quinta-feira, 12 de junho de 2014

MTST constrói moradias com as próprias mãos, in CC

Minha Casa Minha Vida – Entidades


Militantes erguem edifícios onde vão morar e dizem atingir resultados melhores que os da iniciativa privada em prédios visitados pela reportagem
por Piero Locatelli — publicado 10/06/2014 14:52, última modificação 10/06/2014 15:39
Piero Locatelli
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Um dos edifícios que será entregue no próximo mês
Jaime Belo de Lima não consegue lembrar de todos os prédios que ajudou a erguer desde sua chegada a São Paulo, há 25 anos. Como pedreiro, encanador e eletricista, ajudou a construir inúmeras moradias. Agora, aos 45 anos, finalmente constrói o apartamento onde a própria família vai morar.
“Quando eu trabalho na construção para os outros, é só pelo dinheiro. Mas, na hora em que termina, dá aquela coisa: ‘Vou receber o dinheiro, mas ficou tão bonito. Eu quero fazer o meu assim’. E aqui eu tive a oportunidade de trabalhar no meu lugar,” diz Lima, sobre o prédio que ajuda a erguer em Taboão da Serra, região metropolitana de São Paulo.
Lima é um dos militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) que constroem o conjunto João Cândido, na margem da BR-116. O condomínio de 16 prédios de nove andares faz parte de um projeto conduzido pelo próprio MTST, parte do programa Minha Casa Minha Vida Entidades.
Ao contrário do que ocorre na modalidade principal do Minha Casa Minha Vida, tocada conforme os interesses das empreiteiras, no Entidades é o movimento que toma a iniciativa de construir a moradia, escolhe o projeto, contrata a empreiteira, acompanha a obra e escolhe quem irá morar no local.
Criado em 2009, o Minha Casa Minha Vida foi lançado no momento mais crítico da crise econômica mundial em 2009. O programa ajudou a reaquecer o mercado da construção civil, levando dinheiro às empreiteiras por meio do Fundo de Arrendamento Residencial. Os críticos do programa afirmam que ele contribuiu, também, para a especulação imobiliária e para a precarização da moradia popular como um todo.
Quando o Minha Casa Minha Vida foi feito, movimentos sociais pressionaram pela criação do MCMV Entidades, uma continuação do programa Crédito Solidário. O argumento era de que a gestão dos movimentos sobre a moradia poderia deixar a construção delas menos suscetíveis ao mercado imobiliário e atenderia melhor às necessidades dos trabalhadores.
Foi o que o MTST fez em Taboão da Serra, no conjunto onde Lima trabalha. Após uma ocupação na cidade, feita em 2005, a prefeitura cedeu um terreno ao movimento. Em fevereiro de 2013, o projeto foi aprovado e as obras começaram.
Entidades: apartamentos maiores e mais rápidos
Um ano e meio após o início das obras, a construção está quase pronta. Em visita ao local, a reportagem de CartaCapitalencontrou os prédios pintados, com sistema elétrico pronto e à espera da chegada de elevadores. A previsão do movimento é entregar duas torres, com 160 unidades, no final de julho deste ano.
A velocidade da obra faz os trabalhadores no local dizerem que são mais eficientes que a iniciativa privada. Na obra, metade dos empregados são do próprio movimento, fruto de um acordo entre o MTST e a empresa contratada por eles.
O tamanho é outra das vantagens lembradas pelos militantes. Os apartamentos de dois dormitórios terão 53 metros quadrados e os de três quartos, 64 metros quadrados. O espaço está acima do mínimo de 39 metros quadrados do Minha Casa Minha Vida, padrão da maioria das construções do programa. Segundo os militantes, isso mostra que é possível melhorar a construção ao diminuir o lucro das empreiteiras.
Para o MTST, somente a moradia no local não é suficiente. Da prefeitura e do governo estadual, o movimento conseguiu a promessa de uma unidade da Ama (Assistência Médica Ambulatorial), de uma creche e de uma escola estadual junto ao condomínio. Com a grande quantidade de fábricas na região, eles também esperam que não sejam necessários grandes deslocamentos para os moradores irem trabalhar.
Movimento organiza demanda da moradia
O MTST escolhe quem receberá a moradia no local. De acordo com as normas do Ministério da Cidade, a entidade pode decidir quem será beneficiado pelas obras desde que os critérios já determinados pelo governo federal sejam atendidos. O principal deles é a renda familiar, que deve ser de no máximo três salários mínimos.
O movimento tem uma série de critérios internos. Entre eles, a pontuação para quem participa de mais protestos e está mais presente em ocupações e outras atividades do movimento. O tamanho do apartamento, por sua vez, é determinado pela composição da família.
Em outubro do ano passado, o Ministério Público Federal abriu investigação sobre o sistema de pontuação. O procurador da República José Roberto Pimenta Oliveira recomendou a anulação da portaria que permite aos movimentos de moradia adotar critérios adicionais para escolher quem participa do programa.
Guilherme Boulos, coordenador do MTST, diz que os critérios adotados pelo governo não são neutros ou justos. “Quem conhece o cadastro habitacional dos municípios sabe que isso é curral eleitoral de prefeito, de vereador, de grupos de interesse mais diversos. O Ministério Público deveria dedicar um pouco do seu tempo precioso para investigar o que são os cadastros das secretarias de habitação”, diz Boulos.
Boulos diz que é legítimo o movimento estabelecer critérios para saber quem participa ou não de suas atividades. “Você faz parte de um movimento e está lá diariamente. Como vou saber se você faz isso ou se você é um aproveitador que chegou agora? Como eu vou saber quem diz estar no processo só para ser atendido? Isso é uma forma de impedir o oportunismo de quem tenta se infiltrar em qualquer organização, em qualquer luta social.”
Aparentemente, as críticas do MPF não desencorajaram o governo a investir no programa. Em meio às intensas manifestações feitas pelo MTST antes da Copa do Mundo, e com a perspectiva de elas durarem até as eleições de outubro, o governo federal atendeu ao movimento e anunciou na segunda-feira 9 a ampliação do MCMV Entidades.
Hoje, cada entidade pode construir mil unidades simultaneamente dentro do programa. Com a mudança, cada uma das organizações poderá construir 4 mil. Do total de 800 mil moradias previstas na nova fase do programa, até 80 mil poderão ser produzidas dentro do MCMV Entidades, considerando o número dos movimentos que já estão cadastrados pelo Ministério das Cidades.
Enquanto isso, o movimento segue com a construção. Além da primeira entrega em julho, a perspectiva é de entregar o dobro de unidades até o final do ano. Com as chaves nas mãos, surge o risco de desmobilização daqueles que já conseguiram sua moradia.
Lima, que milita há sete anos no MTST, diz que deverá continuar a participar do movimento. “Ser do movimento é igual a ser corintiano: é só uma vez na vida, e aí vai até morrer. Você entra no movimento uma vez, pensando só em lutar pela moradia. Aí vê outras coisas: luta por transporte, saúde, educação, por tudo. Ou seja, não saio mais.”

Um novo horizonte para a produção orgânica. in CC

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Sustentabilidade

Alimentação e Ecologia

Um novo horizonte para a produção orgânica

O Ministério do Desenvolvimento Agrário prepara um plano para aproximar do consumidor os alimentos orgânicos produzidos pela agricultura familiar
por Mariana Melo — publicado 11/06/2014 03:57, última modificação 12/06/2014 09:31
Enagroecologia2014/Flickr
ENA
Agricultores familiares do Sul da Bahia expõe cacau orgânico no III Encontro Nacional de Agroecologia, ocorrido em Juazeiro (BA)
Em Arataca, no sul da Bahia, é feito o "chocolate rebelde". Produzido por 55 famílias em um assentamento do Movimento Sem Terra localizado em meio a grandes propriedades exportadoras de cacau, o chocolate Terra Vista levou oito anos para ganhar a certificação de "orgânico", que indica um cultivo sem agrotóxicos e com técnicas sustentáveis. O longo e penoso período dificulta, e pode até inviabilizar, a criação de novos produtos orgânicos para o mercado brasileiro, especialmente no caso de pequenos produtores.
“Nosso processo de certificação foi difícil porque a consultoria foi muito cara pra nós", diz Joelson Ferreira de Oliveira, representante do assentamento Terra Vista, onde é feito o chocolate de mesmo nome. "Nós precisamos de uma certificação mais democrática pra colocar a produção orgânica no mercado”, afirma.
Hoje, quem quiser produzir e vender qualquer alimento como orgânico precisa, segundo a Lei de 10.831/2003, comprovar que não foram usados adubos sintéticos, agrotóxicos ou sementes transgênicas no cultivo. Precisa provar, também, respeito a leis trabalhistas dos empregados envolvidos no processo, entre outras exigências. Há, ainda, uma taxa de cadastramento por produto, que varia de acordo com a auditoria contratada. Juntam-se à toda burocracia regulatória outros entraves, como cooperativas mal articuladas e produtividade insuficiente, que fazem a agricultura orgânica e ecológica parecer não compatível com a demanda atual por alimentos. O preço e a disponibilidade destes produtos são os principais pontos que dificultam a adesão dos consumidores aos orgânicos.
Para contornar essa situação, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) prepara para 2015 o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo). Segundo o secretário nacional de Agricultura Familiar, Valter Bianchini, o Planapo propõe uma série de medidas que facilitarão a produção agrícola dos pequenos agricultores ao oferecer linhas de créditos e cadastro mais simples da produção como orgânica. “A ideia é consolidar a agricultura orgânica no âmbito da agricultura familiar", diz. "O que queremos mostrar é que é possível fazer a transição desse modelo único da agricultura mais intensiva em insumos, com uso de agrotóxicos, para uma agricultura mais sustentável, seguindo os preceitos da agroecologia”, afirma. A agroecologia consiste em técnicas de cultivo sustentáveis, sem desmatamento de áreas verdes originais, com uso racional de água e terra e abolição de agrotóxico e transgênicos.
Segundo Bianchinni, o plano promoverá a certificação de milhares de propriedades relacionadas ao cultivo orgânico. Hoje há, segundo o Ministério da Agricultura, 6,7 mil produtores orgânicos regularizados. “A gente reconhece a possibilidade de ir a 150 mil agricultores, agroecológicos e orgânicos, ou em transição. Queremos avançar nessa certificação para pelo menos mais 50 mil propriedades", afirma. "O que o Planapo pretende é sair dessa agricultura de nicho, no entorno metropolitano, de feiras diretas, e reconhecer toda gente que tem trabalhado com agroecologia. Com isso, mostrar que outro modelo de segurança alimentar e de agricultura é possível.”
O agronegócio, que muitas vezes se apresenta como principal via moderna e rentável da agricultura, não pode ser considerado a única solução para as questões que envolvem a segurança alimentar, segundo Bianchini. “O termo agronegócio se referia ao volume de recursos que movimenta a agricultura e a agroindústria. Como setores conservadores começaram a usar o termo para agregar importância à prática, ela acabou se designando como o único modelo de agricultura, mas não quer dizer você não tenha um outro modelo, que também constitua negócios importantes e que movimente um número grande de agricultores.”
O aprimoramento e a desmistificação da agroecologia no âmbito da agricultura familiar podem ser muito positivos para a sociedade, diz Bianchini. “A agroecologia não se esquece da sua dimensão econômica, mas também liga a dimensão econômica às dimensões ambiental, cultural e social.”
Cenário
Apesar do entusiasmo com a agroecologia, o secretário concorda que a realidade é outra, pois a produtividade dos orgânicos ainda é muito distante da do agronegócio. Mesmo assim, a agricultura familiar tem grande importância para o abastecimentos dos mercados brasileiros. “Ocupando aproximadamente 25% da área agricultável do País, o modelo familiar ainda corresponde a 38% da produção gerada no Brasil. Para leite, é mais de 50%, além de mandioca, mel e alguns outros que são produzidos mais do que na grande agricultura. A complexidade dos processos de cultivo desses alimentos não é respondida pela modelo de agricultura patronal”, diz. No Brasil, de 5,1 milhões de propriedade rurais, 4,3 mi são de agricultura familiar, com 12 milhões de trabalhadores.
O secretário também atenta para a segurança dos alimentos cultivados organicamente. “Estudos ainda não mostram os impactos que as modificações genéticas têm. Ninguém quer vetar essa discussão da ciência ter chegando à alteração de genes e, futuramente, colocar o melhor à sua sociedade. Mas a pressa com que os oligopólios querem colocar esses produtos no mercado nos dá muita insegurança.”
A diversidade, que ajuda a preservar espécies, fica comprometida com a monocultura. “Não podemos depender de duas, três variedades na agricultura. O modelo agroexportador leva você a trabalhar uma agricultura de muito risco, ao escolher apenas uma única variedade. A agroecologia promove, para a sociedade, alimentos mais saudáveis e um equilíbrio maior entre a cidade e o campo, garantindo qualidade de vida em ambos os espaços, além da agrobiodiversidade. Não tenho dúvidas de que para a sociedade esse modelo de agricultura é melhor.”
Certificações
Há dois anos no mercado, o chocolate rebelde já mostrou aos seus produtores que é mais do que uma fonte de renda. Feito por famílias assentadas, o produto tem um valor simbólico importante ao mostrar que a agricultura familiar pode se colocar a serviço do meio ambiente e da sociedade. “A questão importante aqui é criar uma economia pra não ficar na dependência, não pedir esmola ao governo", diz Oliveira do assentamento Terra Vista. "Para ter autonomia é preciso criar um produto competitivo que banque nosso projeto. Então, esse produto serve pra financiar a nossa luta, nossa organização, a nossa educação e a nossa cultura. O chocolate é para gente dialogar com a sociedade” , diz.
Bianchini afirma que as certificações serão mais fáceis com o Planapo. “O Planapo quer resolver, junto com o Ministério da Saúde (MS), como isentar de taxas e diminuir a burocracia para registrar esses produtos. (...) A gente reconhece a necessidade das boas práticas e adequações, mas o que se exige hoje pra ter esse selo está muito fora do alcance dessas famílias, desses pequenos produtores. Esse é um dos gargalos pra esse modelo de agricultura e produção.”
Para fazer chegar ao consumidor os produtos orgânicos, o Planapo também contemplará o aumento dos circuitos de comercialização e aumento a produtividade. “A gente acredita que a remuneração a este trabalho pode ser melhor e deixar disponível pra um grupo maior da população os alimentos orgânicos, não só a um grupo com mais dinheiro ou mais consciente”, finaliza Bianchini.
A repórter entrevistou o secretário nacional de Agricultura Familiar Valter Bianchini no III Encontro Nacional de Agroecologia, ocorrido em Juazeiro (BA). A repórter viajou a convite da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

A forma como você se alimenta é um ato político, in CC

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Sustentabilidade

Alimentação e Ecologia

Para a nutricionista Elaine de Azevedo, o consumo de orgânicos não está restrito à preocupação com a saúde
por Mariana Melo — publicado 12/06/2014 04:09, última modificação 12/06/2014 09:28
III Encontro Nacional de Agroecologia/Flickr
Orgânicos
Reunião sobre agricultura orgânica e familiar ocorrida em Juazeiro (BA) no III Encontro Nacional de Agroecologia
Por que é bom consumir orgânicos? Dos adeptos dos alimentos “naturebas” produzidos sem agrotóxicos ou outros insumos considerados agressivos ao meio ambiente, a resposta vem de forma imediata: porque é melhor para a saúde. Mas, segundo a nutricionista Elaine de Azevedo, pesquisadora do Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, essa resposta pode ser muito reducionista para demonstrar todo impacto que o consumo orgânico pode ter à sociedade. Em uma discussão que abrange desde a problemática social do campo até a questão da fome mundial, consumir tais alimentos pode ser um gesto político. “A agricultura orgânica é mais do que um modo produtivo, é uma proposta, é um movimento ativista. É importante ampliar os conceitos, para entender o que é que está por trás da produção orgânica”, diz Elaine, autora do livro Alimentos Orgânicos: ampliando os conceitos de saúde humana, ambiental e social, da Editora Senac. Confira a entrevista.
CartaCapital: Alguns defendem o consumo de produtos orgânicos pelo viés ambiental, outros, nutricional. Você diz que os benefícios do consumo dos orgânicos são uma questão mais plural, que beneficia uma série de setores. Você poderia falar mais a respeito?Elaine de Azevedo: Na verdade, esses vieses parecem que são separados, mas são costurados pelo contexto de saúde coletiva. A saúde coletiva implica em condições sociais, ambientais e de estilo de vida saudáveis. Quando você olha na perspectiva de saúde coletiva, para você ser saudável você tem que trabalhar, ter dignidade, estar com quem gosta em um ambiente sustentável pra ter saúde. Nessa perspectiva, o alimento orgânico de origem familiar vai ao encontro da promoção de saúde social, porque vai dignificar o agricultor, e isso repercute na qualidade de vida nas grandes cidades na questão do desemprego, da violência. Tem a ver com a saúde social urbana. E na saúde ambiental também, porque não adianta comer bem se o ar e o mar estiverem poluídos, se o clima estiver desequilibrado. Você tem repercussões sociais porque o ambiente não é só o indivíduo. Então, o aspecto de alimentos equilibrados nutricionalmente é quase uma consequência. Respirar ar poluído, não ter trabalho e viver em uma cidade violenta com graves problemas sociais não é saudável.
CC: Por que consumir orgânicos é um ato político?EA: Se você analisar de um modo mais amplo, o que o orgânico de origem familiar está trazendo é uma opção política. 80% da produção orgânica é de origem familiar. Além disso, o ato ambiental é um ato político. É você cuidar da saúde, comprar alimentos locais, que tem a ver com a sua cultura. O conceito de política não pode ser muito restrito, na verdade eles são mais porosos, têm a ver com comportamento.
CC: Você alegou que os orgânicos não têm “maior” valor nutricional, mas “melhor” valor nutricional. O que isso quer dizer?EA: “Mais” não quer dizer “melhor”. A gente quer plantas nutricionalmente equilibradas, e isso o orgânico faz. A gente não quer maior, a gente quer valor nutricional mais equilibrado e aproveitável. O que adianta ter um monte de nitrogênio no solo para a planta absorver, formando nitrito, que é cancerígeno? Ou que atrai mais pragas? É um conceito errado.
CC: De que forma a produção de orgânicos pode responder à demanda mundial por alimentos? Muitos afirmam que só com o uso de agrotóxicos e de sementes transgênicas, por exemplo, é possível suprir essa demanda.EA: Sabe aquela história de que uma mentira contada tantas vezes acaba sendo levada como verdade? Esse é um caso clássico. O agronegócio não produz alimento hoje. Ele produz PIB, relações exteriores, negócios. Ele produz soja, biodiesel, cana, algodão, não produz comida. Arroz, feijão, mandioca já não são produzidos pelo agronegócio. Já produzimos o suficiente no mundo para alimentar o que está previsto até 2050 de aumento da população. O que acontece é que nós não temos distribuição de renda e de riqueza, ou seja, têm países, pessoas e grupos que concentram alimentos, além de ter pessoas que não têm acesso à terra ou ao dinheiro. Comida já tem. O transgênico vai continuar a excluir pequenos de produzir e vai colocar na mão dos grandes a produção do não-alimento. Então, na mão de quem ficará a produção de alimentos?
CC: Mas e a produtividade inferior do orgânico?EA: Nunca vamos conseguir produzir soja orgânica igual. Agora, arroz ou batata tem a produtividade comparável. Mas, para isso, tem que ter manejo, emprego, assistência técnica. Agora, eu não consigo produzir tomate no Paraná como eu produzo no México, por exemplo. No Paraná, tem que ser com veneno. Temos de considerar conceitos como o local do plantio e a sazonalidade. Vários conceitos têm de ser adicionados na dieta, como a questão do alimento sazonal e do alimento local. Uma época terá abobrinha, tomate, outra terá tubérculos, outra arroz. A gente pode não ter o ano inteiro esse arroz orgânico, mas a gente vai ter épocas de arroz. Isso que a gente tem de discutir. Produtos específicos em épocas específicas. É uma grande questão a ser discutida.
Já para a produção orgânica animal não é possível comparar a produtividade. Não conseguimos ter e também não desejamos, porque precisamos rever a nossa ingestão de proteínas. O consumo de carne está excessivo, nenhuma cultura já comeu assim. Mas vai dizer isso para pessoas que têm como conceito que mais é melhor? Nós estamos morrendo por falta de minerais, vitaminas, não por falta de proteínas. São muitas revoluções que precisam ser feitas, na agricultura e na nutrição, juntos, pra gente chegar no que se precisa.
CC: Além dessa mudança comportamental, o que é preciso pra suprir essa produtividade inferior?EA: A agricultura familiar pode produzir os orgânicos com custos mais baixos, porque teremos mais oferta, mais gente produzindo, e menos veneno. A alegação de que precisaremos de agrotóxicos é uma estratégia da indústria. O agrotóxico veio, a tecnologia veio, e tem gente que continua passando fome.
CC: Por que a padronização nutricional (todos no mundo têm o mesmo tipo de dieta) é negativa para a população?EA: A nossa gordura aqui não é o azeite de oliva, é o óleo de coco, óleo de palma. Esses são saudáveis? São. A banha também é saudável, mas não é ideal comer banha na Amazônia, da mesma forma que não é normal comer azeite de oliva nos trópicos. A dieta culturalmente ajustável é o próximo passo a se alcançar. É legal comer batata e peixe de água profunda na Noruega. Aqui, eu não vou fazer isso, eu vou ter que ter frutas. Não adianta a dieta macrobiótica ser maravilhosa se é uma dieta tradicional do Japão. Ela é ruim? Não, mas precisa ser ajustada à nossa realidade. A gente mora em um país tropical, com muitas frutas. Carne, iremos consumir pouco, como se fosse aquela caça eventual. Não é que a gente vai voltar a só comer isso, mas temos de nos ater à dieta culturalmente ajustada. É um outro passo.
CC: Como você avalia a política de estímulo à produção de orgânicos?EA: O financiamento da agricultura brasileira é de 25% para agricultura familiar e 75% para agronegócio. Você acha que, com essa diferença, dá pra produzir da mesma forma? E mesmo com 25%, a agricultura familiar corresponde a 80% do que a gente come. Faltam incentivos e sensibilização do consumidor. O consumidor, ao buscar mais e ao querer mais orgânicos, pode procurar por políticos que apoiem isso e, também, forçar o preço a baixar. A problemática do preço tem de ser compartilhada. Laptops acabaram baixando de preço porque todo mundo começou a comprar. O alimento ainda é uma mercadoria, se a gente comprar mais, o preço vai baixar. É aquela discussão, a gente quer comprar remédio ou quer comprar saúde?
A agricultura orgânica é mais do que um modo produtivo, é uma proposta, é um movimento ativista. É importante ampliar os conceitos, para entender o que é que está por trás do alimento orgânico, se não fica uma discussão muito reducionista. Quando essas campanhas contra o orgânico aparecem, é importante ver quem as comanda. Quem pode querer veneno?