quinta-feira, 21 de abril de 2016

Dilma deve R$ 400 mi a SP e Haddad pode depender de eventual gestão Temer


BRUNO RIBEIRO - O ESTADO DE S. PAULO
21 Abril 2016 | 05h 00 - Atualizado: 21 Abril 2016 | 05h 00
Gestão usou recursos do Tesouro municipal, que seriam devolvidos quando verba do PAC chegasse; agora, não há mais crédito
SÃO PAULO - A dívida do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo Dilma Rousseff, chega a R$ 400 milhões com a Prefeitura de São Paulo. Na expectativa de que o montante fosse reembolsado, a gestão Fernando Haddad (PT) gastou recursos próprios para executar seus planos - é como fazer obras e usar o “cheque especial”. Com a queda da arrecadação municipal e a inflação em alta, as reservas municipais neste ano só serão suficientes para concluir projetos já iniciados. Agora, Haddad poderá ficar dependente de um eventual governo Michel Temer para cumprir suas metas.
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A Prefeitura usou recursos do Tesouro municipal, que seriam devolvidos aos cofres públicos quando a verba do PAC chegasse. Usado em outros municípios e Estados, o “cheque especial” da capital, porém, estourou e não há mais crédito para fazer novos investimentos públicos. Ficou de fora, por exemplo, a construção de 150 quilômetros de ônibus, prometidos em 2012, durante a campanha eleitoral de Haddad.
“Não sei qual vai ser o comportamento (de um governo Temer). Primeiro, teria de ter o impeachment. Na eventualidade do impeachment, vai ter de ser anunciado o que será feito. Não sei qual será o ministro da Fazenda, qual será o plano econômico, se vai querer gerar emprego, aumentar o desemprego. Não sei. Depende da política econômica”, afirmou o prefeito, ao ser questionado sobre riscos de mais atrasos nos repasses do PAC. 
“O atraso no fluxo (de pagamentos do PAC) não é uma questão de São Paulo, é uma questão do Brasil todo. Há vários entes federativos na mesma situação”, disse Haddad, que já havia feito cobranças ao governo Dilma por mais celeridade nos repasses, ao lembrar que outros entes também fizeram obras nesse “cheque especial” dos recursos.
O contingenciamento de verbas do PAC começou no ano passado, diante da desaceleração da economia, antes do agravamento da crise política. “Os reembolsos não estão acontecendo, mas isso não nos impede de concluir obras em curso. O que inviabilizaria é a abertura de obras que estão licitadas e licenciadas e aguardam o reembolso para serem iniciadas”, afirmou Haddad. 
O Ministério das Cidades, gestor da maior parte do PAC, informou, em nota, que “está fazendo todo o esforço para que os repasses sejam feitos no menor prazo possível, atendendo às medições das obras e conforme a liberação orçamentária do governo federal”.
Orçamento. A receita da Prefeitura de São Paulo, no primeiro trimestre deste ano, teve uma queda real - corrigida pela inflação - de 8,6% em relação ao mesmo período do ano passado. Até março, foram arrecadados R$ 12,5 bilhões, ante R$ 13,6 bilhões em 2015. 
O secretário municipal de Finanças, Rogério Ceron, destacou a queda na arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). “Isso é resultado da recessão que atinge o Estado desde 2014, com queda maior na indústria”, disse. O repasse do ICMS, que é feito pelo governo do Estado aos municípios, caiu cerca de 2%. Para evitar cenário pior, a Prefeitura fez no ano passado três programas de renegociação de dívidas e de recadastramentos que contiveram tombos também no Imposto sobre Serviços (ISS) e no Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), que também caíram.
Ceron lembrou que a situação estaria pior caso a Prefeitura e a União não tivessem feito acordo para renegociação da dívida pública. 
No primeiro trimestre deste ano, a cidade já deixou de pagar cerca R$ 300 milhões ao governo federal - de R$ 600 milhões no primeiro trimestre de 2015 para R$ 300 milhões neste ano. “É uma economia de quase R$ 100 milhões por mês”, disse. 
Em alta. SP teve aumento de 41% na receita com multas
Receitas com multa e taxa da luz disparam 
Enquanto quase todos os impostos e todas as taxas registram queda na arrecadação neste ano, se comparadas a 2015, dois tipos de arrecadação registram aumento expressivo. Explodiram na capital os recursos da Contribuição para Custeio da Iluminação Pública (Cosip), a taxa da luz, e das multas de trânsito. 
A receita das contribuições, para onde vai a Cosip, cresceu 59% no primeiro trimestre deste ano. O valor é resultado do aumento da taxa de luz, que foi reajustada em 76% no fim do ano passado - de R$ 5,90 para R$ 9,50. Esse valor vem diretamente na conta de energia de todos os cidadãos. 
Já a arrecadação das multas de trânsito saltou de R$ 224,1 milhões para R$ 316,9 milhões na comparação entre janeiro e março de 2015 e 2016, um aumento de 41%. A variação acontece em meio ao aumento das restrições ao limite de velocidade nas principais vias da cidade, que baixaram para 50 km/h - mas também resultaram em queda de 20,6% nas mortes do trânsito (de 1.249 em 2014 para 992 no ano passado).
O secretário municipal de Finanças, Rogério Ceron, defende que os aumentos não tiveram impacto no Orçamento da cidade. “Mesmo juntos, eles são pouco representativos para um Orçamento de R$ 54 bilhões”, disse. “Eles tiveram seus aumentos cada um com sua lógica, que não têm a ver com o cenário econômico, que é de retração”, afirmou.

As duas fontes de receita, entretanto, não teriam como contribuir para uma eventual sobra de caixa: por lei, a Cosip só pode ser usada para gastos com iluminação pública. E as multas só se revertem em ações para melhorar o trânsito. 

Com regras discutíveis, Supremo Tribunal Federal ganha projeção, por IVAR HARTMANN, FSP



03/04/2016  02h05
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RESUMO O Supremo Tribunal Federal ganhou projeção com o julgamento do mensalão. Oscilando entre ser protagonista ou coadjuvante na crise, o STF assume comportamentos ambíguos e contraditórios. A ausência de regras e mecanismos de contrapeso favorece decisões individuais que valem como se fossem da corte.
*
"Eu acho que a decisão do ministro Teori Zavascki foi uma decisão tecnicamente correta, juridicamente adequada aos padrões legais. O ministro Teori é um grande jurista."
Em tom solene e buscando mostrar a imparcialidade esperada de um ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello comenta a decisão do colega para a câmera. Zavascki havia decidido, não mais que dois dias antes, que as investigações sobre Lula deveriam subir para o STF. Ocorre que o ministro está olhando para uma câmera de celular. Vestindo uma polo Lacoste bordô. Em um shopping.
A cena, além de insólita, ilustra muito bem que existem dois papéis possíveis para o Supremo. O papel oficial, necessário. E o que os próprios ministros querem e conseguem desempenhar, em parte influenciados por determinadas expectativas da população.
Dias depois da entrevista, Celso de Mello se reuniu aos demais dez ministros e ministras para confirmar a decisão de Zavascki. Se adiantar para a imprensa o voto que irá proferir em um caso, um ministro do Supremo, como qualquer juiz brasileiro, viola a Lei Orgânica da Magistratura. Mas Celso de Mello não afirmou categoricamente que iria referendar a decisão. Adotou tom neutro, limitou-se a elogios protocolares. O ministro fez um esforço calculado para não buscar protagonismo.
Pedro Ladeira - 12.nov.2015/Folhapress
O ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki
É isso que o Supremo quer com sua atuação durante a crise: consagrar-se coadjuvante. "Nesse Fla-Flu o Supremo não tem lado", lembra o ministro Luís Roberto Barroso. Foi dele o voto condutor que definiu em dezembro as regras para o rito de impeachment –mas sem entrar no mérito. Querendo ou não, o tribunal mudou radicalmente a velocidade e as chances do impeachment. Quão coadjuvante e técnico em seus julgamentos o Supremo consegue se manter, ainda que tente?
Compare-se o tribunal que o Supremo quer ser com o aquele que os brasileiros querem que seja. Esse Supremo reservado e judicioso não é o que pede a população. Ela não quer mais um Judiciário passivo. Uns querem que o tribunal seja enérgico no combate à corrupção. Outros querem que ele seja enérgico no combate a um golpe. Todos querem que os ministros arregacem as mangas. Comportem-se como líderes, talvez. Como humanos, no mínimo. E não como sacerdotes de manto preto.
Quando a audiência é a classe média, nada humaniza mais que ser filmado por um smartphone, trajando uma polo em um shopping. Ou na saída de um restaurante, em traje de passeio, como o ministro Dias Toffoli ao garantir que impeachment não é golpe.
Gilmar Mendes acusou a ilegalidade da nomeação de Lula como ministro –no julgamento sobre o rito do impeachment. Atendeu os anseios da população por liderança ou os seus próprios? O certo é que adiantou ilegalmente o voto que seria provocado a manifestar depois. Outros ministros, como Rosa Weber e Edson Fachin, não fazem questão de ficar em evidência.
A atitude importa. Em uma democracia a salvação máxima não pode vir do Judiciário. O papel que a população ontem atribuiu a Joaquim Barbosa e hoje delega a Moro não é saudável.
Mas há uma diferença entre ser colocado no pedestal e galgar seu caminho até ele. O juiz paranaense não concede entrevistas quase diariamente, como Marco Aurélio e Mendes. Não fala sobre aspectos concretos de futuras decisões suas à imprensa, como fazem eles.
MENSALÃO
No conjunto, o Supremo só foi descoberto pelos brasileiros com o julgamento do mensalão. Coincidiu com uma mudança no relacionamento com políticos. Desde então, os ministros sabem que condenar um ex-ministro da Casa Civil, ordenar a prisão preventiva de um senador ou abrir processo criminal contra o presidente da Câmara dos Deputados não cria instabilidade institucional. Isso é bom. Mas é preciso considerar que essas escolhas nem sempre são feitas de forma visível e transparente para os brasileiros.
O "timing" das decisões do plenário é um elemento decisivo e pouco conhecido pela sociedade. O Supremo pode decidir uma liminar em 20 horas (ADI 4.698) ou em 18 anos (ADI 1.229). Não há qualquer regra sobre isso. Não há nenhum mecanismo de freio ou contrapeso. Atualmente, o tribunal pode escolher se irá decidir o pedido de afastamento de Eduardo Cunha na semana que vem ou no final do ano.
Uma análise mais detalhada revela um tribunal que tem os meios e a vontade de protagonismo, mas que, ao mesmo tempo, tenta permanecer discreto. Diz que não tem lado no Fla-Flu, mas apressa-se em avaliar o mérito de uma das acusações centrais contra a presidente. Faz questão de afirmar que impeachment não é golpe, mesmo sem ser acionado formalmente.
Em parte, essa é a crise de identidade entre o tribunal da tese e o da prática. Mas há outro fator que colabora para tal crise. Existem comportamentos deliberadamente diferentes de ministros diferentes. Uma fragmentação.
Dados do projeto Supremo em Números mostram que, entre 2009 e 2013, 98% das decisões de mérito e liminares foram individuais. Assim foram as decisões monocráticas de Gilmar Mendes e Teori Zavascki sobre a questão do foro competente para julgar Lula. Separadas por quatro dias e aparentemente conflitantes. Ambas garantindo que, por algum tempo, a posição pessoal do ministro se torne a posição oficial do Supremo. A de Zavascki foi confirmada. Quando será a de Gilmar?
O que poderia fazer o presidente da corte, o ministro Ricardo Lewandowski? Nada. Cada ministro dispõe de um conjunto de prerrogativas que lhe permite fazer todo o Supremo pender ora para o holofote, ora para a sombra.
Zavascki e Mendes, autores de liminares possivelmente conflitantes sobre onde Lula deve ser julgado, podem levá-las ao juízo de seus colegas quando bem entenderem. Segurar o processo e não permitir que colegiado avalie se mantém ou derruba a decisão liminar é um tipo de veto. Permite ao ministro escolher, sozinho, entre um Lula articulador em um governo com novas chances e um Lula sem carteira assinada em um governo ainda mais desmoralizado.
O poder de veto individual pode ser exercido também por meio dos pedidos de vista, como meu colega Diego Werneck e eu explicamos em artigo naFolha em abril do ano passado. Mendes usou um pedido de vista para suspender por mais de um ano o julgamento sobre financiamento de campanhas eleitorais, do qual sequer era relator.
Há outros exemplos de vetos individuais. Em setembro de 2014 o ministro Luiz Fux decidiu sozinho que os 16 mil juízes brasileiros devem receber R$ 4.377 reais mensais de auxílio-moradia. Nunca levou sua liminar para avaliação dos colegas. Até agora, Fux custou R$ 1,25 bilhão aos cofres públicos. Nenhum deputado ou senador é capaz de impactar o orçamento unilateralmente nessa magnitude.
Com esse tipo de poder, é difícil dizer que um ministro do Supremo seja coadjuvante na política nacional. Nenhum ministro irá confirmar a existência e uso desse poder, é claro. Isso não seria compatível com a imagem oficial do Supremo.
Há outro exemplo de prerrogativa pouco conhecida, porém de grande utilidade. Os ministros comparecem às sessões de julgamento quando querem.
Pesquisa do Supremo em Números mostra que, entre 1992 e 2013, grande quantidade de ministros faltou a 15% ou mais das sessões. Um ficou perto de 30%. O plenário só estava completo em uma de cada seis sessões de julgamento. A normalidade das faltas permite grandes coincidências. Gilmar Mendes não poderia levar ao plenário sua liminar sobre Lula na semana passada por estar em um evento acadêmico em Portugal. Qualquer ministro pode evitar uma sessão de julgamento que o coloque numa situação delicada.
Esse é o Supremo que chancela decisões da Lava Jato. Que decidiu e decidirá novamente sobre o rito do impeachment. Que atualmente avalia, inclusive, nomeações de ministros do governo federal. Um grupo de juízes que por vezes vota unido, mas que utiliza poderes peculiares para administrar escolhas individuais e gerenciar seus respectivos custos políticos. Um tribunal que perde cada vez mais seu pudor institucional.
Mais do que em outras épocas, hoje o STF sabe e faz a hora, não espera acontecer.

IVAR HARTMANN, 31, doutorando em direito constitucional na UERJ, é professor da Fundação Getúlio Vargas no Rio. 

Eventual governo Temer pode ter acordão com pobres fora da mesa, Ilustríssima



CELSO ROCHA DE BARROS
ilustração
 MATHEUS ROCHA PITTA
03/04/2016  04h44
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RESUMO Enquanto liberais veem no possível governo Temer a oportunidade para plantar suas bandeiras, o autor lembra que o PMDB é especialmente confuso sobre a divisão entre público e privado. Ainda que consiga cumprir em parte uma agenda liberalizante, tal governo tentaria arrefecer a Lava Jato e contaria com a exclusão dos pobres da negociação.
Matheus Rocha Pitta
Trabalho da série "Assalto" (2014), de Matheus Rocha Pitta
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Nos últimos meses, um importante debate teve lugar nas páginas da "Ilustríssima". O presidente do Ipea, Jessé Souza, deu uma entrevista a Marcelo Coelho em que criticou a instrumentalização do conceito de "patrimonialismo" no debate brasileiro.
Independentemente do significado do conceito em sua formulação original por Max Weber, entre nós o termo adquiriu o sentido geral de promiscuidade entre público e privado, sendo constantemente invocado em discussões sobre corrupção, apadrinhamento, e/ou captura do Estado por interesses particulares. Aceitaremos aqui o sentido consagrado pelo uso.
Para Souza, a centralidade da discussão sobre o patrimonialismo na tradição intelectual brasileira produziu a crença de que o problema principal do país está em deformidades do Estado, e não na desigualdade produzida na economia e na sociedade. A constante repetição da tese do patrimonialismo ajudaria a desviar atenção do problema da desigualdade.
Em resposta ao texto de Souza, o cientista político Marcus Melo propôs uma versão da história brasileira em que o patrimonialismo é revisitado a partir de autores recentes que enfatizam a importância das instituições para o desenvolvimento econômico (como Douglass North, Daron Acemoglu e James Robinson).
Para Melo, o problema seria o inverso do identificado por Souza: a ênfase brasileira em soluções centralizadas e estatizantes teria gerado uma ordem social excludente. Nossas instituições fechadas, acessíveis apenas a uma minoria, seriam facilmente capturadas por interesses particulares. Uma visão "iliberal", marcada pela santificação do Estado, estaria na origem do patrimonialismo.
O debate na "Ilustríssima" teve excelente "timing". A relação entre visões liberais e iliberais, entre mercado e patrimonialismo, deve se tornar um tema bastante atual se Dilma Rousseff for impedida nos próximos meses.
Afinal, os liberais brasileiros estão prestes a se aliar ao PMDB, um partido que, mesmo para os padrões brasileiros, é especialmente confuso sobre a divisão entre público e privado.
Se um acordo PSDB/PMDB levar Temer à Presidência, teremos uma aliança entre a direita liberal e a direita patrimonial, sob a liderança da última (o que a diferencia de PSDB/PFL).
Esse liberal-patrimonialismo, por meio de alguma transição confusa, tornará nossas instituições mais abertas e inclusivas, no sentido dos institucionalistas? Que preço os liberais precisarão pagar ao patrimonialismo para implementar seu programa? Quais as chances de uma retomada, nesse novo ambiente, da discussão da desigualdade defendida por Jessé Souza?
Enfim, se optarem, como parece que farão, por derrubar Dilma Rousseff, será hora de os liberais brasileiros relerem Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, dessa vez prestando atenção se a história agora não é sobre eles.
PROGRAMA
Em uma entrevista recente, o senador José Serra esboçou um programa para um futuro governo Temer. É uma visão otimista em que um governo de união nacional faz reformas de caráter liberal e entrega o país arrumado para quem vencer a eleição de 2018.
Se houver mesmo um governo Temer, torço para que se pareça com a visão proposta pelo senador José Serra. Torço, enfim, para que o que vou escrever agora soe um dia como uma advertência desnecessária. Mas acho muito difícil que seja o caso. Acredito que o governo Temer será uma tentativa de comprar a absolvição de políticos da direita acusados na Lava Jato entregando reformas liberais à elite econômica.
Não se sabe se um acordo para diminuir o ritmo das investigações da Lava Jato será bem-sucedido, mas é certo que será tentado. Pelo que tem vazado, as delações atingirão todo o espectro político. Quando a catarse do impeachment estiver consumada, a tentação do "acordão" dentro do sistema político será fortíssima. E, embora não pareça possível que o mandato de Dilma seja poupado, não estranhem se ao menos alguns petistas entrarem no acordo.
Talvez não seja possível interromper a atuação do Ministério Público, da Polícia Federal e de outros órgãos fiscalizadores. Bem mais provável é que diminua a pressão da mídia e das manifestações que até agora se concentraram em derrubar Dilma Rousseff. Que voltemos a dar algum benefício da dúvida aos acusados, ou que tenhamos mais paciência com o desenrolar dos processos.
E, é claro, o quadro político pode favorecer o acordo mudando os incentivos dos delatores. Se, para se livrar da cadeia, for suficiente entregar petistas e outros já enrolados, os empreiteiros podem optar por fazê-lo, mantendo assim boas relações com o novo governo.
Se estivermos precavidos o suficiente contra o acordo, talvez possamos evitá-lo. As passeatas e panelaços podem continuar, agora reforçados pelos militantes de esquerda. As edições especiais das revistas e os telejornais com duração estendida podem persistir. A mobilização contra os corruptos pode continuar, agora contra o outro lado do espectro político.
Não acho que isso vá acontecer.
Depois de um ano e meio de crise política, alguma estabilidade econômica parecerá um enorme ganho para parte importante da população brasileira. Acredito que as instituições continuarão fazendo sua parte, mas não tenho a mesma confiança de que os segmentos sociais e os formadores de opinião que terão derrubado Dilma o façam. E, quando a esquerda tentar fazê-lo, seus gestos serão desqualificados como atitude de mau perdedor.
E mais –quem tentar denunciar o acordão vai ter que administrar um risco muito incômodo: o de que uma desmoralização completa de todo o sistema político favoreça aventureiros e salvadores da pátria.
Enfim, embora torça para estar errado, acho boas as chances de os corruptos conservadores conseguirem o que os corruptos petistas não conseguiram –que a Lava Jato seja desacelerada.
As instituições continuarão funcionando, mas não poderão mais contar com o mesmo esforço de opinião pública para enfrentar interesses poderosos, agora muito mais compactos do que quando a esquerda era governo.
Em princípio, o impedimento de um presidente pode ser um passo em direção a uma sociedade com instituições mais sólidas e universalistas, em que ninguém esteja acima da lei. Mas, em caso de uma crise do sistema político como um todo, há um risco real de que o impedimento seja só um lance dentro de uma estratégia geral de acomodação.
Nesse caso, há o risco de o sistema se tornar mais fechado, se, como pode acontecer no Brasil, a parte excluída da acomodação representar segmentos que não dispõem de outra possibilidade de influir nas decisões governamentais.
Matheus Rocha Pitta
Obra da série "Acordo" (2013-2015), de Matheus Rocha Pitta
REFORMAS
Se o governo Temer conseguir fechar um acordo de acomodação do sistema político, há uma chance razoável de conseguir realizar com sucesso reformas liberais. A esquerda deve sair fraca do processo de impeachment e deve levar um tempo para que ela se reorganize (embora as manifestações recentes estejam ajudando a evitar sua dispersão). As reformas que dependerem sobretudo de superar as objeções da esquerda (como a da Previdência) devem se tornar mais fáceis.
Acho mais difícil que progridam medidas liberais que afetem a elite. Mudanças que de fato eliminem privilégios podem acabar esmagadas por lobbies como o da Fiesp, que tantas novas matrizes econômicas inspirou para depois criticar. Os anúncios pagos pelo empresariado a favor do impeachment foram claras tentativas de comprar um lugar à mesa no próximo governo. Deve dar certo.
Sempre é possível um "estelionato nem sequer eleitoral" de Temer. Isto é, que Temer abandone a agenda liberal assim que ela lhe tiver garantido a Presidência. Nesse caso, "Uma Ponte para o Futuro" seria para a elite econômica e seus formadores de opinião o que o Plano Cruzado foi para o resto da população brasileira em 1986: uma ponte levando o PMDB para o poder, e só.
Nesse cenário, assim que Temer assumisse o governo, algumas medidas liberais seriam anunciadas, tornadas aceitáveis pela possibilidade de jogar a culpa de tudo na herança petista (até a desaceleração chinesa deve entrar nessa). Se as coisas começarem a dar certo, o PMDB pode governar pensando na eleição de 2018. Nesse caso, reformas dolorosas se tornarão menos prováveis.
Mas acho que, ao menos enquanto a esquerda continuar desorganizada, e supondo que consiga se consolidar politicamente, o governo Temer deve tentar aplicar o programa liberal, por não poder se dar ao luxo de perder o apoio da elite econômica e porque, enfim, algumas das medidas do ajuste são imposições das circunstâncias.
Nesse caso, as instituições brasileiras talvez se tornem mais inclusivas na economia, com um mercado mais dinâmico e menos protegido pela ligação com o Estado. Mas isso terá sido possível por uma notável redução da inclusividade da esfera política, por um governo baseado em um acordo entre elites aproveitando a chance de fazer suas reformas quando as reivindicações dos mais pobres deixaram de ter um representante na mesa de negociações.
Não parece promissor para o desenvolvimento futuro das instituições brasileiras. E, a propósito, não sei quanto uma aliança assim, caso se torne estável, manteria seu compromisso com soluções universalistas.
REDISTRIBUIÇÃO
Em um cenário PT vs. PSDB, seria possível conceber um acordo em que medidas liberais fossem trocadas por medidas redistributivas. O Brasil, afinal, precisa tanto de mais liberalização quanto de mais redistribuição. Mas isso deve ser mais difícil sem a esquerda na conversa.
E o jogo que estamos jogando há um ano e meio não favorece a discussão sobre desigualdade e pobreza. A falta de preocupação com os brasileiros pobres foi um traço constante da política brasileira em 2015-2016. Quando a disputa política deixou de ser eleitoral, ninguém mais precisou de pobres para nada, e eles simplesmente deixaram de ser assunto.
Quando o PMDB publicou seu manifesto liberal "Uma Ponte Para o Futuro", havia um documento sobre política social que o acompanhava. A diferença de sofisticação entre os dois textos era gritante. O texto sobre política econômica tratava de uma ampla variedade de temas e espelhava bem o debate entre os melhores economistas liberais. O texto sobre política social pode ser resumido em 1) escola é bom, 2) já crime não, crime é ruim e 3) citem um Amartya Sen no final para parecer que deu trabalho fazer isso aqui. A diferença mostrava claramente que público foi importante conquistar em 2015. Não foram os pobres.
Há alguns meses, o PMDB anunciou que divulgaria um "Plano Temer 2" (aceitando que "Uma Ponte para o Futuro" tenha sido o "Plano Temer 1"), no qual a política social será o assunto principal. O que já vazou do plano pode ou não ser necessário, mas não é popular: fala-se de aumentar a eficiência do gasto social, o que é louvável, mas não deve inflamar as massas.
Talvez o PMDB esteja demorando para divulgar o "Plano Temer 2" por estar excessivamente ocupado com a implementação do "Plano Temer Zero", derrubar Dilma Rousseff. Mas o mais provável é que simplesmente não lhe seja necessário conseguir apoio popular no momento.
Há diferenças entre os manifestantes a favor e contra o impeachment, mas nenhum dos dois grupos é vulnerável a ponto de depender de políticas sociais. Nos arranjos entre a elite econômica e os deputados que decidirão a sorte de Dilma no Congresso, o assunto é ainda menos relevante. O impeachment será decidido sem a participação dos brasileiros pobres, que só devem voltar a ser assunto quando 2018 se aproximar.
Aumentar a eficiência dos programas sociais pode ser necessário, mas isso não será feito dentro de uma negociação com os prováveis perdedores do processo.
É comum ouvir que as reformas liberais finamente se tornaram um consenso. Eu mesmo concordo com várias. Mas não é possível deixar de notar que o consenso se deve ao fato de que há muito menos gente na conversa.
ACORDO
Em 1994, Fernando Henrique Cardoso fechou um acordo entre PFL e PSDB que tinha algumas semelhanças com o atual. Lendo o primeiro tomo dos diários do ex-presidente, recém-publicado, tem-se a impressão de que FHC esperava que suas reformas acabassem por solapar as bases do poder de seus aliados fisiológicos. E, em certa medida, isso aconteceu: FHC tornou as instituições brasileiras mais inclusivas e mais abertas, e não só na economia.
A aliança de 94 era comandada por um PSDB repleto de lideranças que se opuseram à ditadura, baseada em um enorme sucesso econômico –o Plano Real– e historicamente situada em um momento de ascensão do capitalismo global, em que o discurso modernizador liberal tinha enorme apelo. A atual é liderada por um PMDB cuja direção pode ser presa a qualquer momento, não tem nenhum programa simpático para implementar e enfrentará uma situação internacional muito adversa.
Enfim, se houver um governo Temer, minha expectativa quanto a ele será baixa. Acho que o novo governo tentará patrocinar um acordo de amenização da Lava Jato.
Se não o conseguir, não sei se conseguiria implementar sua agenda econômica, pois seria ainda mais vulnerável às investigações do que o governo Dilma. Se o conseguisse, e se implementasse as reformas liberais, isso talvez fosse bom para a eficiência econômica, mas teria um custo social que não acho que seria compensado por políticas públicas. É um pouco deprimente que esse seja o melhor cenário.
CATARSE
Enquanto escrevo, o impeachment é considerado altamente provável pelos analistas, mas não é uma certeza. Embora um período Dilma que vá até o fim mereça uma análise em separado, é preciso ressaltar que muita coisa dita até aqui provavelmente seria verdade sobre o governo sobrevivente.
Um acordo anti-Lava Jato seria mais difícil sem a catarse do impeachment, mas não seria impossível. E talvez fosse possível sobreviver sem ele, de crise em crise.
A baixa qualidade dos quadros recrutados nos pequenos partidos para garantir a vitória contra o impeachment provavelmente seria abissal. E o programa econômico seria o liberal, com uma ou outra moderação. O risco de perder vozes no sistema político seria menor, mas o ganho de eficiência econômica também.
Acho que um governo Temer, mesmo no melhor cenário, será pior do que um governo Dilma teria sido se a oposição não tivesse começado a derrubá-la no primeiro dia de seu segundo mandato. Mas não sei se essa vantagem já não se perdeu com a radicalização do último ano e meio, que reforçou a necessidade de entusiasmar as bases. Sem a radicalização, aliás, Temer também seria capaz de fazer um governo bem melhor. Se a guerra do último ano teve alguma vantagem, não é fácil enxergá-la nos dados.
Mas talvez essa já seja a discussão de ontem.
CONCLUINDO
A aliança entre a direita liberal e a direita patrimonial pode produzir algum progresso na economia brasileira, tornando-a mais sujeita a regras universalistas e menos dependente de favores estatais. Mas é provável que isso seja feito aproveitando o momento em que os mais pobres estavam sem representantes na negociação, ou pela crise do PT, ou porque o poder terá sido conquistado sem depender do voto popular.
Além disso, embora o impeachment possa ser visto como uma extensão de regras universalistas aos poderosos, nas circunstâncias atuais ele pode ser a catarse que possibilitará acordos que reduzam a transparência do sistema. Enfim, podemos nos tornar mais produtivos, mas deve haver um custo razoável para a representatividade de nosso sistema político.
A melhor esperança do país é que, em algum grau, a Lava Jato continue funcionando e mantenha a aliança PSDB/PMDB suficientemente sob terror para que tudo no governo Temer seja transitório, e o jogo comece de novo na eleição de 2018, com o ajuste econômico já feito.
Se, como acredito, não for mais possível contar com boa parte da direita brasileira para apoiar a Lava Jato depois do impeachment, restará à esquerda pegar a bandeira no chão e levar a luta contra o patrimonialismo brasileiro até o fim. E, aos que acham que a bandeira não é de esquerda, lembro que Sérgio Buarque de Holanda foi fundador do PT e que Raymundo Faoro, depois de destacada atuação contra a ditadura, passou os últimos anos de sua vida escrevendo para a "Carta Capital".
CELSO ROCHA DE BARROS, 43, colunista da Folha, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford.

MATHEUS ROCHA PITTA, 35, é artista visual.