Ficou chocado (a) com a agressão verbal ao frentista haitiano no Rio Grande do Sul ou com o colunista da Veja que pediu “menos escolas, mais prisões”? Pois esse surto nazifascista que o Brasil vem assistindo acaba de ganhar um novo capítulo antes mesmo que os anteriores tivessem sido digeridos. Na última edição dominical da Folha de São Paulo, um colunista saiu em defesa da desigualdade de renda no Brasil (!?).
Antes de entrar nos detalhes desse caso, porém, façamos algumas reflexões sobre como chegamos a isso.
Ao longo dos últimos dois anos, o país assistiu a uma ascensão do “pensamento” de ultradireita que não encontra paralelo nos 125 anos de vida republicana do país. Mesmo a ascensão nazifascista que levou à ditadura militar (1964-1985) não se compara ao que está acontecendo, pois, naquele momento, a ultradireita encontrou forte resistência à esquerda, enquanto que, hoje, a resistência vai de pífia a inexistente.
Os fatores que reduziram tanto a resistência ao surto nazifascista envolvem erros de avaliação política tanto do governo quanto de sua base de apoio à esquerda. E, claro, o mau desempenho da economia.
A história mostra que a ultradireita é oportunista; costuma se erguer em momentos de insatisfação das massas como o que vive hoje o país. E o melhor exemplo desse fenômeno é, sem dúvida, a ascensão nazista na Alemanha dos anos 1920, mergulhada em um caos econômico profundo, o que permitiu a um psicopata catalisar o apoio de multidões ao prometer o que todos queriam ouvir: uma saída para a crise.
Tanto na Alemanha pré-nazista como em movimentos análogos de exploração do desespero das massas, sempre há que apontar um culpado e sua destruição como panaceia para todos os males. Porém, esse culpado não pode ser um indivíduo, pois concentrar as forças políticas, econômicas e de Estado contra uma só pessoa permite que seja destruída rapidamente e, então, fica-se sem ter a quem responsabilizar.
Nesse aspecto, há que eleger grupos étnicos, religiosos (ou não-religiosos) ou políticos como os responsáveis por todos os males. Na Alemanha pré-nazista, elegeram os judeus e os comunistas como alvos; no Brasil contemporâneo, foram eleitos o PT e, para quem presta atenção, “os comunistas”, que os fascistas mais dissimulados preferem chamar de “a esquerda” para não dar muito na cara.
Após a longa digressão, vamos ao novo episódio assustador. Quem fez essa defesa da desigualdade foi o colunista da Folha de São Paulo Hélio Schwartsman. Como, provavelmente, o jornal receberá uma enxurrada de manifestações de espanto e de inconformismo, o mais provável é que esse colunista emule aquele da revista Veja que se escudou em um recurso estilístico de escrever conhecido como “hipérbole” – exageração de uma ideia destinada a conferir-lhe dramaticidade.
O texto de Shwartsman foi publicado sob o título repugnante “Uma defesa da desigualdade”. O conteúdo da coluna até admite que reduzir a escandalosa desigualdade de renda e de oportunidades no país poderia ter alguns efeitos benéficos que o autor daquilo identifica mal. Confira, abaixo, o primeiro parágrafo:
“Um pouco mais de igualdade na distribuição de riquezas faria bem a nosso senso de justiça. É bastante provável também que a redução da desigualdade tonasse as sociedades mais funcionais. Um mercado interno robusto e mobilidade social são ingredientes importantes da democracia (…)”.
Alguns dirão que o primeiro parágrafo desmente o título da coluna, mas não desmente. Trata-se de concessão mínima, absolutamente insuficiente a uma ideia estapafúrdia, a de que existiria qualquer mérito na desigualdade. E os parágrafos seguintes tratam de deixar isso bem claro.
O texto de Shwartsman não endossa cem por cento a ideia-força disseminada a partir de seu título como aconteceu com o texto do colunista da revista Veja que pediu “menos escolas, mais prisões”, mas, tanto quanto aquele, tratou de conferir mérito a uma ideia que jamais poderia ser vista como algo além de uma absoluta excrescência.
Ainda assim, o texto de Schwartsman vende a desigualdade de riquezas como sendo útil de alguma forma à humanidade. Ou seja, o resto do texto desmente o primeiro parágrafo e endossa o título. Confira, abaixo, o terceiro parágrafo:
“(…) Os mesmos mecanismos de mercado que promovem a disparidade –eles exigem certo nível de desigualdade estrutural para funcionar– são também os responsáveis pelo mais extraordinário processo de melhora das condições materiais de vida que a humanidade já experimentou (…)”.
Entendeu, leitor? A desigualdade é a responsável pelo “mais extraordinário processo de melhora das condições materiais de vida” da “humanidade”.
É óbvio que a desigualdade não acelerou o progresso tecnológico ou qualquer outro a que essa… pessoa se refere. Ao contrário, a desigualdade impede que a humanidade avance mais rapidamente, gera convulsão social, gera criminalidade e violência, gera ignorância, doenças e faz com que sociedades praticamente medievais convivam no mesmo planeta com sociedades que obtiveram avanços extraordinários, tanto culturais quanto científicos e tecnológicos.
É indefensável a ideia de qualquer tipo de mérito da desigualdade. É como conceder mérito ao estupro, à pedofilia, ao sadismo, ao egoísmo, à ignorância, à violência e a tudo mais de nefasto que flagela a humanidade.
Mas como chegamos a isso? Como foi que energúmenos como Rodrigo Constantino, da Veja, ou Hélio Schwartsman, da Folha de São Paulo, ou o psicopata que agrediu o frentista haitiano sentirem-se livres para dizer todas essas barbaridades?
Recorro a trecho de entrevista recente do líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Guilherme Boulos, concedida recentemente à Rede Brasil Atual. O entrevistador perguntou qual foi o “legado” das manifestações de rua de junho de 2013. Confira, abaixo a resposta.
“(…) Tivemos dois principais legados. Um deles, perverso, pela direita. Foi aí que ela começou a se encorajar para ir às ruas e defender as opiniões que antes tinham vergonha – e que deveriam continuar tendo, porque são posições que beiram o fascismo. Houve um fortalecimento e uma rearticulação do pensamento de direita no Brasil e isso se expressou no período eleitoral do ano passado e sobretudo na manifestação de 15 de março deste ano (…)”
O segundo “legado” visto por Boulos não é importante – ele comemora que, em troca de a direita ter se animado a sair às ruas, dominado o cenário político e eleito o Congresso mais reacionário desde a redemocratização, as passagens de ônibus não subiram vinte centavos. E comemora que mais manifestações de esquerda começaram a ocorrer sem avaliar que as de direita suplantaram exponencialmente as de esquerda, fato inédito no pós-redemocratização.
Boulos é o primeiro dos entusiastas daquele processo nefasto – que cumpre dois anos neste mês de junho – a reconhecer que todo esse horror que estamos vendo se deve àquelas manifestações desmioladas. Esse é um passo positivo da esquerda, pois só entendendo como o país entrou nessa enrascada será possível sair dela e, sobretudo, talvez evitar que essa mesma esquerda volte a cometer erros tão dramáticos.
Mas, acima da tese de Boulos, há uma outra que explica ainda melhor por que a direita perdeu totalmente a vergonha na cara, ao ponto de sair por aí defendendo “menos escolas, mais prisões” ou a chaga secular da desigualdade.
No primeiro domingo de junho, a mesma Folha de São Paulo publicou entrevista da cientista política Marta Arretche, professora Livre-docente do Departamento de Ciência Política da USP e Diretora do Centro de Estudos da Metrópole. Nessa entrevista, ela explica como e por que os ataques furibundos da ultradireita e da ultraesquerda ao PT fizeram o fascismo pôr sua cabeçorra disforme para fora do buraco fétido a que estava confinada.
Marta Arretche acredita que a profunda crise do PT põe em risco a tendência de queda da desigualdade que vinha ocorrendo no país. Para ela, a “ameaça eleitoral da esquerda sempre funcionou como incentivo para que conservadores incluíssem a questão social em suas agendas” e que “Sem a ameaça, que nos últimos 25 anos foi personificada pelo ex-presidente Lula e pelo PT, toda a agenda social está sendo afetada”.
Ou seja: excrescências como a terceirização ou a redução da maioridade penal ou o avanço da homofobia se devem ao fato de que, como o PT e Lula teriam se enfraquecido politicamente, a direita sentiu-se forte para propor todo tipo de perversão política e econômica que acalenta.
Ninguém ousaria dizer que o governo Dilma e o próprio PT não contribuíram com essa situação. Como este blogueiro disse, ao vivo, em reunião recente de blogueiros com o ministro da Secretaria de Comunicação da Presidência, Edinho Silva, talvez o maior erro do PT tenha sido descuidar de sua base política, sobretudo dos movimentos sociais. Se não o tivesse feito, talvez não tivessem existido as fatídicas “jornadas de junho”.
No entanto, com tudo que está acontecendo no país é impressionante que a esquerda ainda não tenha se unido em um bloco sólido e emergencial destinado a barrar um avanço da ultradireita que, se não for contido, promoverá um desastre social neste país, o que irá desembocar em um agravamento da violência e da criminalidade, em forte concentração de renda e, no limite, em uma virtual ditadura “religiosa” e midiática”.