terça-feira, 17 de junho de 2014

O Decreto nº 8.243 - SACHA CALMON


CORREIO BRAZILIENSE - 15/06

A democracia direta, sem a interposição dos partidos políticos, voltou à cena no Brasil com o suspeito Decreto nº 8.243 (maio de 2014), da presidente Dilma, cujo conteúdo iremos comentar. É preciso dizer que a democracia vigente no mundo atual é a representativa, quanto mais não fosse pelas imensas populações em alguns países. Significa que ela é exercida pelos representantes que livremente escolhemos. Por falar nisso, é preciso apurar as denúncias de manipulação de nossas urnas eletrônicas.

Todos os países, de um modo ou de outro, contemplam formas de democracia direta, tipo referendo, plebiscito, recall (método de cassar mandato eleitoral nos EUA), leis de iniciativa popular, consultas à sociedade durante o processo legislativo e votação em campo aberto, ainda em uso em cantões pequenos da Suíça (o último deu às mulheres do Cantão o direito de votar em pleno século 20). Os gregos, na cidade de Atenas e em outras, no plano legislativo, a praticavam em praças públicas, a ágora. Como sistema é tribal, as tribos e clãs tinham conselhos. Quando surgiram as pólis (cidades), os conselhos ocorriam nas praças. De polis nasceu a palavra política.

A Constituição brasileira de 1988 prevê inúmeras formas de democracia direta: consultas, referendos, audiências, plebiscitos, acordos coletivos de trabalho etc. Ressalte-se a Lei da Ficha Limpa (iniciativa popular de leis) e a ação popular sem custas nem honorários, contra atos atentatórios ao Tesouro e a bens públicos (largamente utilizada, mas sem muitas manchetes, infelizmente).

O PT, à moda de Vargas, quer tutelar os movimentos sociais, tanto que defere ao secretário-geral da Presidência da República o poder supremo de coordená-los. Deseja fazê-lo por duas razões. Primeira, porque perdeu o controle dos mesmos (em parte). Segundo, porque quer definir seus dirigentes e recursos, para usá-los em seu favor. Essa e não outra é a razão do malsinado decreto, com precedentes conhecidos na Venezuela e na Argentina.

Em editorial, o Correio Braziliense denunciou o perigo do referido decreto presidencial ao bom convívio democrático. E fê-lo bem. O secretário-geral da Presidência, Gilberto Carvalho, argumenta que "os conselhos no Brasil existem desde 1937, as conferências, desde 1941" (Valor, 4 de junho).

O enredo é outro. O governo foi pego absolutamente de surpresa pelos movimentos de junho de 2013, quando milhões de pessoas saíram às ruas. Talvez os manifestantes fossem de outros movimentos sociais que não os do governo petista. Carvalho disse ainda que o texto do decreto foi construído em parceria com movimentos sociais e com a sociedade civil. O cidadão que não participou tomou conhecimento dele pelos jornais. Mas quem define os movimentos sociais que participarão?

Entre as instâncias criadas, estão: conselho e comissão de políticas públicas, conferência nacional, ouvidoria pública, mesa de diálogo, fórum interconselhos, audiência e consultas públicas e ambiente virtual de participação social. Para coordenar essas instâncias e encaminhar suas propostas, cria-se a Mesa de Monitoramento das Demandas Sociais. O importante no decreto é a "mesa de diálogo", que tem o intuito de "prevenir, mediar e solucionar conflitos sociais", com a participação dos setores da sociedade envolvidos. Ele atende necessidade premente do governo após junho de 2013: a "ampliação dos mecanismos de controle social".

Os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta deverão, respeitadas as especificidades de cada caso, considerar as instâncias e os mecanismos de participação social, previstos no decreto, para a formulação, a execução, o monitoramento e a avaliação de seus programas e políticas públicas. O decreto cria o conselho de políticas públicas, como "instância colegiada permanente" para participar "no processo decisório e na gestão de políticas públicas". Um cipoal burocrático maluco.

O PT perdeu o monopólio dos movimentos sociais e o governo ficou sem o termômetro da insatisfação social. Para evitar novas ondas de descontentamento, é preciso identificar os protagonistas e dialogar com eles, isto é, detectar e canalizar as demandas sociais. É ampliando o controle social que se evitam surpresas, quando as instâncias de intermediação de conflitos entraram em curto circuito (é o que se depreende). A coordenação compete ao secretário-geral da Presidência da República.

É mentira! Quem está desconectado é o governo e sua base parlamentar. Estou em campo para criar a Associação Nacional dos Contribuintes e o Fórum Nacional de Desmistificação das Políticas Públicas. Eles agora vão ter que nos ouvir. Caso contrário, joguem esse decreto no lixo. Chega de coronelismo de Estado, suas bolsas, seus gastos, suas investidas sobre o patrimônio público, seu estranho apego ao poder. O medo deles me assusta.

Ocupação de prédio nos Jardins: coisas mágicas acontecem durante a Copa, por Leonardo Sakamoto


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Quem disse que coisas mágicas não acontecem durante a Copa do Mundo? Durante a abertura do evento, na última quinta (12), um grupo de 150 trabalhadores sem-teto ocuparam um prédio na rua Pamplona, nos Jardins – região com alto preço de metro quadrado e poder aquisitivo. Organizado pelo Movimento de Moradia da Região do Centro, eles estão a duas quadras da avenida Paulista, como relata matéria da Folha de S.Paulo.
Um amiga que é vizinha ao edifício ocupado confirmou que ele está vazio há mais de cinco anos, tendo causado, inclusive, problemas de infiltração no prédio ao lado sem que os proprietários se dignassem a resolver.
Daí você me pergunta: e qual a magia de ver um imóvel, localizado em um bairro dotado com infraestrutura, sendo ocupado por outras pessoas, que não batalharam comprá-lo ou não tiveram direito a uma herança, só porque ele está fechado há anos, sendo casa de ratos e baratas, enquanto milhares de pessoas vivem em habitações precárias ou na rua? Ou, melhor: por que esse pessoal não vai ocupar imóvel no extremo da periferia e para de incomodar as “pessoas de bem''? Daí eu te pergunto: você está precisando de um abraço?
O direito à propriedade não é absoluto, pois a efetivação dos direitos fundamentais (como direito à propriedade, à moradia, à educação, à alimentação, ao trabalho decente, à saúde, à liberdade de expressão… achou que direitos humanos só era “coisa de bandido'', né?) depende de uma costura em que nenhum deles avance sobre o outro a ponto de cometer injustiças. Em outras palavras, se uma pessoa rica puder ter ao seu dispor toda a terra de um país, como é que as demais vão exercer seu direito à alimentação ou à moradia?
Como já disse aqui, acho fascinante entender quem chama os que lutam por moradia, ocupando áreas e imóveis, de vagabundos. Aliás, boa parte dos trabalhadores que entraram na linha do consumo, há poucos anos, adota com facilidade o discurso conservador. Talvez porque conquistaram algo com muito suor e têm medo de perder o pouco que têm – o que é justo e compreensível.
Mas isso tem consequências. Em posts sobre déficits qualitativos e quantitativos de moradia, por exemplo, quem tem pouco adota por vezes um discurso violento, que seria esperado dos grandes proprietários e não de trabalhadores. Afirmam que, se eles trabalharam duro e chegaram onde chegaram sozinhos, é injusto sem-teto, sem-terra ou indígenas consigam algo de “mão-beijada'' por parte do Estado.
Ignoram que o que é defendido por esses excluídos é apenas a efetivação de seus direitos fundamentais: ou a terra que historicamente lhes pertenceu ou a garantia de que a qualidade de vida seja mais importante do que a especulação imobiliária rural ou urbana.
Bem, como já disse aqui antes, se você é do tipo que acha bonito aquela parábola do sujeito que, diariamente, pega estrelas-do-mar e as joga na água, achando que está fazendo sua parte para salvar o mundo, meus parabéns. Provavelmente, também acha que apenas doar agasalhos resolve o problema de quem está passando frio do lado de fora e que a vida vai mudar com a somatória de pequenas ações de caridade coloridas e cintilantes. Leva para a rua cartazes pedindo mais educação, mais saúde, mais segurança e, ao mesmo tempo, quer menos impostos e menos Estado, não?
A ideia de que exercer a responsabilidade individual, tomando cada pessoa em situação de rua ou sem-teto pelo braço e levá-los para casa, vá resolver algo é um discurso fácil que colocam na sua cabeça para fazer com que o Estado não exerça esse papel – o que significa mudar as prioridades do poder público.
O déficit qualitativo e quantitativo de habitação poderia ser drasticamente reduzido se esses imóveis trancados há anos pudessem ser desapropriados e destinados gratuitamente para quem precisa. É um custo que, sim, temos que pagar para as famílias de baixíssima renda.
Enquanto isso, Estado e município apenas timidamente agem para enfrentar os grandes latifundiários urbanos. Há vários prédios que devem milhões de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e poderiam ser alvo do Decreto de Interesse Social, uma vez que permanecem vagos por anos. Mas em uma sociedade cuja pedra fundamental são a intocabilidade da propriedade privada e a possibilidade de lucro e não o respeito à vida isso fica difícil. O que temos hoje é um caso ou outro, mas nada que se assemelhe a uma reforma urbana.
A área central de São Paulo é alvo prioritário dos movimentos por moradia por uma razão bem simples: porque já tem tudo, transporte, cultura, lazer, proximidade com o trabalho. Mas não deveria ser o alvo único, pois há prédios vazios, espalhados por bairros com infraestrutura e serviços.
Ao longo do tempo, fomos expulsando os mais pobres para regiões cada vez mais periféricas. Eles, que possuem menos recursos financeiros, gastam mais tempo e mais de sua renda com transporte do que os mais ricos que ficaram nas áreas centrais (com exceção dos condomínios-bolha espalhados no entorno, como as Alphabolhas, com suas dinâmicas de segregacionismo próprias).
O artigo sexto da Constituição Federal garante o direito à moradia. Mas este blog o considera uma piadinha colocada lá pelos constituintes. Do mesmo naipe daquela anedota contada no artigo sétimo que diz que o salário mínimo deve ser suficiente para possibilitar “moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”. Se o artigo sétimo fosse verdade, talvez pudesse ajudar o sexto a ser também.
Função social da propriedade? Por aqui, isso significa garantir que a divisão de classes sociais permaneça acentuada como é hoje. Cada um no seu lugar. Afinal de contas, viver em São Paulo é lindo – se você pagar bem por isso.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Com medo da água do 'volume morto', paulistano troca torneira por galão


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Moradora da Vila Guilherme, na zona norte de São Paulo, a artesã Magda da Silva, 63, aposentou o filtro de barro que usava havia mais de 40 anos. "Tem aquele 'volume morto', né? Aquela água que fica no fundo da represa, com cheiro de fossa", diz.
"Antes, lavando o quintal, eu até bebia água da torneira. Agora, nem para o meu cachorro eu dou", diz ela, que gastou R$ 400 em um purificador de água superpotente.
Um mês após o governo Geraldo Alckmin (PSDB) anunciar o uso do chamado 'volume morto' do sistema Cantareira para conter o risco de racionamento, é comum a desconfiança sobre a água que sai da torneira –apesar de a Sabesp garantir a qualidade.
O 'volume morto' é formado pela água que fica no nível mais profundo dos reservatórios. Por estar abaixo da tubulação que capta o líquido, ela precisa ser bombeada para a superfície.
Rogério Cassimiro/Folhapress
Vitor Hugo Pereira, 53, mostra água que sai da torneira de sua casa, na Vila Guilherme (zona norte de SP)
Vitor Hugo Pereira, 53, mostra água que sai da torneira de sua casa, na Vila Guilherme (zona norte de SP)
O termo "morto" contribui para a má impressão. Mas a maioria das queixas é ao cheiro de cloro e à cor esbranquiçada da água, que começaram antes do uso da reserva.
Na casa do professor Vitor Hugo Pereira, 53, na Vila Guilherme, a água chega branca feito leite. "Começamos a cozinhar com água mineral porque a da torneira dava gosto na comida e azia, chegaram até a vomitar", diz.
A Sabesp afirma que a coloração se deve a um fenômeno relacionado ao cloro.
A explicação não convence o comerciante Ademir Bueno, 54. "Estão usando água mineral para tudo. A da Sabesp, só para lavar roupa", conta, mostrando um copo de água marrom recém-tirada da sua torneira.
Na Brasilândia (zona norte), o telefone dos depósitos de água também tem tocado mais. "Tem mais gente comprando galões pela primeira vez", diz Juscelino Santos, 32.
No seu estabelecimento, o galão de 20 litros custa R$ 25 na primeira compra e R$ 9 se o cliente já tem o vasilhame.
O novo hábito afeta o bolso de gente como Ângela da Silva, 44, que trabalha vendendo Yakult em um carrinho no bairro. Para comprar dois galões por semana, ela acaba gastando R$ 70 dos R$ 900 que ganha todo mês.
Alérgica a cloro, a aposentada Eliana Sabó, 64, moradora da Consolação, reclama. "Atacou o meu estômago. Acho que estão aumentando os bactericidas."
A dona de casa Lucicleide Santos, 28, da Freguesia do Ó (zona norte), proibiu o filho de beber água na torneira.
"Ele teve diarreia, ânsia de vômito. Depois que começamos a comprar água, parou."