quarta-feira, 9 de julho de 2014

A INVASÃO URBANA COMO PRÁTICA POLÍTICA, no Aliás do Estadão


PABLO PEREIRA - O ESTADO DE S.PAULO
06 Julho 2014 | 02h 02

Professor de classe média, que lidera MTST, defende pressão popular para aumentar base do movimento e é criticado por cerco a imóveis em São Paulo

Ele fez curso de Filosofia na Universidade de São Paulo (USP), mora em casa própria, diz que vive do salário de professor e lidera invasões de terrenos urbanos pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Guilherme Castro Boulos, de 32 anos, casado com uma sem-teto, dois filhos, nascido em uma família de classe média paulistana, se diz um marxista com a missão de acumular forças políticas para a revolução socialista. Para atingir sua meta, ele intensifica ações urbanas dos sem-teto e põe proprietários e mercado imobiliário em alerta.
Com base em sete Estados - mais de 50 mil famílias, 20 mil delas em São Paulo -, Boulos chefiou a pressão que durou sete dias na frente da Câmara Municipal da capital para abrir brecha no Plano Diretor e beneficiar uma dezena de assentamentos do MTST, entre eles o Copa do Povo, em Itaquera, na zona leste.
"Vitória, vitória!", gritava Boulos ao microfone no alto do carro de som diante da Câmara, convocando os sem-teto para o churrasco de comemoração após a votação da nova lei de planejamento urbano, que vai vigorar pelos próximos 16 anos. Quando o acampamento no Viaduto Jacareí terminou, estava aberta a porta para a tentativa do MTST de obter a posse de terrenos como o da Construtora Viver, na Rua Malmequer do Campo, que está coalhada de barracos de lona dos sem-teto desde o dia 2 de maio, a cerca de 4 quilômetros do Itaquerão. Ao descer do caminhão, Boulos quase não conseguiu andar. Cercado, foi abraçado e festejado pelos companheiros.
Criticado por usar a política de invasões de imóveis como forma de pressão, Boulos já foi chamado de "fascista à la Venezuela" pelo vereador Andrea Matarazzo (PSDB), em entrevista à Rádio Jovem Pan, durante a votação. Matarazzo disse que o movimento age "na base do coquetel molotov, da gritaria e da depredação".
Para o vereador Floriano Pesaro (PSDB), a atuação de Boulos no País é "inaceitável". Pesaro diz que já foi procurado por empresas preocupadas com as invasões em São Paulo. Ele ressalta que há 680 imóveis tomados à força na cidade, segundo a Polícia Militar. "É um absurdo o que o MTST está fazendo. Isso estimula as invasões e prejudica os investimentos", alega Pesaro, que estuda projeto para impedir que a Prefeitura use imóveis invadidos em programa de habitação, como ocorre com o Movimento dos Sem Terra (MST). Na Viver, ninguém comenta o caso. A ordem é o silêncio.
Para o vereador José Police Neto (PSD), acusado pelos sem-teto de tentar favorecer empreiteiras, o MTST "comemorou uma derrota" para não assumir que perdeu. "Ele não conseguiu o que queria, que era furar a fila", declara o vereador. "O que o Boulos está fazendo é negócio", diz Police.
Ex-militante estudantil do Partido Comunista Brasileiro (PCB), corintiano, ex-integrante da Gaviões da Fiel, torcedor da seleção de Felipão, Boulos se diz também um sem partido. A causa política imediata dele passa por dois espaços bem definidos.
O primeiro, assegurar a posse de áreas para o MTST construir moradias nas periferias de grandes cidades. A ferramenta para essa expansão é a mobilização dos sem-teto e de gente que mora de aluguel. De olho em terrenos para habitação popular, e usando o programa Minha Casa Minha Vida, do governo federal, como fonte de financiamento, Boulos repete nas cidades a prática de pressão que o MST exerceu no campo, principalmente a partir de 1994.
Com especialização em Psicologia pela USP, onde entrou em 2000, ele tem bem claro que seu segundo objetivo é bem mais ousado: acumular apoios de massas das periferias urbanas para uma revolução socialista, discurso encontrado também no ideário dos sem-terra.
Filho do médico infectologista Marcos Boulos, que não fala sobre ele a pedido do militante dos sem-teto, o ativista entrou no MTST em 2002, influenciado pelas técnicas de organização ensinadas por líderes como João Pedro Stedile e José Rainha, artífices de centenas de acampamentos de lona preta em estradas e fazendas que o MST escolheu para reforma agrária nas últimas duas décadas.
Na esteira do enfrentamento rural a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, o MTST foi criado em 1997. Desde então dá suporte para mobilização nas periferias das grandes cidades. Nasceu no auge da ação dos sem-terra, após o massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido em abril de 1996, que provocou a criação do Ministério Extraordinário de Política Fundiária, entregue por FHC a Raul Jungmann, então presidente do Ibama, mais tarde, em 2003, eleito deputado pelo PPS. Boulos, a esta altura, vivia na militância estudantil. Primeiro, secundarista. Depois, na USP.
No ano da primeira eleição do presidente Lula (2002), a vizinha Argentina também passava por delicados momentos políticos e econômicos. E os sem-teto de Buenos Aires estavam em polvorosa. Em junho daquele ano, foram reprimidos pelo governo de Eduardo Duhalde.
Boulos estava em Buenos Aires estudando o assunto. Lá, conheceu piqueteiros do acampamento da ponte Pueyrredón, local da repressão governamental, na divisa da capital com Avellaneda, onde a polícia atacou e matou dois manifestantes, Darío Santillan e Maximiliano Kosteki. Três anos depois do crime, dois policiais, Alfredo Fanchiotti e Alejando Acosta, foram condenados à prisão perpétua pelos assassinatos.
Boulos acompanhou de perto esse episódio. E viu o trabalho de um grupo de psicanalistas argentinos que atendiam sobreviventes e a cerca de 30 manifestantes que ficaram feridos na desocupação da ponte. Ele recorda que foi entre os sem-teto portenhos que se decidiu pela psicanálise, influenciado pelo grupo de lacanianos seguidores de Enrique Pichón-Riviére, fundador do Instituto de Psicologia Social de Buenos Aires. De lá voltou ao Brasil, concluiu o curso superior por este viés, em 2006.
"Guilherme tem uma excelente capacidade de articulação e um discurso claro e objetivo", explica padre Jaime Clowe, religioso que apoia o MTST em São Paulo. "É um líder, um homem dedicado à causa, uma pessoa de vida simples, que merece ser apoiada", afirma Clowe. Morador do Jardim Ângela, o padre acompanha a operação de Boulos no MTST na região sul e periferia da capital há tempos. Para o religioso, que trabalha com os sem-teto do assentamento Nova Palestina, na região de M'Boi Mirim, onde "8 mil famílias estão acampadas desde novembro", a "questão da moradia no Brasil é urgente".
O padre acrescenta que as mobilizações são legítimas. Mas ele discorda de algumas práticas dos sem-teto. "Sou contra quando fecham estradas e ruas e atrapalham a vida de muita gente", declara. E conclui: "Mas esse jovem deve ser apoiado na luta", afirma.
Sozinho. A primeira experiência efetiva de Boulos com os sem-teto ocorreu em um acampamento Carlos Lamarca, em Osasco, invasão ocorrida em 2002, onde ele morou em barracos com os sem-teto. Hoje, morador do Campo Limpo e acumulando 12 anos de militância, Boulos costuma dizer que não faz nada sozinho. E rejeita o papel de herói ou de principal líder do movimento. Ele insiste que as decisões no MTST são tomadas sempre em colegiados. "Há outros companheiros de luta, coordenadores que deveriam ser procurados para entrevistas", responde, sustentando que, embora atue como porta-voz e negociador do movimento, é contra o que chama de "fulanização de lideranças".
Na quinta-feira, em audiência judicial no Fórum Regional de Itaquera, onde representava o MTST no acordo judicial com representantes da CDHU, governo federal, Secretaria da Habitação do Município e a Construtora Viver, dona da área do acampamento Copa do Povo, Boulos estava acompanhado por Maria das Dores, também da coordenação do MTST. Os dois já trabalharam juntos na ocupação urbana do Jardim Salete, em Taboão da Serra, que virou condomínio popular projetado para 930 apartamentos de dois e três dormitórios, com 54 m2 e 63 m2, e é usado como modelo de habitação pelo movimento via programa Minha Casa Minha Vida Entidades. O Jardim Salete foi o primeiro, mas o MTST já tem mais 921 unidades planejadas em ocupação em Santo André. / COLABOROU WILLIAM CASTANHO

O inferno de Dante

JUCA NA COPA

Jamais a seleção brasileira sofreu um massacre semelhante, nunca foi tão humilhada
DA ESTRELA de David Luiz para o inferno de Dante, e de seus companheiros, foi um passo. Ou melhor, cinco. Cinco passos, cinco passes, cinco gols em menos de meia hora numa semifinal de Copa do Mundo em casa!
Entre tantas exclusividades que o futebol brasileiro amealhou em sua portentosa história, agora há mais uma, acachapante.
Claro que a culpa não foi de Dante, mas ele, na defesa vazada sete vezes, e Bernard, no ataque inoperante, foram as novidades de Felipão, que agora apanhará feito boi ladrão porque resolveu atacar em vez de defender.
A vida é assim. Nós, brasileiros, que detestamos a prudência dos três volantes, regredimos tanto no futebol de fantasia que já foi jogado por aqui que invertemos as prioridades.
Se o cartola da CBF falou em ir para o inferno em caso de derrota, esperemos que de lá ele não volte e que os que ficarem por aqui entendam que a derrota tem de servir para fazer desta merecida lição a base para novos tempos, como os alemães fizeram depois da Copa deles, em 2006, no saneamento das finanças dos clubes, na presença dos torcedores nos estádios, na execução do jogo limpo e bonito e na punição aos corruptos, porque corruptos também há por lá, mas punidos sempre que pegos, como aconteceu com o presidente do Bayern Munique.
Os 5 a 0 do primeiro tempo, como uma homenagem aos pentacampeões, um gol para cada título, soaram tão espantosos que ensinaram que a humilhação dói menos que o golpe inesperado, como o de 1950, no Maracanã.
Convenhamos que, por mais que o futebol permita tudo, que piores ganhem de melhores e que a esperança é sempre a última que morre, se a frustração de 50 foi uma surpresa, a derrota de agora era meio que inevitável, embora não por 7 a 1, algo tão inverossímil que até parece mesmo conta de mentiroso.
Jamais havia visto um estado de tamanha perplexidade num estádio e não apenas entre os derrotados. Os vencedores também não esperavam tamanha facilidade, tanta que ficou constrangedor comemorar.
Castigo pior só o de ter de conviver com o Brasileirão daqui a uma semana se a lição que nossos treinadores tirarem desta bela Copa de gols e goleiros seja a de jogar atrás para não tomar de sete, em vez de jogar na frente para fazer sete.
Que Dilma Rousseff, ao menos, comece desde já a reforma que prometeu ao Bom Senso FC, porque é evidente que trocar Marin por Del Nero não renova coisa alguma, como não renovará a mera troca de técnicos da seleção.
O resto, como diria Felipão, que vá para o inferno.

Mais um capítulo da decadência

JOEL RUFINO DOS SANTOS
TENDÊNCIAS/DEBATES
O ASSUNTO É: A DERROTA DO BRASIL

A partir de 1970, começou a morrer o futebol "arte popular", que era da mesma natureza das sofisticadas cantigas do mar de Caymmi...
A Copa do Mundo me fez lembrar coisas insólitas, como é próprio das lembranças: "Vede --a pátria ao bretão ajoelhou-se, beijou-lhe os pés, no lodo mergulhou-se! Eles a prostituíram!". É verso de um poeta com então 19 anos de idade, Álvares de Azevedo, escrito há 150 anos, em que pedia anistia para os revolucionários da Praieira (1848-49).
Atualmente, não temos problemas com bretões, como a Argentina. O imperialismo bretão é frio. O norte-americano, depois de se livrar do soviético, arranjou tantos líos (confusão, como dizem os chilenos) que até nos permite enfrentá-lo diplomaticamente, como no caso Snowden.
Quem é, então, nosso bretão, que nos põe de joelhos, prostituindo Estados nacionais? Seu território é um paraíso luminoso sem fronteiras; suas igrejas, as arenas que chamávamos de estádios; seu Deus, a organização. Quem será?
Como nosso futebol chegou a colonizado da Fifa?
Nos primeiros 20 anos, o "football" foi inglês e de ricos, como o squash. Nas duas décadas seguintes, os brasileiros se apaixonaram por ele. Inventaram uma maneira de jogar sem os manuais comprados em lojas --o folder com as regras, as funções de cada posição, o uniforme, a chuteira, a bola, o glossário... Ignorando os manuais, a maneira popular desordenada de levar a bola até o gol driblando (se dizia, significativamente, "comendo") foi um processo cultural autônomo, desses que brotam sem cessar da vida social.
A partir da Revolução de 1930, que pareceu virar tudo de ponta-cabeça, a profissionalização e a federalização dos clubes enquadrariam esse processo. O futebol avançaria, agora, entre duas margens, a do Estado e a do mercado, dominação e lucro. Os saudosistas da fase anterior se chamavam legião porque, como no evangelho, eram muitos --é verdade que tinham saudade do amadorismo, mas não dos campos de terra, pastagens e zonas de agrião.
A nova fase deixou atrás de si esplêndidas ruínas. Fausto, a Maravilha Negra, por exemplo, foi sacrificado e morreu (1939) sem dinheiro e sem glória. Por quê? Sua arte era amadora, boêmia, resistente a táticas --o majestático parece, aliás, característico da arte popular, vide a escultura clássica, o auto medieval, o cordel, o mestre-sala... O triste fim de Fausto, como o de Policarpo Quaresma, não violou a primeira lei da história: ao vencedor, as batatas.
Na fase seguinte, mais ou menos entre 1940 e 1970, sob a república populista, tornamo-nos "os melhores do mundo", "o país do futebol" etc. Populista aqui não na acepção de demagogia, mas como a fórmula de poder carismático que empurrou as massas para dentro do jogo político. Foi bom ser povo naqueles anos: poderosos e pobres confiavam medianamente uns nos outros. Promiscuidade entre os de cima e os de baixo, mascarando a desigualdade e a violência, nossas melhores tradições. Leônidas, o Diamante Negro, foi o Getúlio Vargas do futebol.
A partir de 1970, começa a morrer o futebol "arte popular", que era da mesma natureza das esculturas de Nhô Caboclo, das alegorias de Fernando Pinto, das sofisticadas cantigas do mar de Caymmi...
O papel do técnico passou a ser o do tirano. Exerce tamanho controle emocional que os jogadores ficam intimidados, não conseguem mudar o jogo dentro de campo.
A primeira massificação do "football" no Brasil lhe dera uma nova qualidade: o drible, a finta, o suingue, o gesto de capoeira, o estilo machadiano de ir, mas não ir. Enquanto isso, a Europa renascia da guerra, a juvenilidade e o mercado feminino criaram o consumo de massa, que restabeleceu a renda média do sistema. Mercado de entretenimento --o disco, o cinema, a roupa, o esporte... É a sua lei, não pode ser violada.
Qualquer juízo de qualidade sobre o futebol que se joga hoje só faz sentido real se considerada essa história. O saudosista, ao ouvir um elogio a Neymar, comenta: "É que você não viu o Pelé!". O pai de Pelé, Dondinho, deve ter dito quando lhe elogiavam o filho: "É que você não viu o Zizinho!". Acabo de assistir à catástrofe Alemanha 7 x 1 Brasil. A saudade mata a gente.