domingo, 9 de setembro de 2012

De sitiante a semeador de florestas


TÂNIA RABELLO - O Estado de S.Paulo
Há quatro anos, em uma pequena parcela do Sítio Duas Cachoeiras, de 30 hectares, em Amparo (SP), região de Campinas, despontavam, numa área que antes era pasto degradado, mudinhas de árvores nativas recém-plantadas. As espécies que compuseram o reflorestamento da vez - assim como das várias outras vezes - foram escolhidas de maneira curiosa: com o Cartório de Registro de Imóveis de Amparo, em antigas escrituras de terras da região. O proprietário do sítio, Guaraci Diniz Júnior, lembra da busca, feita em parceria com o historiador Roberto Pastana Teixeira Lima. "Acidentes naturais, como rios e montanhas, eram usados para demarcar o limite das propriedades", comenta. "E também árvores."
Guaraci Diniz criou a primeira RPPN de Amparo (SP) - Marcio Fernandes/AE
Marcio Fernandes/AE
Guaraci Diniz criou a primeira RPPN de Amparo (SP)
Assim, sabia-se que, do angico branco, contando-se cem passos, até a margem do Rio Camanducaia, tinha-se parte do limite de uma fazenda. De lá, virava-se à esquerda, chegando ao jequitibá-rosa, próximo à paineira. A candeia ficava ali, encostada numa grande rocha oval, e também servia como ponto de demarcação de limites. "Detectamos, nesses registros, cerca de cem espécies de árvores ocorrentes na vegetação da região", diz Diniz, que pôde recompor o histórico florestal de uma área bastante desmatada.
As mudas nativas Diniz vem obtendo, nos 25 anos em que já faz esse trabalho de recomposição florestal, de várias maneiras. Por meio de um pequeno viveiro próprio, e também do Consórcio das Bacias dos Rios Piracicaba-Capivari-Jundiaí; de parcerias com viveiristas e até com empresários interessados em neutralizar as emissões de carbono, financiando o plantio de árvores nativas dentro do Programa Estadual de Microbacias da Secretaria de Agricultura paulista.
O plantio e a manutenção das mudinhas plantadas há quatro anos - 5 mil, no total, em 4,8 hectares - foram bancados voluntariamente pelo empresário Samuel Lopes de Oliveira, dono de uma gráfica em Santo André (SP), que com isso neutralizou no mínimo 40 toneladas de carbono/ano, levando-se em conta todas as atividades da gráfica.
Há quatro anos eram mudinhas isoladas numa árida área de pasto. Agora, ao revisitá-las e vê-las a meio caminho de se transformarem numa densa floresta, só dá para parafrasear Pero Vaz de Caminha: "Nesta terra, em se plantando, tudo dá". Em 2009 foram mais 2 mil mudas e, recentemente, Diniz plantou 4 mil, em 4 hectares. Em breve, mais um trecho de mata surgirá.
Há dois anos, parte da área florestal, 6,3 hectares, transformou-se na primeira Reserva Particular do Patrimônio Natural da região, a RPPN Sítio Duas Cachoeiras. E assim permanecerá intocada, independentemente de o sítio mudar de dono ou não.
Vida orgânica. Guaraci Diniz seria um sitiante como qualquer outro que precisasse ou quisesse reflorestar sua propriedade, não fosse o propósito que se incumbiu - ou foi incumbido, por força das circunstâncias -, de tentar viver o mais organicamente possível. "Sou de São Paulo. Quando vim para o sítio, foi para morar mais perto da faculdade, que fazia em Campinas", diz. "Quando a gente vem morar numa propriedade rural e percebe todas as necessidades do local, começa a pensar em como atendê-las, não necessariamente gerando receita, mas sobretudo sem gerar despesa."
Adubos verdes. Começou por cultivar o próprio alimento. E a pesquisar como fazê-lo da maneira mais saudável e menos custosa possível - sem o uso de adubo químico e agrotóxicos -, só fertilizando a terra com o que a própria natureza oferece, como adubos verdes, obtidos dos próprios restos de culturas. Foi se enfronhando no universo da agroecologia e partiu para a agrofloresta, cultivo que tenta imitar a biodiversidade de uma floresta tropical ou é feito dentro da própria mata. Então, além do alimento, começou a formar uma floresta que abrigasse as plantas cultivadas.
Hoje o Sítio Duas Cachoeiras tem 80% de sua área reflorestada. São 7 hectares de mata com mais de 50 anos, que já existiam, e mais 17 hectares de floresta reintroduzidos por Diniz.
O resultado do trabalho foi aparecendo. "De uma nascente e meia - porque uma secava no inverno -, hoje tenho cinco, com água abundante." Seu modo de vida mudou e a sustentabilidade do sítio pôde ser provada em números. Há dez anos, o Laboratório de Engenharia Ecológica e Aplicada da Unicamp calculou o índice de sustentabilidade do Sítio Duas Cachoeiras: 87%.
Ou seja, 87% das necessidades da propriedade são atendidas ali, desde alimentos até energia - painéis solares dão conta do aquecimento da água e de fornecimento de eletricidade, além de rodas d'água instaladas no ribeirão que corta a propriedade e forma duas cachoeiras. "É o que se consegue quando se trata a terra como um organismo; nós fazemos parte dele", ensina. O aprendizado desses anos se transformou em consultorias, que presta não só na região, mas aos interessados de todo o País, ensinando a quem quiser sobre manejo agroecológico de sítios, recomposição florestal, sementes e agrofloresta.
Outro estudo feito no sítio, também da Unicamp, detectou a importância da manutenção ou recomposição da cobertura vegetal nas áreas rurais para a produção de água limpa e abundante para a população. "Com a floresta recomposta, contribuímos com o aumento da capacidade de abastecer de água de excelente qualidade o distrito de Arcadas, em Amparo", garante. Esse estudo demonstrou que somente a área reflorestada no sítio produz o equivalente a 1,5% da água necessária para o abastecimento da área urbana de Amparo.
Em um terceiro estudo, o pesquisador Thiago Roncon, da Universidade Federal de São Carlos, provou que floresta em pé vale mais que soja, por todos os benefícios econômicos e ambientais ao entorno. "Quando se fala em pagamento por serviços ambientais, como querem os governos federal e estadual, essas contas deveriam ser levadas em consideração. Os benefícios que uma propriedade preservada gera para a comunidade são infinitamente maiores que os R$ 200 por hectare que o governo estadual se propõe a pagar para os produtores."
Antes e depois. Nas fotos que mostram o antes e o depois do sítio, é patente a transformação da paisagem. De pastos degradados - cenário ainda presente nas propriedades vizinhas -, o sítio virou oásis. Literalmente, pois no período seco é comum vizinhos virem lhe pedir água para dar às criações ou às lavouras, ainda tratadas convencionalmente e com nascentes intermitentes.
"Infelizmente, os agricultores do entorno ainda adotam práticas convencionais, com adubos químicos e agrotóxicos e sem controle da erosão." Assim, não é possível evitar a contaminação do Ribeirão do Mosquito, que divisa a propriedade e faz parte de área de preservação de mananciais.
Hoje Diniz ainda mantém uma pequena área de pasto rotacionado para cerca de 30 ovelhas e 6 cavalos. "Todos os animais aqui morrem de velhos", diz o sitiante, que teve um cavalo que viveu surpreendentes 31 anos. As ovelhas hoje contribuem para a retirada da lã, que a mulher de Guaraci, Cecília, usa para fazer tapetes e tecidos em cursos de tecelagem, com corantes naturais, tirados de plantas como urucum, barbatimão, anileira e curcuma.
O próximo passo agora é garantir a viabilidade da RPPN, atraindo investidores socioambientais interessados em contribuir com o plano de manejo, que todo proprietário de reservas do gênero tem de fazer. "Assim manteremos as atividades de educação ambiental com escolas e de visitas de pesquisadores interessados em conhecer mais a fundo o nosso trabalho", diz. "Eles sempre constatam que, se bem tratada, a terra responde, e rápido."

A verdade, alto e bom som, Aliás, 9 set 12


BERNARDO KUCINSKI - O Estado de S.Paulo
Ouvimos depoimentos dramáticos na primeira reunião da Comissão da Verdade com os familiares de desaparecidos políticos, em junho em São Paulo. Já há uma terceira geração assombrada pelos seus desaparecidos: sobrinhos buscando despojos de tios, netos inquirindo por avós. Essa reunião deveria ter sido aberta à imprensa, transmitida pelos meios de comunicação de massa. Mas ela se deu a portas fechadas.
Por que a Comissão da Verdade trabalha em sigilo, como se ainda estivéssemos em tempos de ditadura? Já naquela reunião sugeri, em curta intervenção, que as reuniões fossem abertas. Hoje, acrescento, que haja sessões televisadas, como são as da Câmara, do Senado e do Supremo. Se a Comissão da Verdade não foi criada para fazer justiça, se não tem objetivo punitivo, que outro sentido teria senão o pedagógico, o de revelar a nossos filhos e netos as atrocidades cometidas no passado recente para que não se repitam?
Um dos membros da comissão, o advogado José Carlos Dias, argumentou, então, que o sigilo era necessário para que os depoentes se sentissem à vontade para falar, para que se pudesse chegar à verdade última dos fatos. Mas, que verdades a Comissão da Verdade procura? O que é a verdade, numa comissão que não tem funções processuais? Que não precisa provar a um júri que o agente do Estado assassinou aquele estudante já rendido com três tiros e não com quatro ou com dois, ou a pauladas?
Claro, ainda queremos enterrar nossos mortos. Ainda há uma verdade individual devida a cada família. Essa é a dimensão pessoal da tragédia. Mas há a dimensão nacional, na qual a verdade que interessa é a verdade socializada, apropriada pela sociedade civil, a verdade como ferramenta de conscientização e elaboração da nossa história. O que está em jogo é o domínio da memória histórica. E isso só se consegue abrindo as sessões ao conhecimento amplo, televisionando-as, exibindo as inquirições e documentos encontrados, aí sim, nos mais escabrosos detalhes, para que não seja uma narrativa abstrata.
A abertura ampla das sessões como estratégia geral não impediria a convocação de determinados protagonistas da repressão para algumas sessões reservadas nem colidiria com essa convocação. Que não seja esse o motivo. Muitos desses personagens já estão falando, sem exigir sigilo, em livros recém-publicados. Outros estão depondo ante a força-tarefa dos procuradores federais que investigam as desaparições, mesmo sabendo que esses procuradores, diferentemente da Comissão da Verdade, têm como objetivo fazer justiça.
Já se passaram quatro meses desde a instalação da Comissão da Verdade e nada se sabe sobre seus trabalhos. Ocasionalmente se lê nos jornais que a comissão vai chamar fulano ou sicrano, por terem sido citados em reportagens desses mesmos veículos, entre elas o pungente relato deste jornal sobre a Casa da Morte, de Petrópolis. É a mídia pautando a Comissão da Verdade e não a Comissão da Verdade pautando a mídia.
Em debate sobre a Comissão da Verdade, no mês passado, em Brasília, um de seus membros, o ex-procurador da República Cláudio Fonteles, iniciou sua fala com a advertência: "A comissão da verdade não levará a nada sem a pressão da sociedade civil". Disse também que um dos objetivos da Comissão da Verdade é estimular a formação de outras comissões da verdade pelo Brasil afora, comissões estaduais, municipais, em vários âmbitos. Eu então perguntei, e repito aqui a pergunta: como motivar a sociedade civil, se seus trabalhos são secretos?
Essa é a principal contradição da Comissão da Verdade: adotar procedimentos de inquérito policial, que tem por objetivo fundamentar indiciamentos em tribunal, embora seu objetivo seja o julgamento histórico, não o criminal. Outra contradição é a que se dá entre o perfil dos seus sete integrantes, pessoas comprometidas com os direitos humanos, e a natureza de uma comissão nascida por razões de Estado, com as limitações delas decorrentes.
Essa é uma contradição que sempre existiria em algum grau, porque o Estado é um espaço de disputa. Mas, ao adotar o segredo como estratégia, a comissão tenta resolver essa contradição assumindo as razões do Estado, não as da sociedade civil. Mais que isso, extrapolou as razões de Estado, pois a lei que a instituiu não impôs o segredo absoluto a seus trabalhos, apenas abriu a possibilidade de sigilo se assim o desejar determinada testemunha.
Ao final dessas sessões sigilosas, a Comissão da Verdade deverá nos apresentar um relatório, talvez chocante, revelando episódios, fatos e comprometimentos, a maioria dos quais já conhecidos em linhas gerais e muitos deles com detalhes. Talvez até solte, antes disso, um relatório parcial ou dois. Tanto os relatórios parciais, se existirem, quanto o final, vão ganhar alguns dias de destaque na mídia. E depois não mais se falará no assunto. E se, posteriormente, alguém ousar levantar de novo o tema dos desaparecidos, o pensamento hegemônico responderá: vocês já não tiveram a Comissão da Verdade, que mais vocês querem?

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A pesada herança FHC-lulista


FHC conseguiu reaproximar Dilma e Lula ao chamar de "herança pesada" o legado do petista no momento de fraqueza máxima do PT desde que se tornou o partido mais forte do país.
Podia parecer injusto ou até coisa para Freud a obsessão de Lula em difamar FHC. Mas era antes de tudo política nua e crua. Diminuir FHC e PSDB era aumentar Lula e PT.
Agora FHC tomou para si o mesmo personagem que Lula adotou de acusador, mas certamente mais fleumático, mais "cool".
FHC sentiu o momento oportuno de atacar, mesmo atraindo fogo e abalando o namoro com Dilma (sintomaticamente, iniciado por ela).
A fraqueza do PT aparece ao menos em três frentes importantes:
1 - O julgamento do mensalão já sangra o partido com a desmontagem da tese do caixa 2 e as condenações de João Paulo Cunha. E mais sangue deve jorrar.
2 - A doença de Lula o impediu de fazer política com a intensidade que gosta e de ter a visibilidade que precisa para manter sua mágica com o público. Quanto mais ele fica longe do Planalto, mais seu poder diminui. E o PT até aqui sempre foi do tamanho de Lula.
3 - Dilma, naturalmente, está cada vez mais forte, e essa força só cresce em detrimento da força de Lula e do PT. A cadeira de presidente no Brasil é poderosa demais para ser tutelada. Ainda mais com a personalidade de Dilma. O único político capaz de desafiá-la hoje no Brasil é Lula, o que já basta para colocá-los em lados opostos.
E temos ainda o quadro eleitoral, que pode aprofundar a crise do partido e do lulismo. Ou não. Sem querer ser paulistanocêntrico, vai depender de São Paulo. Se Fernando Haddad ganhar, tonificará Lula e será o melhor contrapeso à sangria no STF.
Mas se Haddad fracassar, e o PT perder nas capitais, passando a concentrar votos mais nas pequenas e médias cidades do que nos grandes centros dinâmicos, a crise vai aumentar.
A sorte de Dilma, Lula e PT é que a oposição não quer briga, é mole. No máximo ela disputa votos, mas não visão de país, liderança.
Lula não só fechou o consenso no Brasil em torno do capitalismo, como, à chinesa, conseguiu trazer para a esquerda os ganhos do capitalismo.
Tudo teria sido melhor e mais rápido se o consenso democrático-capitalista tivesse sido mais organizado, como a concertação chilena pós-Pinochet, que colocou centro e centro-esquerda do mesmo lado revezando-se no poder e garantindo estabilidade e previsibilidade cruciais.
Aqui tivemos aquele processo torto de saída da ditadura. A morte de Tancredo Neves antes da posse abriu caminho para Sarney e Collor, que desmoralizaram de vez uma direita já debilitada pela burrice e truculência da ditadura.
Imagine se PT e PSDB tivessem entrado em acordo pós-Collor em apoio à estabilidade e aos fundamentos da economia de mercado.
Como ninguém no PSDB parece estar muito confiante para enfrentar Dilma ou/e Lula em 2014, os tucanos bem que podiam buscar a presidenta para uma concertação brasileira.
Ao contrário do antecessor, Dilma já reconheceu os méritos do tucanato. Disse ela na mensagem que enviou à FHC por seus 80 anos, em junho passado:
"Em seus 80 anos há muitas características do Senhor Presidente Fernando Henrique a homenagear. O acadêmico inovador, o político habilidoso, o ministro-arquiteto de um plano duradouro de saída da hiperinflação e o presidente que contribuiu decisivamente para a consolidação da estabilidade econômica.
Mas quero aqui destacar também o democrata. O espírito do jovem que lutou pelos seus ideais, que perduram até os dias de hoje. Esse espírito, no homem público, traduziu-se na crença do diálogo como força motriz da política e foi essencial para a consolidação da democracia brasileira em seus oito anos de mandato...
Não escondo que nos últimos anos tivemos e mantemos opiniões diferentes, mas, justamente por isso, maior é minha admiração por sua abertura ao confronto franco e respeitoso de ideias. Querido Presidente, meus parabéns e um afetuoso abraço!"
O afeto de Dilma foi histórico, um sinal de distensão importante rumo à concertação brasileira. Mesmo a nota da presidenta em apoio a Lula após os ataques de FHC não foi muito dura, apesar da pressão do PT.
O Brasil perdeu anos sem foco, desorganizado, bruto e brutal. Por décadas, uma parte imensa da população esteve abaixo da cidadania, subsistindo apenas. A estabilidade econômica e política a partir do Plano Real levou, com a ênfase distributiva de Lula, dezenas de milhões de brasileiros a se tornarem cidadãos plenos. Por isso, a história do Brasil, a que inclui todos os seus habitantes, começou para valer só agora.
FHC, Lula e Dilma são como os pais-fundadores desse novo Brasil democrático e capitalista. Se suas forças políticas pudessem se unir, estaríamos mais prósperos e menos vulneráveis a políticas e políticos temerários que vicejam no presidencialismo de coligação, essa pesada herança FHC-lulista.
Sérgio Malbergier
Sérgio Malbergier é jornalista. Foi editor dos cadernos "Dinheiro" (2004-2010) e "Mundo" (2000-2004), correspondente em Londres (1994) e enviado especial da Folha a países como Iraque, Israel e Venezuela, entre outros. Dirigiu dois curta-metragens, "A Árvore" (1986) e "Carô no Inferno" (1987). Escreve às quintas no site da Folha.