segunda-feira, 6 de julho de 2015

É pau, é pedra, é o fim de um caminho: um projeto Brasil, por Leonardo Boff em Carta Maior

03/06/2015 - Copyleft 
Leonardo Boff


Ou nos propomos a refundar o Brasil sobre uma nova visão de mundo ou seremos condenados a ser um apêndice do projeto que entrou em crise nos países centrais.



Este é o título de um artigo do editor Cesar Benjamin na revista Piaui de abril de 2015. Talvez seja uma das mais instigantes interpretações da mega-crise brasileira, fora do arco teórico do repetitivo e enganoso discurso a partir do PIB.
 
Afirmam-se aí, no meu entender, dois pontos básicos: o esgotamento da forma de fazer política do PT (lulismo) e a urgência de se pensar um projeto de Brasil, a partir de novos fins e de novos valores. Esse seria o grande legado da atual crise que Benjamin reputa como “a mais grave de nossa história”. Isso me remete ao que ouvi de J. Stiglitz, Nobel em economia, numa conferência em 2009 nos espaços da ONU, na qual estava presente: ”o legado da crise econômico-financeira de 2008 será um grande debate de idéias sobre que mundo nós queremos”. Pelo mundo afora e no Brasil esse parece ser realmente o grande debate. Outros chegam a formulá-lo de forma dramática: ou mudamos ou morremos. A percepção generalizada é que assim como as coisas estão, não podem continuar, pois, lá na frente um abismo nos espreita.
 
Face à crise atual ganham força as palavras severas de Celso Furtado num livro que vale a pena ser revistado: ”Brasil: a construção interrompida”(1993): “Falta-nos a experiência de provas cruciais,  como as que conheceram outros povos cuja sobrevivência chegou a estar ameaçada. E nos falta também um verdadeiro conhecimento de nossas possibilidades e, principalmente, de nossas debilidades. Mas não ignoramos que o tempo histórico se acelera e que a contagem desse tempo se faz contra nós. Trata-se de saber se teremos um futuro como nação que conta na construção do devenir humano. Ou se prevalecerão as forças que se empenham em interromper o nosso processo histórico de formação de um Estado-nação”(p.35). E conclui pesaroso: “tudo aponta para a inviabilização do país como projeto nacional”(p. 35).
 
Estimo que a grande e decisiva “prova crucial” chegou. Tenho colocado com frequência esta alternativa: ou nos propomos  refundar o Brasil sobre uma nova visão de mundo e de futuro ou seremos condenados a ser um apêndice do projeto-mundo que entrou em crise nos países centrais, alastrando-se por todo o sistema e que não consegue encontrar uma saída viável. Temos vontade de dar esse passo que nos renove nos fundamentos? Benjamin pondera: “Nosso sistema político gira em falso. Governa a si mesmo, em vez de governar o Brasil. Presos nessa armadilha, tornamo-nos uma sociedade de vontade fraca, que não consegue canalizar sua energia para o que verdadeiramente importa. Sociedades assim perdem a capacidade de se desenvolver, ainda mais em um contexto internacional, como o atual, em que as disputas se acirram”. E conclui:”Precisamos encontrar gente nova, organizada de maneira nova, que, em vez de tentar se adaptar ao que a sociedade é, ou parece ser, aceite correr os riscos de anunciar o que ela pode vir a ser, para impulsioná-la”. Essa gente nova é que estamos buscando e que Celso Furtado tanto almejava.
 
O meu modesto sentimento do mundo me diz que importa realizar as seguintes transformações se quisermos sair bem da crise e termos um projeto autônomo de nação:
 
-assumir o paradigma contemporâneo que já possui um século de formulação: o eixo estruturador não será mais a economia sustentável e o PIB, mas a vida. A vida da Terra viva, a diversidade da vida e a vida humana. O capital material esgotado, dará lugar ao capital humano-cultural inesgotável, permtindo-nos ser mais com menos e integrar todos na mesma Casa Comum. Tudo o mais deve colocar-se a serviço dessa biocivilização, chamada também de “Terra da Boa Esperança”(Sachs, Dowbor). A continuar, o paradigma atual nos levará fatalmente ao pior dos mundos.
 
-Fazer uma verdadeira reforma política pois a que foi feita não merece esse nome e é fruto de reles fisiologismo.
 
-Fazer uma reforma tributária para diminuir as desigualdades do país, um dos mais desiguais do mundo, vale dizer, em termos ético-políticos, mais injustos.
 
-Fazer uma reforma agrária e urbana já que a ausência da primeira levou a que prevalecesse o agronegócio exportador em detrimento da produção de alimentos e fizesse que 83% da população migrasse para as cidades, geralmente, para as periferias, com má qualidade de vida, de saúde, educação, transporte e de infra-estrutura.
 
Retomo o título de Benjamin: “é pau, é pedra, é um fim de caminho” não só o fim do atual projeto-Brasil mas o fim do projeto-mundo vigente.
 
Dentro de pouco, a economia se orientará pelo ecológico e pelos bens e serviços naturais. Nisso podemos ser a grande potência pelos imensos recursos que temos. O mundo precisará mais de nós do que nós do mundo.
 
Quem toma a sério a reflexão de uma ecologia integral praticamente ausente nas discussões econômicas, o aquecimento global e os limites físicos da Terra, estas minhas palavras não soam apocalípticas, mas realísticas. Temos que mudar se quisermos continuar sobre este planeta Terra, pois, por causa de nossa irresponsabilidade e inconsciência, ele já não nos suporta mais.
 
Veja meu livro Cuidar da Terra-proteger a vida: como evitar o fim do mundo, Record 2010.

Pedaladas políticas


JOSÉ DE SOUZA MARTINS - O ESTADO DE S. PAULO
04 Julho 2015 | 16h 00

Festa pela ciclovia mostra o contramovimento da Prefeitura tentando reocupar o espaço do protesto social

A compreensivelmente carnavalesca inauguração da ciclovia da Avenida Paulista cobre mais do que o canteiro central da histórica e emblemática rua de São Paulo. Cobre largo período de mudanças na concepção paulistana do urbano e das funções das ruas e avenidas na vida cotidiana de uma cidade que tem passado por transformações mais ou menos abruptas. A Paulista surgiu há mais de um século, concebida e planejada pelo uruguaio Joaquim Eugênio de Lima, aberta em seguida à abolição da escravatura, quando os primeiros bondes puxados a burro substituíam cadeirinhas e redes carregadas no ombro de escravos. A Paulista foi o lugar que anunciou um novo modo de morar, de viver e de pensar, uma nova vida doméstica e familiar, de gente muito rica servida não mais por mucamas, mas por serviçais que até falavam francês. Em muitas dessas casas, francês era a língua da conversação cotidiana. O sotaque da Paulista era o da nova Pauliceia e do novo Brasil.
Desfiles: corsos, festas dos barões e, agora, as bikes: palco do imaginário popular
Desfiles: corsos, festas dos barões e, agora, as bikes: palco do imaginário popular
O espigão do Caaguaçu fora escolhido para a nova rua e o novo bairro porque se acreditava que os lugares altos eram sadios, arejados pela brisa permanente, o oposto dos baixios do Tamanduateí e do Anhangabaú insalubres pelos miasmas doentios. A cidade era agora republicana e parecia ter um plano, o da ordem e do progresso, na saúde pública e na saúde política. Não por acaso, numa ponta da Paulista se concentrariam os grandes hospitais e na outra os cemitérios - o do Araçá, o do Redentor e o do Santíssimo Sacramento, mais tarde o São Paulo. Era para tirar os enterros do centro. Tudo muito higiênico e funcional, até socialmente no dito popular alegórico de duplo sentido: “A Avenida Paulista é que nem casamento: começa no Paraíso e termina na Consolação”.
Mas não é de hoje que a Paulista atrai a multidão, como nessa inauguração da ciclovia. Tornou-se uma espécie de palco do imaginário do povo. Ficaram famosos os corsos carnavalescos já nos anos 1910, até com suas tragédias de bastidor, como a que culminaria na navalhada no rosto da mais bela cortesã de São Paulo, Nenê Romano, em 1918, ordenada por uma noiva enciumada. Nenê seria assassinada em 1923 pelo advogado e amante, Moacyr Piza, poeta e boêmio. 
Já em 1917, o povão tentara invadir a Paulista para uma demonstração política na frente da casa do secretário da Justiça, quando conduzia ao Araçá o caixão do operário José Martinez, ferido e morto a tiros pela Força Pública, na frente da Tecelagem Mariângela, do Brás, durante a greve geral. Policiais de armas embaladas impediram a demonstração.
Tornou-se comum que operários, nos domingos, levassem a família de bonde até a Paulista para ver os palacetes dos ricaços para os quais trabalhavam. Mas também porque a avenida era lindíssima, com os jardins das residências, como ainda se vê na Casa das Rosas, e o Parque Siqueira Campos, resto de Mata Atlântica sobrevivendo dentro da cidade. O palacete do conde Matarazzo era o preferido. Seus operários vinham do Brás, da Mooca, do Belenzinho, da Água Branca, de São Caetano, com a roupa de missa. Postavam-se do lado de lá da rua para mostrar à esposa e aos filhos o monumento da riqueza que seu trabalho ajudara a construir. Não raro para dizer-lhes que Matarazzo era imigrante, viera com uma mão atrás e outra na frente, trabalhara muito, comera pão com banana até se tornar o homem mais rico do Brasil. Era lenda, que o próprio Matarazzo difundia. Mas o proletariado gostava e se via nela. 
Não menos carnavalescos os efeitos de rua do casamento de uma das netas do Conde, em 1945. A multidão acorreu à calçada fronteira, do outro lado, para ver os convidados chegarem para a festa de mais de um dia, gente de poder e de dinheiro. A guerra mal havia acabado. Ainda se padecia o racionamento do pão, as filas para comprá-lo, mas ali não havia racionamento algum. Melhor ver a abundância do outro do que a escassez própria. Era o desfile das grandes contradições sociais no espetáculo do conformismo de um fim de era.
O enredo dos espetáculos da Paulista mudou após o regime militar. Ganhou conotação política, a avenida passou a abrigar, também, o protesto social. Ainda que misturando temas não necessariamente convergentes, os protestos da Paulista vão hoje da afirmação de identidades, como no caso da Parada Gay, à reivindicação de direitos, como nos casos dos protestos sindicais. O advento da multidão como novo sujeito da realidade urbana do País, encontrou na Paulista o cenário sobrante da escassez de espaços para demonstrações públicas na cidade. Algo inerente ao que é próprio das metrópoles modernas não tem aqui o lugar adequado para a teatralidade política. A ocupação da Paulista por diferentes multidões inventa o novo cenário da política. Assim como diversos sujeitos do povo a ocupam para reivindicar, protestar e afirmar o que é basicamente a sociedade contra o Estado, a inauguração festiva da necessária ciclovia mostra o contramovimento do governo municipal tentando reocupar e dominar o espaço do protesto social.
JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO. PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP. ENTRE OUTROS LIVROS, AUTOR DE UMA SOCIOLOGIA DA VIDA COTIDIANA (CONTEXTO)

Dias rudes, por MOACIR ASSUNÇÃO - O ESTADO DE S. PAULO



04 Julho 2015 | 16h 00

Há 91 anos, o governador se exilava na Penha, o presidente bombardeava civis, que, famintos, comiam pombos e ratos

Em um 5 de julho como hoje, numa madrugada enevoada de inverno paulistano, 91 anos atrás, a cidade começava a viver uma história que a conduziria a uma das maiores batalhas travadas em solo urbano da América Latina: a Revolta Tenentista de 1924. O saldo desse episódio seria sangrento: 503 mortos, 4.864 feridos (dois terços eram civis), quase 2.000 prédios destruídos, o êxodo de cerca de 300 mil moradores da capital, que contava então 700 mil habitantes e alguns vestígios de destruição que podem ser vistos ainda hoje.
No início, foi uma surpresa. Ninguém entendeu nada quando tropas rebeldes do Exército, aliadas com a Força Pública Estadual (atual Polícia Militar), um verdadeiro exército regional na época, com artilharia e aviação, começaram a atacar alvos civis. E entendeu-se menos ainda quando uma bomba caiu no Mosteiro de São Bento exatamente no momento em que se celebrava uma missa em homenagem aos revolucionários de 1922. Houve pânico, correria. Então, outro morteiro, agora lançado da torre da Estação da Luz, tombou sobre o Liceu Coração de Jesus, deixando um aluno ferido. Alvo errado, porque a bomba se destinava ao Palácio de Campos Elísios, logo ali na frente, na Avenida Rio Branco, residência oficial do presidente do Estado (como se chamavam os governadores na época) Carlos de Campos. E esse foi só o primeiro dia.
Destruição do Cotonifício Crespi, na Mooca
Destruição do Cotonifício Crespi, na Mooca
Foi na manhã seguinte que a população soube com mais clareza que os atacantes eram tenentes do Exército sob a liderança dos irmãos Távora (Joaquim e Juarez), Eduardo Gomes, Custódio de Melo e outros. Todos haviam participado do levante dos 18 do Forte de Copacabana ocorrido dois anos antes no Rio contra o então presidente da República Arthur Bernardes. Vencidos na capital federal, os tenentes rebeldes vieram se esconder em São Paulo, onde passaram a viver camuflados sob nomes falsos. Para retomar a tentativa de deposição de Bernardes, aqui encontraram como aliado o major fiscal da Força Pública, Miguel Costa.
Aos poucos, os rebeldes foram tomando pontos estratégicos da cidade, como os quartéis da Luz, as estações da Luz e Sorocabana e os Correios, enquanto atacavam a casa do governador. A cidade literalmente parou. Os poucos bondes que circulavam traziam exemplares minguados de jornais como o Estado,Correio Paulistano e Fanfulla (da comunidade italiana) com pedidos desesperados de informações sobre pessoas desaparecidas.
Depois da paralisia veio a acefalia. O presidente Carlos de Campos, há apenas dois meses no cargo, saiu dos Campos Elísios depois que rebeldes, posicionados nos altos do Araçá, acertaram o alvo e bombardearam o Palácio. Campos, primeiro, foi para a Secretaria de Justiça, no atual Páteo do Colégio, e, quando esta também foi atacada com tiros de canhão, refugiou-se em Guaiaúna, na época uma aprazível vila cercada de montanhas ao lado do atual bairro da Penha, na Zona Leste. Uma enorme ironia da história: enquanto o “governador” fugia, no dia 9 de julho, data cara para a história paulista, um emissário de Miguel Costa o procurava para entregar uma carta, propondo a rendição dos rebeldes, em troca de anistia. Quando chegou ao palácio e o encontrou desabitado, o soldado comunicou o fato a Costa, que mandou o tenente João Cabanas ocupá-lo imediatamente – no popular “foi pra roça perdeu a carroça”.
O plano dos tenentes, que não se concluiu, era tomar a cidade rapidamente e embarcar uma tropa de soldados do Exército e da Força Pública para o Rio, onde derrubariam Bernardes. No entanto, acabaram ficando isolados e cercados em São Paulo. De seu refúgio na Penha, então um importante entroncamento ferroviário, Campos, com apoio do ministro da Guerra, Setembrino de Carvalho, conseguiu reunir 18 mil homens, canhões com alcance de 11 quilômetros e tanques franceses (uma arma jamais usada no Brasil) e aviões bombardeiros Breguet. Esse poderoso arsenal entrou em ação apenas seis dias após o início da revolta. Naquela semana, tropas da Marinha conseguiram destruir o QG rebelde instalado onde hoje fica o quartel da Rota, na avenida Tiradentes. Atiravam usando como referência e mira para os canhões a chaminé da antiga usina eletricidade da Rua João Teodoro, que ainda guarda marcas de estilhaços. Palco de combates renhidos, a Igreja da Glória, no Cambuci, também preserva uma marca daqueles tempos. O anjo sobre a porta principal perdeu parte do braço nos combates – e assim permanece. A Igreja da Glória, com seu jeitão de castelo fortificado, era estratégica: ficava em posição privilegiada numa elevação do terreno. Foi defendida por imigrantes húngaros e até ganhou um poema de Menotti Del Picchia, que diz assim: “Também nós temos – ó paulistas – nossa martirizada igreja, a nossa heroica e santa catedral de Rheims. Ela se alteia carbonizada, roída pelas balas de carabinas, mordida pelos estilhaços das granadas, furadas pelos obuses, no alto de uma colina, dominando a Mooca longínqua e o fagulheiro do Brás. Está de pé ainda. Parece um soldado baleado, morto no seu posto.”
O governo federal, com a cumplicidade do estadual, usava, para combater a revolta, o método de ataque conhecido como “bombardeio terrificante”, em que os tiros são disparados a esmo, sem destino certo, para fazer a população se revoltar contra os ocupantes. Esse mesmo método havia sido usado pelos alemães contra os franceses e belgas na I Guerra e condenado pelo mundo civilizado. Aqui, o Estado o utilizou contra seus próprios cidadãos. Resultado óbvio: dois terços dos mortos e feridos eram civis, sem relação com a revolta.
Postados no pátio da Igreja da Penha e nas colinas da Vila Matilde, locais de topografia alta em uma cidade que ainda não tinha edifícios, os canhões atiravam impiedosamente. Miravam, principalmente, fábricas, como o Cotonifício Crespi, na Mooca (hoje um hipermercado), a Duchen e a Antarctica, mas também residências. Por isso, as maiores vítimas não eram os militares rebeldes, mas os civis, que viviam nos cortiços da região do Tamanduateí, na Várzea do Carmo (atual Parque D. Pedro II), uma área alagada de terrenos baratos, onde haviam se instalado imigrantes italianos e espanhóis, operários das numerosas fábricas da região.
Eram os “carcamanos”, como os chamavam os paulistas antigos. Entre as vítimas estavam, por exemplo, os De Giani, italianos do Bom Retiro. Quando dois filhos do casal morreram sob impacto das bombas, a mãe, traumatizada, não conseguiu mais amamentar os dois caçulas gêmeos, que morreram de inanição. Um terceiro filho sobreviveu, mas perdeu o pé. Ficou infame também o “massacre do Theatro Olympia”, localizado na atual Avenida Rangel Pestana, e usado como abrigo por moradores do Brás, Mooca e Belenzinho expulsos de suas casas pelos combates. Uma bomba do exército legal destruiu o lugar, matando 30 pessoas.
Com a intensificação dos ataques, a fome começou a assombrar as casas dos paulistanos. Nas regiões proletárias, muitos sobreviviam escondidos em porões, comendo pombos, ratos e o que aparecesse. E não demoraram a surgir os saques por parte da população faminta. Foram saqueados, em alguns casos com apoio dos rebeldes, o Mercado Municipal da Rua 25 de Março, os armazéns Puglisi e Gamba, na Mooca, e os Armazéns Matarazzo, no Largo do Arouche. No Brás, espanhóis esfomeados carnearam, ainda vivos, bois de uma manada desgarrada que passou por lá. Segundo uma testemunha, “os gritos dos bois pareciam gritos humanos”.
À certa altura, uma comissão composta pelo prefeito Firmiano Pinto, que os rebeldes permitiram continuar no cargo, o presidente da Associação Comercial, José Carlos de Macedo Soares, o arcebispo metropolitano D. Duarte Leopoldo e Silva, os diretores do Estado, Julio Mesquita, e da Liga Nacionalista, Frederico Steidel, tentou negociar com o governo, pedindo a “intervenção caridosa” do presidente Arthur Bernardes para cessar o bombardeio, sob risco de que a cidade fosse riscada do mapa. Não adiantou.
Enterrar os mortos era uma impossibilidade. Por absoluta falta de condições de se deslocar até os cemitérios do Araçá e da Consolação, os mais importantes da época, muita gente foi inumada em quintais e praças. A fuga desesperada da cidade foi uma opção só até as passagens serem fechadas. Os que puderam debandaram em automóveis, bicicletas, trens de carga, a pé e até em carros funerários. Somente Campinas abrigou 50 mil fugitivos da capital. 
Em 26 de julho, aviões governamentais jogaram panfletos que convidavam a população a abandonar a cidade, largando os rebeldes à própria sorte, já que seria executado um bombardeio ainda mais drástico. No mesmo dia, o general rebelde Isidoro Dias Lopes publicou nos jornais um texto em que assegurava que não seria “o coveiro de São Paulo.” No dia 28, os revoltosos embarcaram em 11 trens de carga com 3,5 mil homens, artilharia, comida, cavalos e gêneros alimentícios em direção a Bauru. Na mesma data, Carlos de Campos retomou o Palácio dos Campos Elísios. Estava encerrada a Revolução Tenentista de 1924.
Aos rebeldes coube ainda um lugar a mais na história. Refugiados no Paraná, juntaram-se a tropas vindas do Sul e formaram a famosa Coluna Prestes, que percorreria 25 mil quilômetros pelo Brasil enfrentando forças federais. À cidade, além dos vestígios na Luz e no Cambuci, restaram lembranças como a carta que Francisca Spinelli, moradora sitiada no Brás, enviou a sua amiga Leopoldina Ferreira, de Piracicaba: “Durante todo a noite e o dia de hoje têm se dado bombardeios horríveis! As balas passam sobre nossas cabeças, assobiando terrivelmente. Espera-se a todo momento ser-se vítimas dessas monstruosas granadas. O bairro atingido agora pelas forças do governo é esse. Já morreram diversas pessoas aqui na rua, e aqui ficam, sem o auxílio de ninguém. As granadas caem, impiedosas, por estas redondezas. Temos nos escondido no porão. Fugir não posso. Além das ruas estarem intransitáveis, eu não tenho para onde ir. Imagina que 10 mil homens do governo cercaram a cidade e despejam sobre ela tiros e mais tiros de canhão”. 
MOACIR ASSUNÇÃO É JORNALISTA, HISTORIADOR E PROFESSOR DA UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU. ESTE MÊS LANÇA SÃO PAULO DEVE SER DESTRUÍDA – A HISTÓRIA DO BOMBARDEIO À CAPITAL NA REVOLTA DE 1924 (RECORD)