Eleitoral manda convocar novas eleição em caso de votos inválidos, mas se refere à votação do candidato vencedor anulada por irregularidades descobertas, e não dos votos anulados pelo próprio eleitor.
Os votos nulos e brancos acabam se constituindo manifestação de descontentamento do eleitor sem qualquer influência no resultado final. Na verdade, quanto mais votos inválidos, menor a quantidade de votos que um candidato precisa para vencer a eleição. É o que fez Freixo chegar ao segundo turno com apenas 16% dos votos válidos, (o que representa muito menos do total de votos) e Marcelo Crivela chegar em primeiro com menos votos que os nulos e em branco, e as abstenções.
A decisão dos constituintes de excluir nulos e brancos dos votos válidos em uma eleição é ir de encontro ao desejo do eleitor, já que, como temos a obrigatoriedade de comparecer às urnas, quem escolhe essa maneira de votar está revelando sua insatisfação com a situação política, ou pelo menos com os candidatos apresentados.
A abstenção pode ter inúmeras razões além do descontentamento do eleitor, mas a decisão de anular o voto, ou de votar em branco, é inequivocamente um protesto do eleitor. Não validar o voto nulo e o em branco é retirar o direito do eleitor de expressar seu pensamento na urna, especialmente o que anula o voto, pois não há uma tecla específica para o ato.
Já houve época em que o voto em branco era interpretado como um voto de conformismo do eleitor, enquanto o nulo era o voto de protesto. Já não sei se essa interpretação é correta nos dias de hoje, pois a urna eletrônica facilitar o voto em branco e dificulta o voto nulo.
O cientista político e historiador José Murilo de Carvalho tem uma definição que considero perfeita sobre essa celeuma. Escreveu ele certa vez: "É democrático combater a prática do voto nulo. É democrático defender a prática do voto nulo. É um desrespeito à democracia desqualificar o voto nulo".

O 'AT' e o 'DT' - ELIANE CANTANHÊDE, OESP (sobre o Teto)


ESTADÃO - 09/10

Temer dá sua maior cartada nesta semana, mas a Lava Jato continua



A votação do teto de gastos públicos, principal item da agenda política desta semana, tende a ser um divisor de águas do governo Michel Temer. Pela ansiedade no Planalto, a efervescência no Congresso, o envolvimento direto de Henrique Meirelles e a ofensiva política e midiática do próprio Temer, a expectativa é de AT e DT: “Antes do Teto” e “Depois do Teto”.

Até aqui, o “Fora, Temer”, a desconfiança da população, a economia estagnada, os empregos evaporando, as críticas e as concessões políticas para aprovar propostas essenciais contra a crise que Dilma Rousseff criou e não teve força política nem competência para frear. O melhor exemplo dessas propostas é a meta fiscal, mas essa não foi a única vitória do novo governo no Congresso.

Depois da aprovação do teto, possivelmente nesta terça-feira, Temer parece convencido de que far-se-á (estilo dele...) a luz: o mercado vai cair de amores pelo governo, os investimentos virão aos borbotões, deputados e senadores serão menos vorazes, a imprensa ficará menos cética, a população vai olhar para ele com novos olhos. E tudo isso vai desembocar na recuperação da economia e dos empregos.

É preciso combinar direitinho com todos esses russos para sair de um ambiente tão sombrio para um outro tão solar, além de rezar bastante para que a Lava jato não afogue um ministro daqui, outro dali. Posta a ressalva, a vida do governo tende a ficar bem melhor quando, e se, a proposta de emenda constitucional (PEC) que estabelece um teto de gastos por 20 anos for aprovada. É o aval para a volta da responsabilidade fiscal e a normalização da vida econômica – logo, da vida nacional.

É preciso 306 votos, mas nas contas palacianas o projeto já tem 350 e pode engordar para 380, porque Temer não poupou calorias: tomou café da manhã com governadores, almoçou com jornalistas, jantou com parlamentares e hoje mesmo abre as portas do Alvorada para uma ceia de 300 talheres para deputados e suas mulheres já estarem em Brasília amanhã cedo.

Por falar nisso, Temer não gosta nada quando lê, ou ouve, que o governo “usa” a bela e jovial primeira-dama Marcela para amenizar a sisudez e o machismo da equipe (ou do próprio Temer?). Mas o fato é que Marcela adentrou o espaço político com o Criança Feliz e vai com o marido à Índia e ao Japão, enquanto cuida de um outro símbolo da Presidência: a mudança do Jaburu para o Alvorada.

No DT, também é prevista uma relação cada vez mais institucional com movimentos que estão no lado oposto. Eliseu Padilha, da Casa Civil, já recebeu o MST e depois Guilherme Boulos, do MTST, líder em ascensão da esquerda urbana. Primeiro resultado: Temer vai liberar todos os documentos de posse de terra que estavam engavetados com Dilma. E estuda-se um elo entre MTST e o Minha Casa Minha Vida.

Tudo muito bem, tudo muito bom, mas... a Lava Jato continua. Temer ganhou gás com a eleição municipal (que furou o balão do PT) e pretende voar alto com a aprovação do seu principal projeto, mas Justiça, MP, PF e delatores não mudarão um tico do AT para o DT. Logo, o governo deve caminhar cada vez mais desenvolto, mas com a Lava Jato nos calcanhares. Ou melhor, nos calcanhares de todo o mundo político.

Paz. O presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, agora Nobel da Paz, mandou três recados para Lula e Dilma numa entrevista que me deu em 2010: a guerrilha era um problema interno da Colômbia, não aceitava mediação brasileira nem da Unasul e reclamava que o Brasil (enfim) declarasse as Farc como “grupo guerrilheiro”. “A única forma de abrir algum diálogo com eles (as Farc) é abdicarem de ações terroristas, e o Brasil e o mundo precisam compreender isso”, alertava. Assim foi feito. Parabéns a Santos!

Incômodo com Clara - SAMUEL PESSÔA


FOLHA DE SP - 09/10

O Brasil é um país desigual, injusto e de renda média baixa. A nossa tendência é sempre achar que a culpa é do outro: as multinacionais, ou, simplesmente, o capital.

Não há, no entanto, nenhuma evidência de que o Brasil tenha sido explorado por esses agentes. Os juros da dívida externa e a remuneração do investimento estrangeiro são equivalentes aos que ocorrem nos demais países.

Os bancos seriam outro candidato. No entanto, aproximadamente metade do sistema bancário brasileiro é público. Além disso, o Imposto de Renda sobre os seus lucros, incluindo a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, é de 50%.

Finalmente, se a sua rentabilidade fosse tão elevada com se pensa, diversos bancos estrangeiros, como o HSBC, no ano passado, e o Citibank, agora, não estariam deixando o país.

O Brasil possui uma elevada carga tributária em comparação com países em semelhante estágio de desenvolvimento, que prejudica o crescimento econômico. No entanto, a nossa oferta de serviços públicos decepciona, incluindo a capacidade de construir a infraestrutura física: portos, estradas, metrôs na grande cidade e saneamento básico.

Como argumentei há duas semanas na coluna "Aquarius", várias distorções fazem com que parcela significativa dos impostos seja utilizada para transferir recursos a indivíduos que pertencem muitas vezes à elite da distribuição de renda. O caso mais claro é o gasto previdenciário, que atinge 13% do PIB (Produto Interno Bruto) ante gasto de 5 ou 6% em países com a mesma pirâmide demográfica.

Há inúmeras distorções: os créditos subsidiados do BNDES; universidade pública gratuita; os regimes tributários especiais, lucro presumido e simples; as aposentadorias especiais no serviço público; aposentadorias aos 50 anos; baixas alíquotas do imposto sobre herança; acúmulo de pensão por morte com a própria aposentadoria etc.

O resultado dessas distorções é a baixa capacidade de poupança do setor público, fato que está na raiz dos elevados juros reais necessários para segurar a pressão inflacionária, e, portanto, no elevado custo de rolagem da dívida pública. Este, portanto, é consequência, e não causa, para desespero daqueles que desejam achar um responsável externo pelos nossos males.

Em muitos casos cada uma das distorções se justifica. Encerram benefícios obtidos na forma da lei, que, muitas vezes, requerem elevado sacrifício individual. Porém, os sacrifícios individuais não invalidam que esses programas foram subsidiados com expressivos recursos da sociedade, em muitos casos para grupos entre os 5% mais ricos.

A justificativa caso a caso dos direitos e benefícios individuais não garante que o resultado agregado seja sustentável e socialmente justo. Ignorar as restrições econômicas e não priorizar com mais ênfase a justiça social são os pecados de nossas escolhas coletivas.

No final das contas, escreveu meu amigo Marcos Lisboa há 15 anos, como no caso de Édipo, descobrimos que os responsáveis pela nossa miséria somos nós mesmos, os 5% mais ricos que se consideram classe média e objeto de inúmeras das distorções. Clara, a heroína de "Aquarius", é a nossa versão de Édipo.

Nos próximos anos a sociedade terá de fazer um acerto de conta consigo mesma. Se não formos bem-sucedidos, retornaremos aos anos 80.