Estatuto do Nascituro – qual é o problema?
Tramitação não avança porque seria uma barreira para projetos abortistas no Congresso
*Dom Odilo P. Scherer
08 Outubro 2016 | 03h05
Desde 2005 a Igreja Católica no Brasil, por iniciativa da assembleia-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dedica a primeira semana de outubro à valorização e defesa da vida e, no dia 8, comemora-se o Dia do Nascituro. Durante essa semana também é lembrado São Francisco de Assis, patrono da natureza e dos animais. No centro dessas iniciativas está a valorização da vida em todas as suas formas.
O papa Francisco dedicou ao cuidado da “casa comum” sua encíclica Laudato Sì (2015), na qual trata da natureza como o ambiente da vida, que abriga e sustenta todas as formas de vida; por isso, precisa ser respeitada e zelada pelo homem, para que ela preserve a sua rica diversidade e não venha a ser destruída. E que seja espaço de solidariedade e de fraternidade, onde todos tenham acesso aos bens necessários para viver.
O texto do papa, mais do que uma “encíclica verde”, é um documento de cunho social e ético, que trata das relações do homem com a natureza e das relações sociais no contexto da “casa comum”. O cuidado prudente da natureza, ou o seu descuido, não traz consequências apenas para a própria natureza, mas também para o homem. Por isso, o pontífice traz na encíclica os conceitos de ecologia humana, relativos ao ambiente dignificante para a vida humana, e de ecologia do homem, referido à natureza do próprio ser humano, que deve ser respeitada, e não manipulada ou deturpada.
Quando se trata da defesa da vida, penso, acima de tudo, na dignidade e inviolabilidade da vida humana e na promoção de tudo o que possa evitar agressões a ela. O ser humano é parte da natureza e depende dela; ao mesmo tempo, ele ocupa uma posição absolutamente única no conjunto dos seres deste mundo; e isso também lhe confere uma responsabilidade ímpar em relação ao cuidado da casa comum e dos outros homens.
Persistem as agressões contra a vida humana e até assumem formas cada vez mais preocupantes. As guerras matam, ferem e desalojam, obrigando populações inteiras a migrar; e onde não há conflitos declarados, como no Brasil, as várias formas de violência matam mais que as guerras em andamento nos vários países. E há também as vítimas das injustiças sociais, da fome ou de doenças e da falta de condições de vida digna e saudável.
E quantas são as vidas humanas excluídas do seu direito de ver a luz! No Supremo Tribunal Federal (STF) está pendente uma decisão sobre a legalidade do aborto de bebês com microcefalia, o que poderá vir a configurar-se como mais um caso de aborto “legal” no Brasil. As questões envolvidas não são poucas, como o conforto da mulher gestante e de sua família, a frustração dos sonhos que toda mãe tem em relação ao filho que gera, o ônus social decorrente do cuidado de pessoas não totalmente autônomas... Mas está em jogo, sobretudo, a decisão de tirar a vida de um ser humano, que teve a infelicidade de ser afetado no seu desenvolvimento cerebral por causas absolutamente alheias à sua responsabilidade. Além do mais, coloca-se o problema do diagnóstico seguro para cada caso, pois, pelo que se sabe, a microcefalia não é passível de ser constada com segurança antes de um estágio avançado da gravidez. Na cultura tecnocrática e da eficiência, temos dificuldades para lidar com as deficiências e fragilidades humanas!
Os “defeituosos” não terão o direito de viver? Só os sadios, os perfeitos, os que saíram conforme a encomenda?
Se o aborto de bebês com microcefalia for aprovado, será aberta uma porta perigosa para a eugenia, que dificilmente poderá ser, depois, fechada de novo. Quais seriam as próximas categorias de fetos ou bebês defeituosos a serem incluídos na lista dos “legalmente abortáveis”?
Alega-se que outros países já resolveram essa questão pela legalização ampla e generalizada do aborto, conforme desejo da gestante ou de terceiros. Infelizmente, isso é verdade, mas não deveria ser tomado como bom exemplo, ou sinal de avanço jurídico e moral a ser imitado. Regimes totalitários, ao longo da História, recorreram à eugenia para “depurar” a população, mas isso tem sido rejeitado pelo senso moral dos povos civilizados.
No Brasil ainda falta uma legislação específica que valorize e tutele a vida humana antes do nascimento. A Constituição brasileira consagra o direito inviolável à vida e no capítulo quinto, inciso décimo, reconhece que a vida humana começa na concepção; apesar disso, a violação do direito à vida de seres humanos ainda por nascer é tolerada e até promovida por projetos que pretendem tornar legal o aborto, quer de maneira generalizada, quer de maneira pontual, para situações específicas.
No Congresso Nacional tramita o Estatuto do Nascituro há vários anos, mas não avança, e os motivos são conhecidos: ele seria uma barreira para projetos abortistas, que também não faltam no Congresso. O estatuto poderia ser um válido instrumento de proteção da vida nascente e causa estranheza constatar que a legislação brasileira não tenha avançado nessa linha.
Também falta uma legislação adequada sobre a manipulação genética e mesmo de embriões. Essas questões, relativamente novas, mas complexas do ponto de vista ético, deveriam merecer uma atenção especial dos legisladores.
O Estatuto do Nascituro não anularia a legislação vigente, nem o Código Penal; e não deixaria de proteger a mulher gestante. Ao contrário, traria maior segurança a ela, dando-lhe garantias para uma gravidez digna e segura.
O equívoco praticado com frequência consiste em opor a gestante ao seu bebê e, com facilidade, é negado o direito deste para resguardar o direito da mãe. O Estado tem a obrigação de cuidar de ambos e de proteger, mais ainda, a parte mais frágil e indefesa.
*Cardeal-arcebispo de São Paulo