sábado, 5 de maio de 2012

Adeus, simplicidade


CELSO MING - O Estado de S.Paulo
Acabou a simplicidade das cadernetas de poupança. As que forem abertas a partir de agora terão rendimento de 70% da Selic.
- Selic? O que é essa Selic? - pergunta dona Maria.
- Ora, Selic é o Sistema Especial de Liquidação e de Custódia, que fica lá no Banco Central. É o esquema que controla a emissão, o resgate, o pagamento dos juros e a guarda dos títulos do Tesouro... Passou a ser também o valor dos juros que o Banco Central paga às instituições financeiras nas suas transações diárias de liquidez... E, enfim, Selic é também o tamanho dos juros básicos obtidos pela calibragem do volume de dinheiro na economia, determinada pelo Banco Central...
Vai ser complicado para dona Maria fazer os cálculos com 70% da Selic. Precisa saber em quanto está a Selic e, ainda, como fazer essa conta.
Uma comparação ajuda a entender a complexidade. O consumidor sabe que o poder energético do álcool é de só 70% do da gasolina. Portanto, sempre que o preço do álcool superar os 70% da gasolina, é melhor encher o tanque do carro flex com gasolina, não com álcool. Mesmo assim, no posto de gasolina ninguém consegue calcular de cabeça. Pois 70% da Selic é o que a caderneta vai pagar.
A complexidade não termina aí. O mercado terá agora três cálculos diferentes para determinar o rendimento da caderneta. Como nada muda para as cadernetas antigas, elas continuarão pagando 0,5% ao mês (ou 6,17% ao ano) de juros mais a Taxa Referencial de Juros (TR) - que quase não conta, de tão pequena que é. Com isso, a caderneta antiga segue remunerando por ano algo em torno dos 6,5%. E até aí as coisas ainda ficam relativamente simples para o povão.
O rendimento da nova caderneta, no entanto, terá dois cálculos. O primeiro deles será aplicado se os juros básicos (a tal Selic) ficarem acima de 8,5% ao ano. Nesse caso, prevalecerá o esquema antigo. E outra conta será feita se a Selic baixar a 8,5% ou menos, que é quando se aplicarão os 70% da Selic.
A simplicidade é uma qualidade inestimável que precisou ser sacrificada agora para permitir a derrubada dos juros para níveis internacionais.
Mas, se é assim, talvez fosse melhor, como na Europa e nos países avançados, deixar que os bancos definissem livremente a remuneração da caderneta, em vez de complicar tudo com fórmulas diferentes. Não é o que já acontece quando o investidor quer aplicar seus recursos em Certificados de Depósito Bancário (CDBs)?
Em todo o caso, a opção está feita. O caminho para a derrubada dos juros está aberto, sem risco de forte migração de aplicações em renda fixa para cadernetas. O único obstáculo para a queda dos juros seguirá sendo eventual cavalgada da inflação que, no momento, não dá sinais disso.
Nisso, a presidente Dilma teve mais coragem do que o presidente Lula, que evitou mexer na caderneta por medo de ser equiparado ao ex-presidente Collor, notabilizado pelos estragos a que submeteu a poupança popular.
Os tão temidos problemas políticos em decorrência do que foi feito parecem afastados. A própria presidente Dilma julgou necessário preparar o golpe. Primeiro, passou para a opinião pública a imagem de que está peitando os bancos. Depois, quando ganhou auras de dama de ferro com os cartolas do dinheiro, fez o que tinha de fazer com as cadernetas. As reações políticas são tímidas ou inexistentes.

Verdade desabafada


Flávia Piovesan
Em livro lançado essa semana, o ex-delegado de polícia Cláudio Guerra assume a autoria de crimes contra militantes políticos, revelando que corpos foram incinerados em uma usina de cana em Campos dos Goytacazes, nos anos 70 e 80. Em outros depoimentos identifica mandantes de crimes contra militantes políticos, tecendo um relato inédito da repressão.
No depoimento, Guerra afirma também que militares executaram o delegado do Dops Sérgio Fleury - Reprodução
Reprodução
No depoimento, Guerra afirma também que militares executaram o delegado do Dops Sérgio Fleury
As impactantes revelações do ex-delegado intensificam o debate público a respeito da criação da Comissão Nacional da Verdade, tendo a força catalisadora de fomentar outros depoimentos e informações sobre as graves violações perpetradas ao longo do regime militar. Ineditamente, em 18 de novembro de 2011, foi adotada a Lei n. 12.528, que institui a Comissão, com a finalidade de examinar e esclarecer crimes praticados durante o regime militar, efetivar o “direito à memória e à verdade e promover a reconciliação nacional”. O Programa Nacional de Direitos Humanos III, lançado em 21 de dezembro de 2009, já previa a Comissão de Verdade, com o objetivo de resgatar informações relativas ao período da repressão militar.
Contudo, tal proposta foi alvo de acirradas polêmicas, controvérsias e tensões políticas entre o Ministério da Defesa (que a acusava de “revanchista”) e a Secretaria Especial de Direitos Humanos e o Ministério da Justiça (que a defendiam em nome do direito à memória e à verdade), culminando, inclusive, com a exoneração do general chefe do departamento do Exército, por ter se referido à “comissão da calúnia”.
Qual é o sentido do direito à verdade? Qual é seu alcance e propósito? Em que medida pode contribuir para a consolidação democrática? Para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, “toda sociedade tem o direito irrenunciável de conhecer a verdade do ocorrido, assim como as razões e circunstâncias em que aberrantes delitos foram cometidos, a fim de evitar que esses atos voltem a ocorrer no futuro”. O direito à verdade apresenta uma dupla dimensão: individual e coletiva.
Individual ao conferir aos familiares de vítimas de graves violações o direito à informação sobre o ocorrido, permitindo-lhes o direito a honrar seus entes queridos, celebrando o direito ao luto. Coletivo ao assegurar à sociedade em geral o direito à construção da memória e identidade coletivas, cumprindo um papel preventivo, ao confiar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a ocorrência de tais práticas. Como sustenta um parlamentar chileno: “A consciência moral de uma nação demanda a verdade porque apenas com base na verdade é possível satisfazer demandas essenciais de justiça e criar condições necessárias para alcançar a efetiva reconciliação nacional”.
No mesmo dia 18 de novembro de 2011, foi também adotada a lei que garante o acesso à informação, sob o lema de que a publicidade é a regra, sendo o sigilo a exceção. Com efeito, no regime democrático a regra é assegurar a disponibilidade das informações. As limitações ao direito de acesso à informação devem se mostrar necessárias em uma sociedade democrática para satisfazer um interesse público imperativo. No atual contexto brasileiro, o interesse público imperativo não é o sigilo eterno de documentos públicos, mas, ao contrário, o amplo e livre acesso aos arquivos. Para Norberto Bobbio, a opacidade do poder é a negação da democracia, que é idealmente o governo do poder visível, ou o governo cujos atos se desenvolvem em público, sob o controle democrático da opinião pública.
Diversamente dos demais países da região, como conclui o pesquisador americano Anthony Pereira, “a justiça de transição no Brasil foi mínima. Nenhuma Comissão de Verdade foi (ainda) instalada, nenhum dirigente do regime militar foi levado a julgamento e não houve reformas significativas nas Forças Armadas ou no Poder Judiciário”. No Brasil tão somente foi contemplado o direito à reparação, com o pagamento de indenização aos familiares dos desaparecidos políticos, nos termos da Lei n.9140/95.
Direito à verdade e direito à informação simbolizam um avanço extraordinário ao fortalecimento do Estado de Direito, da democracia e dos direitos humanos no Brasil. São instrumentos capazes de transformar a dinâmica de poder dos atores sociais, revelando o sentido do presente e sua relação com o passado. A luta pelo dever de lembrar merece prevalecer em detrimento daqueles que insistem em esquecer. Afinal, como observa o filósofo Charles Taylor, “para termos um sentido de quem somos, temos que dispor de uma noção de como viemos a ser e para onde estamos indo. Isso requer uma compreensão narrativa da vida. O que sou tem que ser entendido como aquilo em que me tornei, pela história de como ali cheguei”.
FLÁVIA PIOVESAN É PROFESSORA DE DIREITOS HUMANOS DA PUC/SP E PUC/PR, PROCURADORA DO ESTADO DE SP E FELLOW DA HUMBOLDT FOUNDATION NO MAX-PLANCK-INSTITUTE (HEIDELBERG)

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Mudou


Celso Ming - O Estado de S.Paulo
Depois de alguma hesitação, o governo Dilma decidiu antecipar a mudança de regras da caderneta. Entendeu que não poderia correr o risco de se expor aos ataques da oposição como confiscador da poupança do povão às vésperas das eleições. (O País continua traumatizado com o bloqueio da poupança do Plano Collor em 1990 e, ainda que sejam situações diferentes, as comparações são quase inevitáveis.)
Desde logo, confirmam-se duas suposições - ou quase suspeitas, digamos assim. A primeira delas é a de que o Banco Central deixou de administrar a política monetária como pede o regime de metas de inflação. Passou a operar com meta de juros. Os juros têm de cair porque assim o determinou o governo Dilma. Depois se vai ver o que fazer com eventuais efeitos colaterais.
Em princípio, nada de errado na troca de metas. O problema está em que o Banco Central não a admite. Toda sua comunicação e, principalmente, os textos oficiais mantêm o teatro de que continua a observar estritamente os critérios do sistema de metas.
A segunda quase suspeita é a de que vem aí um corte mais alentado dos juros básicos. A proposta inicial era apenas atingir um dígito (juros abaixo de 10,0% ao ano). Mas, de lá para cá, a atividade econômica baqueou, conforme ficou confirmado ontem com baixo desempenho da indústria (veja o Confira). Como não se viram ainda sinais de nova safra de inflação, a decisão foi derrubar ainda mais os juros. E aí passou a ser necessária a alteração das regras das cadernetas. Elas pagam rendimento anual entre 6,5% e 7,5% - juros anuais de 6,17% mais a Taxa Referencial de Juros (TR) - e não estão sujeitas nem ao Imposto de Renda nem a taxas de administração. Isso significa que, a partir de juros básicos (Selic) de 8,5% ao ano (hoje estão em 9,0%), as cadernetas começarão a tirar fatia de mercado dos títulos do Tesouro e dos fundos de renda fixa.
A nova remuneração da caderneta corresponderá a 70% da Selic mais a TR quando os juros básicos ao ano estiverem em 8,5% ou abaixo disso. Isso quer dizer que juros a 8,5% ao ano estarão pagando algo em torno dos 6,0%. Como ficou definido que os juros cairão, logo chegará o dia em que a nova caderneta pagará remuneração bem mais baixa do que a que começa a valer agora.
Muitas são as questões que terão de ser avaliadas nas próximas semanas a respeito das novas regras. Uma delas é o nível de risco que deverão trazer para o Sistema de Poupança e Empréstimo. Fácil entender por quê. Os depósitos em poupança são usados pelos bancos para financiar a compra de casa própria a juros proporcionais aos pagos ao aplicador na caderneta. Se a Selic tiver de voltar a subir - como já teve tantas vezes no passado -, a remuneração da caderneta também terá e, com ela, os juros cobrados do mutuário do sistema. Se os juros na ponta do tomador do financiamento habitacional forem fixos, haverá o risco de ficarem descasados com a remuneração paga na nova caderneta - embora o ministro da Fazenda, Guido Mantega, desconsidere essa possibilidade. E, se forem flutuantes, para que acompanhem a remuneração da caderneta, o risco será o descasamento entre o valor da prestação (mais os juros nela embutidos) e a renda familiar do mutuário.
Até agora, o governo apenas revelou preocupação com o impacto político da mudança. Vai ser preciso saber como vai equacionar essas variáveis técnicas.