quarta-feira, 20 de março de 2013

Uma canção de escárnio, por Carlos Melo


Carlos Melo
Numa canção que já vai ficando antiga, o genial e esquecido compositor Itamar Assumpção alertava que "porcaria na cultura tanto bate até que fura". Não se conformava com a escória musical que proliferava na terra de Tom Jobim: "Onde era Pixinguinha, Elizeth, Macalé e o Zé Kéti ficou tiririca pura. Só dança de Tanajura (...) Que pop mais pobre". Desesperado, pedia: "Socorro, Elis Regina". O apelo de Itamar se encaixa na nota desta canção: na política atual, o buraco é cada vez mais evidente.
Sem representatividade. Em Salvador, manifestantes protestam contra a indicação do pastor Feliciano - Leogump Carvalho/Frame
Leogump Carvalho/Frame
Sem representatividade. Em Salvador, manifestantes protestam contra a indicação do pastor Feliciano
No Brasil, sempre foram escassas a confiança e a intimidade com a política, confundida com esperteza e dissimulação. O desapreço e o ceticismo abriram caminho para a avacalhação. Sob a displicência do eleitor, candidatos folclóricos passaram a fazer despropositado sucesso: o deboche, tipo Tiririca, é apenas um aspecto da decomposição, sobretudo, do Parlamento nacional.
A transparência revelou uma torrente de malfeitos, mas também banalizou o escândalo tanto quanto se deu força à uma retórica agressiva, porém, nada reformista. Tipos obtusos aguçaram a desconfiança quando se revelou que seus discursos fáceis eram bijuterias de falsos moralistas. O plantel do farisaísmo é vasto, Demóstenes Torres é um entre tantos. Mas, mais que a seriedade, a sensação de seriedade se retirou do ambiente parlamentar. O descrédito fez crescer a distância, o estranhamento, a indiferença. A política, atividade indissociável da existência humana, afastou-se do cidadão tanto quanto o cidadão da política. Hoje, o indivíduo – que não depende de políticas públicas – acorre à política com fel e rancor; não sem justificada razão, mas com exagero evidente: políticos são bodes expiatórios para quase tudo.
Era natural que a política parlamentar assumisse dinâmica própria, se autonomizasse em relação à sociedade que a rejeita. Mas, na comparação, quando se vislumbra a enorme transformação porque passaram a economia e a sociedade, seu saldo é negativo: a política dos partidos e do Legislativo ficou para trás; parou no tempo, fechada em interesses particulares, avessa à transformação mais ampla que ocorreu no País; o que faz com que a sociedade a rejeite ainda mais. Menos que mal necessário, a política tem se tornado apenas contingente. Afugenta de seu convívio a juventude e os quadros mais bem formados. A qualidade da intervenção vai, naturalmente, ao subsolo do fundo do poço. Com a morte física ou moral, desistência ou resignação de velhas lideranças, a substituição se dá no pior nível possível, reposição por seleção adversa: pela "carreira política" parecem se interessar apenas os sem alternativa. Há tênues sinais de mudança, mas eles ainda precisam se confirmar.
O fato é que, hoje, os discursos são rasos – onde foi parar o grande tribuno? –, a capacidade de negociação mingou, a articulação fez lambança. Onde um dia vicejou Petrônio Portela, resta Renan Calheiros; de Ulysses o destino levou a Henrique Eduardo Alves; de Thales Ramalho a Eduardo Cunha; de Mário Covas a Álvaro Dias; de Fernando Lira a Roberto Freire; de Florestan Fernandes a João Paulo Cunha; de Tancredo a Aécio; de Jarbas Passarinho a Jair Bolsonaro. A sensação é de decadência e desamparo. Mesmo nas Comissões, onde a mobilização corporativa e setorial mantinha alguma interlocução entre sociedade e Parlamento, a relação se esgarçou. Questões sociais mais amplas e representativas foram substituídas por interesses abrigados nos partidos. O moto-perpétuo voraz do sistema exige, mas o governo já não tem o que dar; mesmo migalhas são disputadas.
É o ponto de exaustão do presidencialismo de coalizão: em nome da governabilidade, da segurança contra a chantagem – ou do tempo de TV – tudo é moeda, nada é preservado. Até o PSC tem seu quinhão. Marco Feliciano (Direitos Humanos) e Blairo Maggi (Meio Ambiente) surgem do processo, não são contrassenso. Efeitos, não causa, da tragédia. Na fotografia de nossa modernidade torta, a economia e a sociedade foram ao futuro, a política ficou em seu passado. Esses rostos são legítimos panos de fundo do descompasso, do atraso; o desolador cenário de um tempo sem sentido.
O deboche e a distância resultaram na má renovação. A realpolitik levada ao extremo cumpre um ritual macabro de suicídio coletivo. A deterioração dos métodos, a exaustão do presidencialismo de coalizão compõem seu próprio réquiem, não sem antes produzir uma terrível cantiga de escárnio e mal dizer. A porcaria na política que tanto bate até que fura. "Nossa. Nossa..." Socorro, Ulysses Guimarães!
CARLOS MELO É CIENTISTA POLÍTICO

O jesuíta leitor de Dostoievski (NOVO PAPA)


Papa Francisco é visto como calado e sóbrio por seus fiéis colaboradores e calculista e frio por seus inimigos.
"Low profile, calado, sóbrio e frugal" são alguns dos adjetivos usados por seus mais fiéis colaboradores. Seus inimigos, no entanto, preferem defini-lo como "calculista, frio, traiçoeiro e autoritário". Mas, para a maioria dos argentinos, o cardeal Jorge Mario Bergoglio é simplesmente um mistério. No entanto, em. 2005 ele saiu de seu semianonimato para virar um dos homens mais comentados do país, já que o arcebispo portenho era um dos papáveis da América Latina. Na ocasião, o cardeal portenho ficou em segundo lugar, com possíveis 40 votos, sendo superado por Joseph Ratzinger, que foi entronizado Bento XVI.
Em uma de suas raras entrevistas, o novo papa disse ao La Stampa em 2012 o que pensava de sua condição então como importante cardeal. "O cardinalato é um serviço, não uma honorificência da qual se vangloriar." A vaidade de si mesmo, disse então, era um comportamento de mundanidade espiritual, "o pior dos pecados na Igreja". "O carreirisrno, a procura de favores, fazem parte dessa mundanidade espiritual". E conclui dizendo que "o pavão é bonito quando olhado de frente, mas depois de alguns passos, vendo-o pelas costas, é possível ver a realidade". "Essa vaidade esconde uma miséria muito grande."
O homem que faz sua própria comida, mora em um apartamento pequeno em vez de desfrutar de um palácio do arcebispado, que prefere o ônibus e o metrô em vez de carros oficiais terá agora de andar no papamóvel. Compreensível, portanto, que nas congregações antes do conclave Bergoglio tenha defendido diante dos demais cardeais "um cristianismo de misericórdia" e que, arcebispo de Buenos Aires, tenha incentivado o trabalho missionários nas favelas e comunidades pobres da cidade.
Nos últimos anos, antes de deixar de ser primaz da Argentina, Bergoglio sofreu um duro revés político quando o Parlamento argentino aprovou um projeto de lei do Partido Socialista (mas respaldado pelo governo da peronista Cristina Kirchner) aprovando o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Bergoglio, na véspera da votação, deixou de lado seu estilo sóbrio e desferiu um irritado sermão contra o projeto, que foi aprovado com ampla maioria. Muitos integrantes do clero acharam que essa derrota implicaria na perda de pontos como papável em um próximo conclave.
Ontem, ao tornar-se o papa Francisco, Bergoglio, além de se ser o primeiro latino-americano a ocupar o trono de São Pedro, também quebrou a restrição - implícita - de que um jesuíta fosse escolhido papa. Desde que foi criada, há quase cinco séculos, a poderosa Companhia de Jesus jamais teve um representante como líder da Igreja Católica, principalmente pela oposição de outras congregações que temiam seu crescimento.
Homem afável, mas de poucas - embora certeiras - palavras, o ex-primaz da Argentina sempre fez questão de manter profundo silêncio sobre sua vida particular. Aqueles que o conhecem bem sustentam que só mostra intensa paixão quando fala de Fiodor Dostoievski, seu escritor preferido. "É um jesuíta até a medula. Fala pouco. Ouve o dobro do que fala. E pensa o triplo do que ouve", disse ao Estado em 2005 um ex-embaixador argentino em Roma, que completa dizendo que jamais desejaria ter Bergoglio como inimigo.
Com ironia, explica: "Quem vive, como Bergoglio, só à base de frango cozido e verduras, só pode ser um cara perigoso". Sergio Rubin, especialista em igreja católica - assinou a coautoria do livro El Jesuita, conversaciones con el cardenal Jorge Bergoglio (O jesuíta, conversas com o cardeal Jorge Bergoglio) - disse que o novo papa é "muito argentino". Ele gosta de tango, do escritor argentino Jorge Luis Borges e de rezar todas as manhãs. "Ele é homem austero na vida pública e privada e gosta de se despedir dizendo, rezem por mim, o mesmo que fez no primeiro discurso como Papa", disse seu ex-porta- voz, Guillermo Marco.
Futebol. Filho de imigrantes italianos (seu pai era ferroviário e sua mãe, dona de casa), o cardeal nasceu no dia 17 de dezembro de 1936 no bairro de classe média de Flores, em Buenos Aires. Desde criança, foi torcedor fanático do time de San Lorenzo, fundado por um padre no início do século. Mas nunca pôde aspirar a jogar futebol além da praça do bairro. Seu físico, quando adolescente, era franzino. Aos 20 anos, passou por uma grave operação para a retirada de um de seus pulmões.
Após se formar como técnico químico e encerrar o namoro com uma vizinha, Bergoglio entrou para a Companhia de Jesus, ordem caracterizada por obediência e disciplina ascética que historiadores preferem definir como militar. Ensinou literatura, psicologia e filosofia.
Ordenado sacerdote aos 33 anos, aos 36 já era o comandante dos jesuítas na Argentina. Nos anos que se seguiram - as décadas de 70 e 80 paira uma nebulosa sobre a vida de Bergoglio.

Bergoglio não deve mudar dogmas sobre fé e moral



Novo papa é um ortodoxo em termos de doutrina e, como dizem especialistas, 'um jesuíta nunca deixa de ser um jesuíta'

14 de março de 2013 | 4h 17
MARCELO GODOY - O Estado de S.Paulo
Jorge Mario Bergoglio é a síntese dos dois principais papáveis que entraram no conclave. O argentino é próximo ao movimento Comunhão e Libertação assim como o cardeal italiano Angelo Scola. É também um latino-americano, a exemplo do brasileiro Odilo Scherer. Se os desafios maiores da Igreja eram a crise do catolicismo na Europa e a nova evangelização, buscando enfrentar os problemas culturais existentes na África e na Ásia, nada melhor do que a Companhia de Jesus e um papa chamado Francisco para a tarefa.
Bergoglio é um homem de 76 anos e não um jovem como muitos apostavam que seria o novo papa. Trata-se de um ortodoxo em termos de doutrina; fiel, portanto à linha de Bento XVI. Não se deve, também, esperar dele mudanças nos dogmas da Igreja a respeito de fé e moral. Não foi nisso que pensaram os cardeais que o escolheram. Ele é um jesuíta - o primeiro da história a se tornar papa - e "um jesuíta nunca deixa de ser jesuíta, aconteça o que acontecer ele carrega de forma indelével a marca da Companhia de Jesus", lembra o coordenador do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade católica de São Paulo (PUC-SP) e professor de teologia, Francisco Borba.
Para entender isso é preciso conhecer a história da Companhia de Jesus. Fazia 19 anos que Martinho Lutero havia sido excomungado pelo papa Leão X quando outro papa - Paulo III - confirmou a criação da Ordem em 1540 por meio da bula Regimini militantis Ecclesiae. Foram os jesuítas que enfrentaram a reforma protestante na Europa. Tornaram-se a tropa de choque de um catolicismo que via multidões passarem para o lado de Lutero. Se Joseph Ratzinger cresceu em uma Baviera católica, por exemplo, isso se deve a esses missionários. Eles criaram o catolicismo na América Latina - José de Anchieta, Manoel da Nóbrega e Antonio Vieira eram jesuítas - e o levaram à Índia, China, Indonésia e Moçambique.
Anteontem, em entrevista ao Estado, o filósofo, padre e coordenador internacional da revista Communio, Jean-Robert Armogathe, havia chamado a atenção para a importância que devia ter para a Igreja encontrar uma resposta aos desafios da nova evangelização, tanto na Europa descristianizada, quanto no Oriente e na África. Ontem, após o anúncio do novo papa, Armogathe lembrou o fato de o novo papa ter sido o ordinário dos católicos de rito oriental na Argentina, ou seja era responsável por atender espiritualmente maronitas, melquitas, coptas, armênios etc. Mais uma vez, portanto, procurou-se em Bergoglio mais do que um missionário, buscou-se um olhar para o Oriente.
Nome. O nome adotado pelo papa Bergoglio só confirma essa escolha pelas Índias. É lícito pensar que um jesuíta que escolhe o nome de Francisco quer homenagear um dos fundadores de sua ordem: São Francisco Xavier. Podia escolher o nome de outro fundador: Inácio. Mas não. Quis se chamar Francisco. Por quê? A escolha se explica mais uma vez pelo desafio atual da Igreja. Francisco Xavier deixou Portugal em 1541 e viajou para as Índias com Martim Afonso de Souza.
Em Moçambique, o futuro santo iniciou seu trabalho missionário, convertendo os primeiros africanos ao catolicismo. Depois esteve em Goa, na Índia, na Indonésia, no Japão e na China. Morreu, em 1552, aliás, quando tentava entrar nesse país, onde atualmente os cristãos vivem, em sua maioria, a realidade de uma Igreja clandestina, perseguida pelo governo comunista. O corpo de Francisco Xavier está em Goa, antiga possessão portuguesa na Índia.
Armogathe lembra que as origens italianas de Bergoglio - havia 28 cardeais desse país no conclave - devem ter facilitado seu caminho para o trono de São Pedro. "Ele é o sinal para o clero de que a Igreja está entrando em um novo tempo: é um papa velho, um sábio, que tem uma vida espartana", disse o professor Borba. Um novo João XXIII? "Não, não creio", afirma Borba. "Bergoglio representa os valores da tradição com uma forte presença social. É uma síntese entre Scola e d. Odilo. Fico impressionado com os caminhos e respostas que o Espírito Santo, que Deus dá para a sua Igreja", disse Borba.