postado em 28/06/2014 07:00 / atualizado em 27/06/2014 14:10
Muitas crianças reclamam de dores difusas pelo corpo. Popularmente conhecidas como "dores do crescimento", são descritas pela medicina como fruto de um desequilíbrio entre o desenvolvimento dos ossos, tendões e músculos. Essa metáfora talvez ajude a entender o certo clima de insatisfação que há hoje no Brasil contra o próprio Brasil. Quem explica esse cenário é Renato Meireles, presidente do Instituto Data Popular, instituição de pesquisa especializada em entender o que pensam os brasileiros que emergiram da pobreza e hoje constituem o que é popularmente conhecido como a nova classe média. Para ele, a insatisfação decorre do fato de que as mudanças produziram um excesso de expectativa que não se confirmou e que acabou produzindo a sensação de não se saber ao certo em qual direção o país está indo. Algo semelhante ao incômodo que sentem as crianças pelo fato de o ritmo de crescimento do corpo delas como um todo não ter sido previamente acertado entre músculos, ossos e tendões. Porém, independentemente dos humores do brasileiro, Renato Meireles é otimista. Para ele, a mudança na estratificação social brasileira é um caminho sem volta.
O Brasil de hoje é muito diferente do Brasil de ontem. Somos um país que veio de uma trajetória de crescimento da economia e aumento do otimismo muito grande nos últimos anos. O auge desse movimento foi 2010, ano em que tivemos um overpromise (excesso de expectativa) com relação à melhoria da qualidade de vida do brasileiro. O problema é que esse crescimento começou a ocorrer hoje em uma velocidade menor que a de alguns anos atrás e isso traz uma certa insegurança de não se saber ao certo para onde o Brasil está indo.
Teria ocorrido um erro de planejamento da velocidade de crescimento da economia?
Imagine que você esteja em uma estrada a uma velocidade de 120 km/h e, de repente, do nada, aparece na sua frente uma placa indicando que é preciso reduzir a velocidade para 70 km/h. Você reduz e, imediatamente, a sensação que tem é de que está parado. Com o Brasil, o que ocorreu foi isso. Vinha-se em uma expectativa de crescimento que não se realizou e isso gerou um processo de medo, de insegurança e de mau humor. Não tenho dúvidas de que o brasileiro está mal-humorado porque o crescimento não está indo na velocidade que esperava que fosse. Fora isso, temos dois outros fenômenos relativamente novos: a volta da inflação, que atinge mais fortemente os mais pobres, e um crescimento desigual da renda, o que, por mais que seja excelente para a redução da desigualdade, deixa a elite tradicional bem incomodada.
Nos últimos anos, ocorreu no Brasil a ascensão à classe média de um contingente de brasileiros que pertenciam às classes D e E. Existe um certo desconforto em relação a isso, principalmente de parte dos setores que são comumente definidos como elite. Como você analisa isso? Existe uma luta de classes no Brasil?
O que ocorreu no Brasil é que hoje nós temos uma classe média robusta, formada por mais de 100 milhões de brasileiros e que movimenta, por ano, algo em torno de R$ 1,17 trilhão. Se esse contingente fosse tratado como um país, estaria no G20 do consumo mundial. O problema é que o aumento do consumo ocorreu em uma velocidade muito maior do que a dos espaços do consumo, como os shoppings, aeroportos e a própria rua. A elite brasileira estava acostumada a trabalhar na lógica da exclusividade. Com a ascensão desse contingente de brasileiros à classe média, ela passou a ter que compartilhar espaços, uma vez que esses novos consumidores estão, agora, conseguindo viajar de avião pela primeira vez, fazer compras no shopping center, ter carro. E tudo isso incomoda radicalmente a elite.
Esse estranhamento vai durar muito tempo ainda? Quanto tempo será preciso para que essas diferenças se apaguem, ou isso não vai ocorrer?
Não acredito que a classe AB tradicional vá simplesmente "se acostumar" com a democratização do consumo. A mudança ocorrerá de outra forma: por substituição. O que a gente tem visto é que começa a surgir uma nova classe AB, oriunda da classe C. Na próxima década, esta "nova elite" vai crescer mais que a "nova classe média". Estamos falando do dono da padaria da esquina, do cara que distribui água, do pequeno empreendedor, que, hoje, ainda tem o jeito de comprar da classe C, mas tem o bolso da A. São pessoas que ganharam dinheiro com o aumento da renda e do consumo no país ocorrido nos últimos anos. Esse estranhamento e esse processo de adaptação à nova realidade do país só vai terminar quando as pessoas que vieram da classe C forem a maioria absoluta das classes A e B. Hoje, elas já são 44%. Porque, quando uma pessoa muda de classe, leva os valores de sua classe de origem.
Esta "nova elite" é diferente do novo-rico do passado. O antigo fazia o possível para esquecer a sua origem. O novo traz consigo uma série de outras pessoas: é o vizinho, o parente. Ele não tem vergonha de sua história. Ele tem orgulho de seu passado e não tem motivos para esconder sua história. Essa é a diferença.
Quais comportamentos a classe média original rejeita em relação à nova classe média?
Cinquenta e cinco por cento da elite brasileira acha que deveria haver produtos separados, específicos, para ricos e pobres; 17% acham que pessoas mal vestidas deveriam ter o acesso barrado em certos lugares; 26% são contra o metrô no bairro, porque isso aumentaria a circulação de pessoas indesejadas na região; 17% acham que todo estabelecimento comercial deveria ter elevadores separados para patrões e empregados. Tudo isso mostra o quanto a elite brasileira está, efetivamente, incomodada com a democratização do consumo.
E o contrário? O que a nova classe média pensa da elite?
Ela acha que a elite é perdulária, que não tem valores familiares consolidados, que a elite os julga com preconceito.
Quanto tempo vai levar para que esse processo de migração de classes termine?
Isso deve se resolver nos próximos 10 anos. Mas terminar, não termina, não. Pois esse fim não ocorreu nem nas sociedades mais modernas, que, há muito tempo, têm uma classe média forte, quanto mais no Brasil.
O Brasil é, ou era, tido como um país marcado pela cordialidade, pela convivência pacífica entre os diferentes. O que se observado, nos últimos tempos, é o aparecimento de um certo ódio de classes. A cordialidade do brasileiro está chegando ao fim?
A cordialidade, acho que não. O que não se pode é confundir o ser cordial, que é uma característica do brasileiro, com a submissão, que significa aceitar com naturalidade qualquer coisa que se impõe contra ele. Nós estamos agora em um momento em que o brasileiro está cada vez mais exigente. Em nossas pesquisas encontramos um brasileiro que vai correr atrás de seus direitos, mas que vai tentar fazer isso com muita graça, com muita doçura, como sempre fez. Acho que a cordialidade, como característica intrínseca do brasileiro, não vai terminar, o que não significa que a população não vai protestar cada vez que sentir que algum direito está sendo violado.
Os protestos que ocorreram nos últimos meses foram um sinal dessa mudança de postura do brasileiro em relação aos seus direitos?
Os motivos para a população se manifestar foram e são muito diversos. O que une é um amplo mau humor com a situação de desaceleração do Brasil. Com o aumento do emprego formal, as pessoas passaram a ter imposto retido na fonte. Elas começaram a entender, na prática, que o que elas recebem em serviços públicos não é favor. É a contrapartida do imposto que elas pagam. Passaram a entender, também, que elas podem reclamar. A régua de qualidade mudou. Hoje, a população não quer mais cesta básica, quer banda larga; não quer mais dentadura, quer o ProUni para o filho fazer a faculdade. Começa a sentir falta de um Código de Defesa do Cidadão, que defenda seus direitos como o Código de Defesa do Consumidor defende. Quando o brasileiro está no banco e a fila demora, ele reclama no Procon. Para quem ele reclama quando enfrenta uma fila interminável em um posto de saúde? O gestor público e a classe política não têm uma percepção muito clara dessa realidade, pois ainda funcionam muito no modo analógico, no qual estavam acostumados a falar muito e ouvir pouco. O novo cidadão funciona na lógica digital. Ele quer ser protagonista de sua própria história. Quer falar mais e também ser ouvido.
Como será o Brasil dentro de 10 anos?
Vai ser um Brasil muito melhor. Isso não é apenas uma questão de otimismo. Quando se dá um passo como o que foi dado na sociedade brasileira nos últimos anos, é muito difícil voltar atrás. Em 10 anos, vamos ter um contingente de jovens que estudaram mais que seus pais, vamos ter um Brasil mais conectado, com um aumento de repertório considerável, vamos ter um Brasil onde o consumidor vai saber reclamar da qualidade dos serviços públicos da mesma forma que aprendeu a reclamar dos serviços privados.