domingo, 15 de junho de 2014

Amarração Ilimitada, no Aliás






Amarração ilimitada

GILLES LAPOUGE - O ESTADO DE S. PAULO
14 Junho 2014 | 16h 00

Foram tantos os ‘cadeados do amor’ presos por enamorados à grade da Pont des Arts, em Paris, que a proteção desabou

Travessia. Construída por Napoleão em 1804, também é chamada Passerelle des Arts
Travessia. Construída por Napoleão em 1804, também é chamada Passerelle des Arts
CHRISTIAN HARTMANN/REUTERS
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Uma ponte ruiu em pleno centro de Paris. A Pont des Arts, que corta o Rio Sena e serve de passagem da Rive Gauche (margem esquerda), onde se encontram a Academia Francesa, o Café de Flore, a Torre Eiffel, Invalides, Sorbonne, Montparnasse, etc, para a Rive Droite (margem direita) onde estão os Champs Elysées, as lojas de luxo, os grandes boulevards, Pigalle, etc.
Por que o acidente com a ponte? Tempestade, ciclone, tsunami? De modo algum. Ou melhor, foi uma espécie de “tsunami do amor”. A venerada Pont des Arts (também chamada Passerelle des Arts) criada em 1804 por Napoleão Bonaparte, reformada em 1853 e reconstruída magnificamente em 1984 perdeu parte de seu parapeito no dia 8 sob o peso dos “cadeados do amor” presos em suas grades. 
Que são esses cadeados do amor? São uma tradição recente. Os enamorados escolheram a Pont des Arts para jurar fidelidade eterna. Eles prendem na grade do parapeito um cadeado no qual estão escritos seus nomes. Depois, jogam a chave no Sena. Como ela desaparece, ninguém poderá abrir o cadeado, deduzindo-se que os amantes continuarão unidos até entrarem no paraíso.


Como Paris é um dos lugares preferidos pelos turistas de todo o mundo, milhares, milhões de enamorados franceses, coreanos, manchus, patagônios, congoleses, mauricianos, compram seus pequenos cadeados e os prendem nas grades da ponte. Os 150 metros da passagem foram tomados por essa massa de aço cujo peso foi avaliado entre 40 e 120 toneladas. Até que na tarde trágica do dia 8 parte da grade cedeu, obrigando as autoridades a fechar a ponte (por algumas horas apenas). Nada preocupante, mas um transtorno.
Desde quando enamorados prendem seus cadeados na ponte? Desde 2008. Uma tradição de seis anos não pode ser levada muito a sério. Uma boa tradição deve remontar no mínimo a alguns séculos, ter nascido na Idade Média, ou na Grécia Antiga, ou, melhor ainda, no Neolítico. Deve inspirar romances, óperas, tragédias, estudos de paleontologia ou filosofia. Não é o caso dos pobres cadeados do amor da Pont des Arts. Em meio à vasta lista de tradições, essa é uma espécie de primo pobre. Mas, como temos bom coração, vamos tentar dar-lhe um pouco de dignidade reconstituindo sua história oculta.
Na verdade essa tradição nasceu bem longe de Paris. No ponto em que estou da minha pesquisa ainda não ouso decidir onde. Observo que desde a 1ª Guerra Mundial cadeados do amor eram presos na Ponte Most Ljubaji, na Sérvia.
Em 1980 havia em Pecs, na Hungria, o costume de prender cadeados numa grade de ferro batido que liga a mesquita à catedral, provavelmente para unir as duas religiões rivais, a cristã e a islâmica. Não podemos afirmar que foram eficazes pois o delírio islamista irrompeu no mundo depois dessa data. Sem dúvida as duas grandes religiões se irritaram com esses cadeados cuja finalidade era obrigá-las a se amarem.
Os alemães juram que conhecem os cadeados do amor há muito tempo, pendurados nas grades da Ponte Hohenzollern, em Colônia, com os amantes atirando as chaves no Rio Reno. Na Itália, em Roma, os cadeados foram descritos no romance de Federico Moccia Três Metros acima do Céu. 
Não significa que os cadeados sejam apenas dos europeus. Em Taiwan o costume existe desde 2000. Em Argel, surgiram em 2013 na “ponte dos suicidas”, onde combateriam a intolerância religiosa. Lá também os não tiveram muita eficácia, pois logo foram retirados pelos integristas islâmicos que os denunciaram como bruxaria. Moscou também nos reserva imagens reconfortantes. Na Ponte Loujkov, as autoridades erigiram belas árvores metálicas cujos ramos servem para enganchar os cadeados dos enamorados.
Como explicar que esse costume, que não tem uma tradição venerável, nos últimos anos tenha alcançado tamanha glória a ponto de, em Paris, os cadeados serem contados aos milhões e provocarem o fechamento de uma ponte (aliás outras pontes parisienses foram contaminadas pela epidemia, como a Pont de L’Archevêché, e mesmo a Torre Eiffel, que nem ponte é). 
Na realidade, se os cadeados do amor só surgiram em tempos recentes no planeta, os dois ingredientes que compõem o rito são muito antigos, a ponte e o cadeado.
Desde os gregos a ponte é consagrada, tanto no aspecto bom como mau. Expressa a vontade “prometeica” do homem, sua revolta metafísica e sua insolência. Em vez de aceitar gentilmente a geografia que Deus todo-poderoso na sua bondade lhe concedeu, o homem começa a aplainá-la, redesenhá-la, devastá-la. Primeiro com um tronco, depois com uma construção de pedra, uniu duas partes da terra que Deus decidira separar por um rio. A ponte, portanto, traria em si o sagrado e o sacrílego.
A sacralidade da ponte revela-se na língua. Na Grécia Antiga a ponte se traduz pela palavra gephyra. E gephyra dá nome aos gephyraei, padres dedicados aos cultos praticados na travessia de rios.
Desde essa época o construtor de pontes pertence à esfera do “sagrado”. A língua latina o confirma. A palavra pontífice, para designar o padre, vem de pontem facere, aquele que erige uma ponte entre o mundo debaixo e o do alto, entre o tempo e a eternidade, entre o homem e Deus. Observemos que, como tudo que diz respeito ao sagrado, o construtor da ponte possui dois barretes. Ele exprime alternativamente dois sentidos contrários: um negativo, obscuro, sacrílego: é o homem que profana, arruína e modifica a ordem geográfica estabelecida por Deus; e um sentido positivo: o construtor de pontes é aquele que estabelece a comunicação entre o homem e seus deuses, o tempo e a eternidade.
Mesmo se observarmos religiões muito distantes da esfera ocidental, a ponte preenche essa função de traço de união entre a terra e o céu. Na mitologia iraniana, a Ponte de Cinvat ou de Tchinoud sobrepõe-se ao inferno e as almas devem passar por ela se quiserem escapar dele. Para ajudá-los o Pai Eterno teve a gentileza de fabricar uma ponte luminosa a fim de que o fiel não caia de repente no inferno. A mesma imagem é encontrada no Islã: a Ponte Sirat também passa sobre o Inferno e as almas devem passar por ela, pois o paraíso está do outro lado.
Na mitologia nórdica vemos obsessões semelhantes: entre a terra (Midgard) e o céu (Asgard) a alma deve atravessar a Bifröst, uma passarela que une o céu à terra. A religião cristã retoma as imagens, mas desvia-se um pouco de sentido, pois a passagem é entre o inferno e o paraíso. Há uma espécie de ponte não muito bem frequentada e bastante dolorosa, que é o purgatório, uma zona de transição entre o céu e o paraíso onde o pecador deve fazer um estágio mais ou menos longo antes de receber o ingresso para entrar no Céu. 
Lembremos de passagem que o purgatório é uma criação recente. No início, a religião cristã só conhecia inferno e paraíso. Nada de ponte entre um e outro. Apenas no século 12 os teólogos decidiram que essa justiça era muito dura e criaram o purgatório. Infelizmente, não deixaram claro se a inovação tinha efeito retroativo, ou seja, se os infelizes que morreram antes do século 12 também se beneficiariam da bela invenção. Na dúvida, rezemos por eles.
Inevitavelmente, a psicanálise também se dedicaria ao assunto. Não foi Sigmund Freud quem primeiro resolveu estudar o caso, mas Sandor Ferenczi, psicanalista húngaro. Seu veredicto foi contundente: a ponte é, simplesmente, o membro viril. Melhor ainda: é o membro viril do pai. Segundo ele, a ponte cobre uma vasta e perigosa extensão de água, na verdade o oceano feminino que os homens cobiçam e ao mesmo tempo temem. Para Ferenczi, todos os pacientes obcecados por ponte sofriam de impotência sexual. 
Em 1932, Freud também passou a analisar o simbolismo da ponte. Explicou que “na medida em que devemos ao membro viril o fato de sairmos do líquido amniótico para vir ao mundo, a ponte torna-se a passagem do lado de lá (estado em que ainda não nascemos, no corpo materno) para este mundo (a vida). E, como o ser humano representa a morte como o retorno ao corpo materno (a água), a ponte assume o significado de uma viagem em direção à morte”.
Esclarecedor. Enfim, não muito, mas o suficiente em todo o caso para confirmar que os enamorados da Pont des Arts compreenderam, confusamente, o que Freud afirma de maneira também confusa: que a ponte tem uma pesada carga sentimental e mesmo erótica.
Se retornarmos ao presente para a outra imagem que integra a tradição dos cadeados do amor, o sentido é bem mais fácil de ser decifrado. Não precisamos buscar ajuda de Ferenczi ou Freud. Um cadeado serve para fechar alguma coisa. Para ligar um objeto a outro, isolar certas pessoas numa câmara de amor ou numa cela de prisão. O cadeado representa isolamento. E o cadeado do amor isola juntos um homem e uma mulher, um amante e uma amante. E esse confinamento é aceito livremente pelos dois. Mas em outros casos o cadeado foi utilizado de modo mais implacável: na Idade Média, o senhor, quando partia em cruzada para a Terra Santa, deixava a esposa que os senhores da vizinhança cobiçavam. Então ele pedia ao ferreiro que lhe confeccionasse um cadeado na medida do ventre da mulher. Assim, mesmo que ela tivesse um desejo louco de fazer amor com um dos seus pretendentes, estava condenada à castidade. A porta estava trancada. 
Mas começamos a nos distanciar do gesto modesto, folclórico, um pouco tolo dos enamorados da Pont des Arts. Algumas parisienses estão fazendo fila para pedir a proibição da prática. A guerra foi declarada há algumas semanas por duas americanas que vivem em Paris, Lisa Anselmo e Lisa Taylor-Heuff, com a publicação de um manifesto intitulado Libertem seu Amor. Salvem nossas Pontes. Em algumas semanas recolheram 6 mil assinaturas. As duas consideram esse costume um horror: perigoso, porque a passarela pode ceder sob o peso dos cadeados; e indecoroso, pois equivale a vandalismo. E a terceira crítica: todas as chaves jogadas no Sena poluem esse rio esplêndido, mas frágil.
As autoridades municipais não são simpáticas à proliferação dos cadeados. Mas no momento não pensam numa interdição, tanto mais que inúmeros pequenos negócios clandestinos surgiram à sombra da prática: camelôs, etc. A prefeitura mostra-se prudente. De vez em quando retira partes da grade que cederam com o peso dos cadeados. Mas não adotou nenhuma medida para pôr fim a essa “velha” tradição de seis anos. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Direito de se conformar, por Ricardo Antunes



RICARDO ANTUNES - O ESTADO DE S. PAULO
14 Junho 2014 | 16h 00

Por que só os trabalhadores são ‘vândalos’ e proibidos de lutar por suas causas quando o mundo todo está olhando para o Brasil?




Repressão. Manifestante anti-Copa detido pela PM recebe spray de pimenta nos olhos
Repressão. Manifestante anti-Copa detido pela PM recebe spray de pimenta nos olhos
ROBSON FERNANDJES/ESTADÃO

A retomada das greves no Brasil não é algo recente. Na pesquisa qualificada que faz há muitas décadas, o Dieese nos mostra que desde 2003 elas vêm se ampliando sistematicamente. Começou com 340 naquele ano e chegou a 873 paralisações em 2012, um salto bastante expressivo.
Suas reivindicações foram: no setor industrial, 42,7% objetivavam maior participação nos lucros e resultados, essa pragmática empresarial que obriga os trabalhadores a aumentar seus salários somente quando produzem mais. Foram seguidas por melhor alimentação (37,6%) e reajuste salarial (29,7), entre outras. Nos serviços, a alimentação puxou 43,1% das greves; os reajustes salariais contabilizaram 40,7%, e o pagamento de atrasos salariais totalizou 34,1%. 
E, se em 2013 tudo indica que esses números avançaram ainda mais, neste ano, a tomar pelo que estamos vivenciando, haverá um crescimento exponencial das paralisações. Para bem compreender essa explosão recente, temos que olhar com atenção para o Brasil desde junho de 2013.
De um modo breve, desde aqueles levantes de junho que o País mudou de qualidade. Ocorreu algo excepcional em nossa história, dado pela intersecção entre três movimentos que caminhavam em paralelo e se entrecruzaram, produzindo um choque social e político profundo. Primeiro, desde 2008 as lutas globais vêm se ampliando em todas as partes do mundo. No Oriente Médio, na Ásia, na Europa, até atingir o coração do Império, os EUA, para ficar nesses exemplos. E essa onda foi vista por todos os brasileiros. Sua lição basilar: para se conquistar algo é preciso tomar as praças públicas, pois os organismos de representação (com os Parlamentos à frente) estão completamente na berlinda. 
Segundo, esse movimento mais global encontrou uma situação especial no Brasil: o governo do PT comemorava dez anos de um “novo ciclo” quando as rebeliões de junho de 2013 roubaram o bolo de Lula e esparramaram seus farelos pelas praças de todo o País. Ruiu o mito da “nova classe média”, em plena festa do seu primeiro decênio. Os assalariados que encontram empregos recebem, em sua grande maioria, até um salário mínimo e meio; trabalham para estudar e estudam para melhorar no trabalho. O canudo da faculdade privada lhes faz derrapar ainda mais nos empregos voláteis. Pagam essas faculdades e encontram empregos com altas taxas de rotatividade, ainda mais terceirizados, mais adoecidos, mais precarizados, sofrendo assédio moral, etc. Em suma: muito mais privação do que realização. E, para trabalhar, dependem do transporte público, quase todo privatizado e degradado; se adoecem, oscilam entre a tragédia dos hospitais públicos e os engodos dos convênios privados. Uma hora a situação iria fazer água, e isso ocorreu em junho do ano passado. (Aqui vale um parênteses: o mito tucano, esse não ruiu porque simplesmente nunca existiu, uma vez que seu projeto é majoritariamente sustentado pelo voto conservador que não se assusta com o aumento da segregação social no País.) 
O terceiro foi um espetacular elemento contingente. A celebração tríplice das Copas (das Confederações, da Fifa e das Olimpíadas), imaginada por Lula e pelos grandes capitais como coroamento de um ciclo virtuoso, fez desabrochar seu exato inverso e o descontentamento explodiu. 
Assim, junho de 2013 se adensou com os trabalhadores-estudantes urbanos lutando pelo passe livre e contra a degradação da vida nas cidades, elevando a um patamar superior o levante das periferias, fortalecido com o MTST e sua emblemática ocupação da Copa do Povo. E esse descontentamento se generalizou. 
Já as greves e manifestações deste maio e junho de 2014 consolidam a rebeldia do trabalho, dos homens e mulheres que se desgastam na indústria, nos transportes, no funcionalismo público (hospitais, previdência, escolas e universidades públicas), em uma onda de paralisações que atinge muitos milhares de trabalhadores e trabalhadoras. (Os docentes e funcionários das universidades públicas paulistas, em exemplo que deve ser único neste período, receberam a acintosa proposta de reajuste zero, a pretexto de que a gestão anterior da USP, cujo ex-reitor foi escolhido pelo governador do PSDB desconsiderando a vontade da maioria de comunidade acadêmica, foi pautada pelo descalabro. A onde privatista exacerbou-se. Mas vale olhar para a explosão da crise universitária do Chile, depois de décadas de privatismo desde a ditadura de Pinochet, que gerou uma explosão social intensa nos últimos anos.) 
Uma rápida fenomenologia das greves pode recordar a emblemática paralisação dos garis, durante o carnaval do Rio. Contra uma direção sindical atrelada e cupulista, os garis perceberam que na festa carioca a limpeza não rimava com a falta de presteza da prefeitura em relação a seu exaustivo labor diário. Seguiram-se outras tantas greves, como a dos motoristas e cobradores do Rio, São Paulo, em São Luís, entre incontáveis cidades onde houve paralisação no sistema de transportes, um dos motes centrais, vale lembrar, dos levantes do ano passado. Ora contra as direções sindicais, ora com o seu apoio, as greves encontram seu principal elemento causal na precariedade das condições de trabalho e salário. 
Mas a coisa esquentou mesmo com a greve dos metroviários em São Paulo. A grita foi geral e a imprensa, quase sempre uníssona, bradou contra mais essa paralisação, que foi deflagrada por milhares de trabalhadores cujo piso salarial era pouco mais de R$ 1.300. Valor, como se sabe, insuficiente para viver em uma cidade com alto custo de vida e ainda com inflação em crescimento. 
Depois de alguns dias de paralisação, foram duramente reprimidos pelo governo Alckmin, com ação policial, demissões e acusação de “vandalismo” (os mesmos trabalhadores que, com zelo e cuidado, conduzem os metrôs diariamente) e ameaçados com mais 300 demissões se a greve voltar. Paralela e curiosamente, as transnacionais Alston, Siemens, entre outras, bem como seus gendarmes que praticaram fraudes volumosos em obras de ampliação do Metrô, sob governos do PSDB, como a imprensa e Justiça têm divulgado intensamente, ainda não sofreram nenhuma punição exemplar. E vale também recordar que os metroviários se utilizam de um direito constitucional (o direito de greve) que foi obtido depois de décadas de luta contra a ditadura militar. 
Por fim, um argumento recorrente contra as greves, é de que elas são “oportunistas” por ocorrerem às vésperas da Copa. Mas a Fifa, essa transnacional do (des)entretenimento global não está impondo sua marca e seus “parceiros” para lucrar ainda mais compulsivamente com sua Copa? Não obrigou o País a mudar sua legislação para poder vender bebidas alcoólicas nos estádios e assim ganhar ainda mais? Não é que até o acarajé ela tentou extirpar do estádio (ou arena?) em Salvador? E o empresariado do ramo de hotelaria não está cobrando o que quer, assim como os restaurantes? 
Vem então a pergunta que não quer calar: por que somente os trabalhadores são “vândalos” e proibidos de lutar por seus direitos neste momento em que o mundo inteiro está olhando para o Brasil? 
*
Ricardo Antunes é professor titular de Sociologia do Trabalho no IFCH/Unicamp e autor, entre outros, de 'Os sentidos do trabalho' e 'Riqueza e miséria do trabalho no Brasil', vols. I e II (ambos pela Boitempo)

sexta-feira, 13 de junho de 2014

MARCIO POCHMANN 'Classe média não quer o Estado; classe trabalhadora precisa dele'




Para economista e pesquisador, momento de mobilidade social brasileira vive desconexão entre novos atores sociais surgidos nos últimos anos e setores que deveriam representá-los
por Paulo Donizetti de Souza, da RBA publicado 10/06/2014 11:41, última modificação 10/06/2014 13:41
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MAURICIO MORAIS/SEEB-SP
Marcio Pochmann
Pochmann: 'Em cada dez novos trabalhadores que entraram no mercado de trabalho, oito não se sindicalizaram'
São Paulo – Em mais um capítulo do embate conceitual sobre ascensão social no Brasil, o economista Marcio Pochmann acaba de lançar um livro a colocar água na fervura. Em O Mito da Grande Classe Média – Capitalismo e Estrutura Social (Editora Boitempo, 140 páginas), como o próprio título sugere, o professor do Instituto de Economia da Unicamp, desmitifica a qualificação de “nova classe média” como designação dos mais de 40 milhões de brasileiros que, desde o início dos anos 2000, vêm deixando as linhas estatísticas de pobreza para ocupar um lugar entre o que Pochmann prefere chamar de “nova classe trabalhadora”.
Do ponto de vista do alcance da renda, consideram-se estatisticamente de classe média, ou classe C, as famílias com renda per capita entre R$ 320 e R$ 1.120. Por exemplo, uma família com quatro pessoas, casal e dois filhos, e renda total entre R$ 1.280 e R$ 4.480 é integrante da classe C. Pochmann, no entanto, considera um equívoco essa abordagem, uma vez que a estrutura de gastos na “nova classe trabalhadora”, fatia da pirâmide na qual hoje se encontram 54% da população brasileira, tem uma estrutura de gastos e de consumo diferente da “classe média” clássica.
“É inegável a mobilidade social e material alcançada pelos brasileiros desde a década de 2000, com criação de milhões de empregos, redução da miséria, ampliação das políticas públicas inclusivas, principalmente em educação e habitação, e aumento do poder de consumo dos trabalhadores”, ressaltou Pochmann, durante debate realizado nesta segunda-feira (9) pelo Centro de Pesquisas 28 de Agosto, do Sindicato dos Bancários de São Paulo. Entretanto, segundo ele, a inclusão de milhões de novos trabalhadores no mercado de trabalho, cerca de 22 milhões desde 2003, não é sinônimo de “ascensão de classe”.
“A classe média poupa, investe, viaja, investe em cultura, lazer e conhecimento. Quer menos imposto e não quer o Estado”, resume. “A classe média típica se delicia no momento de declarar o imposto de renda e calcular as deduções que terá com planos de saúde, escolas particulares, fundos de previdência, enfim, gastos com serviços que recusou do Estado e foi buscar no setor privado; deduz até, pasme, despesa com a empregada doméstica.”
Segundo estudo divulgado há dois anos, essas deduções representaram R$ 14 bilhões que deixaram de ser arrecadados. “Assim, a principal política social do Estado vem do Ministério da Fazenda”, ironiza Pochmann, que é ex-presidente do Instituo de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e atualmente preside a Fundação Perseu Abramo, órgão de pesquisas e publicações vinculado ao PT. “A classe trabalhadora, entretanto, precisa do Estado. Sem ele, não terá acesso a educação, saúde, serviços públicos de qualidade.”
O economista entende que mais importante do que a questão semântica ou conceitual é entender como o atual fenômeno da mobilidade social brasileira ainda é mediado por uma visão predominantemente neoliberal. “Os avanços são analisados por partes, o pobre, a mulher, o negro, a moradia, a situação de rua... Sem se observar no todo, no macro, que o surgimento dos novos atores sociais se dá em desconexão com os setores que deviam representar esses novos atores”, observa.
Ele exemplifica com pesquisas expostas no livro: “De cada dez novos trabalhadores que ingressaram no mercado de trabalho, apenas dois se sindicalizaram. Dos oito que não se filiaram, quatro apontaram como motivo o fato de o sindicato não os representar e os outros quatro consideram importante, mas não se associaram por não saber como e não conhecer a entidade que os representaria. Do mesmo modo, dos milhões de jovens que conquistaram acesso à universidade, a maioria não se aproximou de movimentos estudantis."
Marcio Pochmann alerta que o risco dessa mobilidade sem conexão com os partidos, sindicatos, movimentos e organizações tradicionais dá margem para um predomínio da visão não conectada com noção de igualdade e que pode pôr em risco as conquistas alcançadas nos últimos anos. “Estão surgindo movimentos sem pauta porque não estão representados por instituições. Não estamos sem futuro nem sem projeto, mas estamos sem agenda para esses trabalhadores e é preciso alcançá-los. Na política, não tem vaga. Se a esquerda não souber dar esses novos passos, outros darão.”