terça-feira, 23 de setembro de 2014

Será que Deus existe?, Por João Pereira Coutinho na Folha


Deus não existe, afirmou o cientista Stephen Hawking, de passagem pela Espanha. Em entrevista a um jornal de "nuestros hermanos", Hawking repetiu a tese de que o Universo se criou a partir do nada e que o ser humano acabará por saber tudo sobre tudo no futuro sem precisar de uma ajuda celestial.
Longe de mim contestar Hawking: o homem é um gênio, dizem, e com os gênios não se brinca. Embora me pareça bizarra a declaração de um cientista –repito: de um cientista, não de um vulgar mortal– de que o futuro será assim ou assado em matéria de conhecimento humano.
Karl Popper (1902-1994), um dos mais importantes filósofos da ciência do século 20, mostrou como essa crença é ridícula (e até anticientífica). Motivo óbvio: o conhecimento é uma aventura em aberto. O que significa que aquilo que saberemos amanhã é algo que desconhecemos hoje; e esse "algo" pode mudar as verdades de ontem. Como?
Derrubando velhos dogmas e inaugurando novas perplexidades. Sempre foi assim –o imprevisto é um dos atores principais na história da ciência. É razoável presumir –presumir, não afirmar categoricamente– que sempre assim será.
Um cientista que diga como vai ser o futuro, sem obviamente conhecer todos os fatores que irão moldar esse futuro, não é um cientista. É um charlatão.
Como Karl Marx (1818-1883), por exemplo, um dos alvos preferidos de Popper e da sua crítica ao "historicismo". Marx pretendia fornecer aos homens as "leis científicas da história": um processo de luta entre classes que acabaria por derrubar o sistema capitalista, conduzindo à "ditadura do proletariado" e a uma sociedade comunista.
Como é evidente, as leis "científicas" de Marx nada tinham de ciência. Eram meras profecias, marcadas por uma radical indeterminação, que nem como profecias se cumpriram: a revolução não emergiu "inexoravelmente" em países capitalistas (como a Inglaterra); ela foi violentamente imposta em antros de pobreza e atraso industrial, como na Rússia campesina e analfabeta de 1917.
Mas voltemos a Deus: será que Ele existe? Ou devemos curvar-nos perante a sapiência do prof. Hawking e abandonar essas ilusões primitivas?
Uma boa forma de responder à pergunta encontra-se na entrevista notável que o filósofo Keith DeRose, professor na Universidade Yale e um declarado agnóstico, concedeu ao "New York Times".
É impossível resumir aqui a complexidade da conversa. Mas é possível chegar ao ponto capital dela: quando existe uma imensa maioria de pessoas que acredita na existência de Deus, é preciso um argumento poderoso (e definitivo) para demonstrar o seu contrário.
DeRose nunca encontrou esse argumento, apesar de conhecer o mais clássico de todos eles: como conciliar a existência de Deus com a presença do Mal no mundo? O filósofo não perde tempo com a resposta, claro. Mas um conhecimento vago da discussão teológica através dos séculos mostra como a existência de Deus não anula necessariamente o livre arbítrio das suas criaturas.
Isso não significa, logicamente, que DeRose recusa a posição ateia e aceite a posição teísta. Pelo contrário: os argumentos cosmológicos avançados racionalmente pelos teístas –tudo tem uma causa; Deus é a causa das causas etc.– também não convencem o autor pela sua fraqueza, digamos, circular.
Em que ficamos, então?
Simples: em lado nenhum. Ou, dito de outra forma, Deus não é uma questão rigorosamente filosófica. E discutir a sua existência (ou inexistência) em termos filosóficos (leia-se: "racionais") é um diálogo de surdos, que tentam falar racionalmente sobre um assunto do qual não possuem qualquer prova.
Ou então é um diálogo de cegos, que insistem em descrever a paisagem que imaginam ter à frente.
Deus é uma questão de fé –esse mistério e, para muitos, essa graça. E a "fé" é um assunto ligeiramente diferente de equações matemáticas ou observações de telescópio.
Um cientista que não entende isso não é apenas um ignorante em matéria religiosa. É sobretudo um ignorante em matéria científica. 
joão pereira coutinho
João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política. É colunista do 'Correio da Manhã', o maior diário português. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro 'Avenida Paulista' (Record) e é também autor do ensaio 'As Ideias Conservadoras Explicadas a Revolucionários e Reacionários' (3 Estrelas). Escreve às terças na versão impressa e a cada duas semanas, às segundas, no site.

    Minhocão: derruba ou faz um parque?


    O Minhocão tem os dias contados. Tanto que na sociedade civil já se discute se ele deve ser derrubado ou virar jardim suspenso.
    Como você vai pagar a conta, é bom formar opinião.
    Na semana passada estiveram em São Paulo os responsáveis pelo parque High Line, em Nova York, que, sobre uma via elevada, tem servido de inspiração para os que sonham ver um jardim construído sobre o horrível viaduto.
    Robert Hammond, coautor do livro "High Line: A História do Parque Suspenso de Nova York" (BEÎ Editora), ficou fascinado com o Minhocão: "Ele é muito maior do que o High Line. Lá não havia residências dando para o elevado, só depósitos e empresas. Os nova-iorquinos não conheciam a via que deu origem ao parque. Aqui, pessoas passeiam por ela aos domingos".
    Hammond diz que se o elevado for derrubado, deixará em seu lugar apenas uma avenida movimentada, mas se virar um jardim, a cidade ganha um cartão postal.
    Herança podre da ditadura militar, o Minhocão sobreviveu intocado à democracia. A ligação leste-oeste atravessando o centro de São Paulo foi construída a toque de caixa por um prefeito biônico (Paulo Maluf), nomeado pelo ditador marechal Costa e Silva. Pronta, em 1970, a obra recebeu o nome do tirano, que assim segue torturando a cidade.
    Ao longo desses seus 43 anos, a via elevada acabou por se tornar uma unanimidade negativa (só a voz anasalada de seu criador às vezes o defende). O que o mantém aberto é a insegurança dos governantes quanto ao impacto de seu fechamento para o trânsito.
    Na última eleição, os principais candidatos (Haddad, vencedor, e Serra, segundo) disseram que gostariam de eliminá-lo se houvesse alternativa.
    A alternativa já existe, prevista na Operação Urbana Lapa-Brás.
    Também aparece em planos recém apresentados à prefeitura para o projeto Arco do Tietê: trata-se de uma avenida paralela e mais longa que o Minhocão, construída no leito por onde correm várias linhas de trem no sentido leste-oeste.
    Há um debate entre urbanistas: essa via deve ficar ao nível do trilho dos trens ou as vias férreas devem ser enterradas, abrindo espaço para quadras urbanizadas e parques, com a avenida correndo pela superfície?
    O professor emérito de Arquitetura Cândido Malta, da FAU-USP, secretário de Planejamento da prefeitura entre 1976-1981, defende a avenida ao lado dos trilhos: "O custo e o prazo de realização são menores. Mais cedo se poderá fechar o Minhocão".
    Miguel Bucalem, professor da Poli-USP, secretário de Desenvolvimento Urbano da prefeitura entre 2009-2012, defende o enterramento dos trilhos e a urbanização das áreas liberadas: "Essa solução leva mais tempo, mas cria um eixo de desenvolvimento urbano que beneficiará a cidade ao longo dos próximos 100 anos".
    Não há orçamentos precisos para cada uma. Cálculos chutados por pessoas experientes em obras públicas apontam algo em torno de R$ 700 milhões para a solução ao nível do chão, com inauguração em quatro anos; R$ 3,5 bilhões custaria a obra que enterra os trilhos, com prazo em torno de 15 anos.
    Uma vez escolhida a solução para a nova ligação leste-oeste, junto às linhas férreas que passam pela Luz, você deverá decidir o que fazer com o Minhocão: derrubar ou transformá-lo em parque? 
    leão serva
    Leão Serva, ex-secretário de Redação da Folha, é jornalista, escritor e coautor de 'Como Viver em SP sem Carro'.

    Trens regionais, Opinião OESP


    O ESTADO DE S.PAULO
    23 Setembro 2014 | 02h 05

    Estudos que indicam para breve a saturação das Rodovias Bandeirantes e Anhanguera levaram o governo do Estado a apressar a construção do sistema de trens regionais ligando a capital ao interior. Ela começará com uma linha entre São Paulo e Americana, com 135 km de extensão. O edital para esse primeiro trecho do sistema deve ser lançado no ano que vem e a conclusão da obra está prevista para 2020. É de esperar que dessa vez o governo cumpra a promessa, feita pela primeira vez no ano passado, de começar a tirar do papel esse projeto, que é da maior importância para o Estado.
    A Secretaria Estadual de Logística e Transportes dispõe de dados que indicam estarem aquelas duas rodovias caminhando rapidamente para uma situação insustentável, que só poderá ser evitada oferecendo-se aos que por ela circulam diariamente a alternativa de viajar em trens confortáveis, rápidos e com tarifas acessíveis. Prevê-se que a saturação começa em 2020 e que em 2030 a Anhanguera atingirá o nível máximo de esgotamento entre os quilômetros 25 e 38, durante um longo período, das 6 às 19 horas.
    Em 2012, isso só ocorria no horário de pico da manhã, entre 6 e 9 horas - e num único sentido -, no trecho entre os quilômetros 49 e 52, o que mostra como a situação está se deteriorando rapidamente.
    Começar a implantação do sistema de trens regionais por essa linha é, portanto, decisão ditada por uma necessidade urgente. Ela tem a vantagem de sua construção ser relativamente fácil. Não será preciso construir túneis e outras obras de porte, porque se aproveitará - devidamente recuperada e modernizada - a velha malha das antigas São Paulo Railways e Companhia Paulista de Estradas de Ferro, hoje operada por serviços de carga. Essa linha, cujo custo estimado é de R$ 5 bilhões, poderá transportar 68,5 mil passageiros por dia.
    O tempo de viagem até Campinas, partindo da Estação Água Branca, na Lapa, será de 1 hora e 4 minutos e até Americana, de 1 hora e 29 minutos. Com isso, dada a saturação das duas rodovias e tarifas que, segundo o presidente da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, Mário Manuel Bandeira, deverão ser "atrativas", o governo espera conquistar boa parte dos que hoje fazem aqueles percursos de carro.
    O modelo para a construção da linha São Paulo-Americana é o de Parceria Público-Privada (PPP), já adotado na Linha 6 - Laranja do Metrô. Em 2012, uma manifestação de interesse público (MIP) por esse projeto foi apresentada ao governo do Estado por consórcio formado pelas empresas Estação da Luz Participações (EDLP) e BTG Pactual, o que é visto como uma indicação de que não será difícil de encontrar parceiros privados para tocá-lo.
    Os trens regionais - o próximo, de acordo com plano anunciado pelo governo no ano passado, vai ligar São Paulo a Sorocaba, São Roque, São José dos Campos, Taubaté e Pindamonhangaba - são um elemento essencial para enfrentar os desafios criados pela formação da chamada Macrópole Paulista, que congrega os municípios localizados no raio de 200 quilômetros de São Paulo. Esse processo de conurbação é um dos mais importantes em curso no mundo.
    Seus números são impressionantes. Essa macrópole engloba três regiões metropolitanas - as de São Paulo, Baixada Santista e Campinas, além de aglomerados urbanos como São José dos Campos, Jundiaí, Sorocaba e Piracicaba - e reúne 153 dos 645 municípios do Estado, com 30 milhões de habitantes. Eles produzem 80% de toda a riqueza de São Paulo e representam 27% do PIB do País. Cerca de 2 milhões de pessoas saem diariamente de seus municípios para trabalhar ou estudar em outros. Metade delas vem para a região metropolitana de São Paulo.
    Está evidente que um novo sistema de transporte coletivo é um dos maiores desafios criados por essa realidade. Outro é criar estruturas administrativas capazes de enfrentar um grande número de problemas que transcendem as fronteiras municipais. Essa necessidade, que já existia nas regiões metropolitanas, foi multiplicada várias vezes.