CELSO ROCHA DE BARROS
ilustração MATHEUS ROCHA PITTA
ilustração MATHEUS ROCHA PITTA
03/04/2016 04h44
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RESUMO Enquanto liberais veem no possível governo Temer a
oportunidade para plantar suas bandeiras, o autor lembra que o PMDB é
especialmente confuso sobre a divisão entre público e privado. Ainda que
consiga cumprir em parte uma agenda liberalizante, tal governo tentaria
arrefecer a Lava Jato e contaria com a exclusão dos pobres da negociação.
Matheus Rocha Pitta
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Trabalho da série "Assalto" (2014), de Matheus Rocha Pitta
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Nos últimos meses, um importante debate teve lugar
nas páginas da "Ilustríssima". O presidente do Ipea, Jessé Souza, deu
uma entrevista a Marcelo Coelho em que criticou a instrumentalização do
conceito de "patrimonialismo" no debate brasileiro.
Independentemente do significado do conceito em sua
formulação original por Max Weber, entre nós o termo adquiriu o sentido geral
de promiscuidade entre público e privado, sendo constantemente invocado em
discussões sobre corrupção, apadrinhamento, e/ou captura do Estado por
interesses particulares. Aceitaremos aqui o sentido consagrado pelo uso.
Para Souza, a centralidade da discussão sobre o
patrimonialismo na tradição intelectual brasileira produziu a crença de que o
problema principal do país está em deformidades do Estado, e não na
desigualdade produzida na economia e na sociedade. A constante repetição da
tese do patrimonialismo ajudaria a desviar atenção do problema da desigualdade.
Em resposta ao texto de Souza, o cientista político
Marcus Melo propôs uma versão da história brasileira em que o patrimonialismo é
revisitado a partir de autores recentes que enfatizam a importância das
instituições para o desenvolvimento econômico (como Douglass North, Daron
Acemoglu e James Robinson).
Para Melo, o problema seria o inverso do
identificado por Souza: a ênfase brasileira em soluções centralizadas e
estatizantes teria gerado uma ordem social excludente. Nossas instituições
fechadas, acessíveis apenas a uma minoria, seriam facilmente capturadas por
interesses particulares. Uma visão "iliberal", marcada pela santificação
do Estado, estaria na origem do patrimonialismo.
O debate na "Ilustríssima" teve excelente
"timing". A relação entre visões liberais e iliberais, entre mercado
e patrimonialismo, deve se tornar um tema bastante atual se Dilma Rousseff for
impedida nos próximos meses.
Afinal, os liberais brasileiros estão prestes a se
aliar ao PMDB, um partido que, mesmo para os padrões brasileiros, é
especialmente confuso sobre a divisão entre público e privado.
Se um acordo PSDB/PMDB levar Temer à Presidência,
teremos uma aliança entre a direita liberal e a direita patrimonial, sob a
liderança da última (o que a diferencia de PSDB/PFL).
Esse liberal-patrimonialismo, por meio de alguma
transição confusa, tornará nossas instituições mais abertas e inclusivas, no
sentido dos institucionalistas? Que preço os liberais precisarão pagar ao
patrimonialismo para implementar seu programa? Quais as chances de uma
retomada, nesse novo ambiente, da discussão da desigualdade defendida por Jessé
Souza?
Enfim, se optarem, como parece que farão, por
derrubar Dilma Rousseff, será hora de os liberais brasileiros relerem Sérgio
Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, dessa vez prestando atenção se a história
agora não é sobre eles.
PROGRAMA
Em uma entrevista recente, o senador José Serra
esboçou um programa para um futuro governo Temer. É uma visão otimista em que
um governo de união nacional faz reformas de caráter liberal e entrega o país
arrumado para quem vencer a eleição de 2018.
Se houver mesmo um governo Temer, torço para que se
pareça com a visão proposta pelo senador José Serra. Torço, enfim, para que o
que vou escrever agora soe um dia como uma advertência desnecessária. Mas acho
muito difícil que seja o caso. Acredito que o governo Temer será uma tentativa
de comprar a absolvição de políticos da direita acusados na Lava Jato
entregando reformas liberais à elite econômica.
Não se sabe se um acordo para diminuir o ritmo das
investigações da Lava Jato será bem-sucedido, mas é certo que será tentado.
Pelo que tem vazado, as delações atingirão todo o espectro político. Quando a
catarse do impeachment estiver consumada, a tentação do "acordão"
dentro do sistema político será fortíssima. E, embora não pareça possível que o
mandato de Dilma seja poupado, não estranhem se ao menos alguns petistas
entrarem no acordo.
Talvez não seja possível interromper a atuação do
Ministério Público, da Polícia Federal e de outros órgãos fiscalizadores. Bem
mais provável é que diminua a pressão da mídia e das manifestações que até
agora se concentraram em derrubar Dilma Rousseff. Que voltemos a dar algum
benefício da dúvida aos acusados, ou que tenhamos mais paciência com o
desenrolar dos processos.
E, é claro, o quadro político pode favorecer o
acordo mudando os incentivos dos delatores. Se, para se livrar da cadeia, for
suficiente entregar petistas e outros já enrolados, os empreiteiros podem optar
por fazê-lo, mantendo assim boas relações com o novo governo.
Se estivermos precavidos o suficiente contra o
acordo, talvez possamos evitá-lo. As passeatas e panelaços podem continuar,
agora reforçados pelos militantes de esquerda. As edições especiais das
revistas e os telejornais com duração estendida podem persistir. A mobilização
contra os corruptos pode continuar, agora contra o outro lado do espectro
político.
Não acho que isso vá acontecer.
Depois de um ano e meio de crise política, alguma
estabilidade econômica parecerá um enorme ganho para parte importante da
população brasileira. Acredito que as instituições continuarão fazendo sua
parte, mas não tenho a mesma confiança de que os segmentos sociais e os
formadores de opinião que terão derrubado Dilma o façam. E, quando a esquerda
tentar fazê-lo, seus gestos serão desqualificados como atitude de mau perdedor.
E mais –quem tentar denunciar o acordão vai ter que
administrar um risco muito incômodo: o de que uma desmoralização completa de
todo o sistema político favoreça aventureiros e salvadores da pátria.
Enfim, embora torça para estar errado, acho boas as
chances de os corruptos conservadores conseguirem o que os corruptos petistas
não conseguiram –que a Lava Jato seja desacelerada.
As instituições continuarão funcionando, mas não
poderão mais contar com o mesmo esforço de opinião pública para enfrentar
interesses poderosos, agora muito mais compactos do que quando a esquerda era
governo.
Em princípio, o impedimento de um presidente pode
ser um passo em direção a uma sociedade com instituições mais sólidas e
universalistas, em que ninguém esteja acima da lei. Mas, em caso de uma crise
do sistema político como um todo, há um risco real de que o impedimento seja só
um lance dentro de uma estratégia geral de acomodação.
Nesse caso, há o risco de o sistema se tornar mais
fechado, se, como pode acontecer no Brasil, a parte excluída da acomodação
representar segmentos que não dispõem de outra possibilidade de influir nas
decisões governamentais.
Matheus Rocha Pitta
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Obra da série "Acordo" (2013-2015), de Matheus Rocha Pitta
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REFORMAS
Se o governo Temer conseguir fechar um acordo de
acomodação do sistema político, há uma chance razoável de conseguir realizar
com sucesso reformas liberais. A esquerda deve sair fraca do processo de
impeachment e deve levar um tempo para que ela se reorganize (embora as
manifestações recentes estejam ajudando a evitar sua dispersão). As reformas
que dependerem sobretudo de superar as objeções da esquerda (como a da
Previdência) devem se tornar mais fáceis.
Acho mais difícil que progridam medidas liberais
que afetem a elite. Mudanças que de fato eliminem privilégios podem acabar
esmagadas por lobbies como o da Fiesp, que tantas novas matrizes econômicas
inspirou para depois criticar. Os anúncios pagos pelo empresariado a favor do
impeachment foram claras tentativas de comprar um lugar à mesa no próximo
governo. Deve dar certo.
Sempre é possível um "estelionato nem sequer
eleitoral" de Temer. Isto é, que Temer abandone a agenda liberal assim que
ela lhe tiver garantido a Presidência. Nesse caso, "Uma Ponte para o
Futuro" seria para a elite econômica e seus formadores de opinião o que o
Plano Cruzado foi para o resto da população brasileira em 1986: uma ponte
levando o PMDB para o poder, e só.
Nesse cenário, assim que Temer assumisse o governo,
algumas medidas liberais seriam anunciadas, tornadas aceitáveis pela
possibilidade de jogar a culpa de tudo na herança petista (até a desaceleração
chinesa deve entrar nessa). Se as coisas começarem a dar certo, o PMDB pode
governar pensando na eleição de 2018. Nesse caso, reformas dolorosas se
tornarão menos prováveis.
Mas acho que, ao menos enquanto a esquerda
continuar desorganizada, e supondo que consiga se consolidar politicamente, o
governo Temer deve tentar aplicar o programa liberal, por não poder se dar ao
luxo de perder o apoio da elite econômica e porque, enfim, algumas das medidas
do ajuste são imposições das circunstâncias.
Nesse caso, as instituições brasileiras talvez se
tornem mais inclusivas na economia, com um mercado mais dinâmico e menos
protegido pela ligação com o Estado. Mas isso terá sido possível por uma
notável redução da inclusividade da esfera política, por um governo baseado em
um acordo entre elites aproveitando a chance de fazer suas reformas quando as
reivindicações dos mais pobres deixaram de ter um representante na mesa de
negociações.
Não parece promissor para o desenvolvimento futuro
das instituições brasileiras. E, a propósito, não sei quanto uma aliança assim,
caso se torne estável, manteria seu compromisso com soluções universalistas.
REDISTRIBUIÇÃO
Em um cenário PT vs. PSDB, seria possível conceber
um acordo em que medidas liberais fossem trocadas por medidas redistributivas.
O Brasil, afinal, precisa tanto de mais liberalização quanto de mais
redistribuição. Mas isso deve ser mais difícil sem a esquerda na conversa.
E o jogo que estamos jogando há um ano e meio não
favorece a discussão sobre desigualdade e pobreza. A falta de preocupação com
os brasileiros pobres foi um traço constante da política brasileira em 2015-2016.
Quando a disputa política deixou de ser eleitoral, ninguém mais precisou de
pobres para nada, e eles simplesmente deixaram de ser assunto.
Quando o PMDB publicou seu manifesto liberal
"Uma Ponte Para o Futuro", havia um documento sobre política social que
o acompanhava. A diferença de sofisticação entre os dois textos era gritante. O
texto sobre política econômica tratava de uma ampla variedade de temas e
espelhava bem o debate entre os melhores economistas liberais. O texto sobre
política social pode ser resumido em 1) escola é bom, 2) já crime não, crime é
ruim e 3) citem um Amartya Sen no final para parecer que deu trabalho fazer
isso aqui. A diferença mostrava claramente que público foi importante
conquistar em 2015. Não foram os pobres.
Há alguns meses, o PMDB anunciou que divulgaria um
"Plano Temer 2" (aceitando que "Uma Ponte para o Futuro"
tenha sido o "Plano Temer 1"), no qual a política social será o
assunto principal. O que já vazou do plano pode ou não ser necessário, mas não
é popular: fala-se de aumentar a eficiência do gasto social, o que é louvável,
mas não deve inflamar as massas.
Talvez o PMDB esteja demorando para divulgar o
"Plano Temer 2" por estar excessivamente ocupado com a implementação
do "Plano Temer Zero", derrubar Dilma Rousseff. Mas o mais provável é
que simplesmente não lhe seja necessário conseguir apoio popular no momento.
Há diferenças entre os manifestantes a favor e
contra o impeachment, mas nenhum dos dois grupos é vulnerável a ponto de
depender de políticas sociais. Nos arranjos entre a elite econômica e os
deputados que decidirão a sorte de Dilma no Congresso, o assunto é ainda menos
relevante. O impeachment será decidido sem a participação dos brasileiros
pobres, que só devem voltar a ser assunto quando 2018 se aproximar.
Aumentar a eficiência dos programas sociais pode
ser necessário, mas isso não será feito dentro de uma negociação com os
prováveis perdedores do processo.
É comum ouvir que as reformas liberais finamente se
tornaram um consenso. Eu mesmo concordo com várias. Mas não é possível deixar
de notar que o consenso se deve ao fato de que há muito menos gente na
conversa.
ACORDO
Em 1994, Fernando Henrique Cardoso fechou um acordo
entre PFL e PSDB que tinha algumas semelhanças com o atual. Lendo o primeiro
tomo dos diários do ex-presidente, recém-publicado, tem-se a impressão de que
FHC esperava que suas reformas acabassem por solapar as bases do poder de seus
aliados fisiológicos. E, em certa medida, isso aconteceu: FHC tornou as
instituições brasileiras mais inclusivas e mais abertas, e não só na economia.
A aliança de 94 era comandada por um PSDB repleto
de lideranças que se opuseram à ditadura, baseada em um enorme sucesso
econômico –o Plano Real– e historicamente situada em um momento de ascensão do
capitalismo global, em que o discurso modernizador liberal tinha enorme apelo.
A atual é liderada por um PMDB cuja direção pode ser presa a qualquer momento,
não tem nenhum programa simpático para implementar e enfrentará uma situação
internacional muito adversa.
Enfim, se houver um governo Temer, minha
expectativa quanto a ele será baixa. Acho que o novo governo tentará patrocinar
um acordo de amenização da Lava Jato.
Se não o conseguir, não sei se conseguiria
implementar sua agenda econômica, pois seria ainda mais vulnerável às
investigações do que o governo Dilma. Se o conseguisse, e se implementasse as
reformas liberais, isso talvez fosse bom para a eficiência econômica, mas teria
um custo social que não acho que seria compensado por políticas públicas. É um
pouco deprimente que esse seja o melhor cenário.
CATARSE
Enquanto escrevo, o impeachment é considerado
altamente provável pelos analistas, mas não é uma certeza. Embora um período
Dilma que vá até o fim mereça uma análise em separado, é preciso ressaltar que
muita coisa dita até aqui provavelmente seria verdade sobre o governo
sobrevivente.
Um acordo anti-Lava Jato seria mais difícil sem a
catarse do impeachment, mas não seria impossível. E talvez fosse possível
sobreviver sem ele, de crise em crise.
A baixa qualidade dos quadros recrutados nos
pequenos partidos para garantir a vitória contra o impeachment provavelmente
seria abissal. E o programa econômico seria o liberal, com uma ou outra
moderação. O risco de perder vozes no sistema político seria menor, mas o ganho
de eficiência econômica também.
Acho que um governo Temer, mesmo no melhor cenário,
será pior do que um governo Dilma teria sido se a oposição não tivesse começado
a derrubá-la no primeiro dia de seu segundo mandato. Mas não sei se essa
vantagem já não se perdeu com a radicalização do último ano e meio, que
reforçou a necessidade de entusiasmar as bases. Sem a radicalização, aliás,
Temer também seria capaz de fazer um governo bem melhor. Se a guerra do último
ano teve alguma vantagem, não é fácil enxergá-la nos dados.
Mas talvez essa já seja a discussão de ontem.
CONCLUINDO
A aliança entre a direita liberal e a direita
patrimonial pode produzir algum progresso na economia brasileira, tornando-a
mais sujeita a regras universalistas e menos dependente de favores estatais.
Mas é provável que isso seja feito aproveitando o momento em que os mais pobres
estavam sem representantes na negociação, ou pela crise do PT, ou porque o
poder terá sido conquistado sem depender do voto popular.
Além disso, embora o impeachment possa ser visto
como uma extensão de regras universalistas aos poderosos, nas circunstâncias
atuais ele pode ser a catarse que possibilitará acordos que reduzam a
transparência do sistema. Enfim, podemos nos tornar mais produtivos, mas deve
haver um custo razoável para a representatividade de nosso sistema político.
A melhor esperança do país é que, em algum grau, a
Lava Jato continue funcionando e mantenha a aliança PSDB/PMDB suficientemente
sob terror para que tudo no governo Temer seja transitório, e o jogo comece de
novo na eleição de 2018, com o ajuste econômico já feito.
Se, como acredito, não for mais possível contar com
boa parte da direita brasileira para apoiar a Lava Jato depois do impeachment,
restará à esquerda pegar a bandeira no chão e levar a luta contra o
patrimonialismo brasileiro até o fim. E, aos que acham que a bandeira não é de
esquerda, lembro que Sérgio Buarque de Holanda foi fundador do PT e que
Raymundo Faoro, depois de destacada atuação contra a ditadura, passou os últimos
anos de sua vida escrevendo para a "Carta Capital".
CELSO
ROCHA DE BARROS, 43,
colunista da Folha, é doutor em sociologia pela Universidade de
Oxford.
MATHEUS
ROCHA PITTA, 35, é
artista visual.
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