terça-feira, 16 de novembro de 2010

Sem espaços para a filosofia

11/11/2010 - 03h11 dos  sites (Envolverde/Observatório da Imprensa)


Por Lilia Diniz, do Observatório da Imprensa

O Observatório da Imprensa exibido na terça-feira (9/11) pela TV Brasil discutiu o reduzido espaço e a pouca atenção que a mídia oferece para reflexões filosóficas e científicas. Em meio às transformações constantes e profundas do mundo contemporâneo, a imprensa parece trabalhar apenas com o imediato.

No corre-corre diário das redações, as hard news acabam se impondo na pauta e temas mais complexos ficam em segundo plano. Reflexo do estilo de vida cada vez mais veloz e fracionado dos leitores, a imprensa deixa de lado o seu papel de promover o debate em torno de grandes temas. Os principais jornais de circulação nacional contam com cadernos dedicados à cultura e arte em geral, mas a filosofia não consegue penetrar de forma contínua e eficaz nesses espaços.

Para discutir este tema, Alberto Dines recebeu três filósofos no estúdio do Observatório da TV, no Rio de Janeiro. Adauto Novaes é jornalista e professor, estudou Filosofia na Escola de Altos Estudos e jornalismo no Instituto Francês de Imprensa, ambos na Sorbonne. Foi redator do departamento de Pesquisa do Jornal do Brasil e fundou, há dez anos, o Centro de Estudos Artepensamento, por meio do qual organiza ciclos de conferências. Franklin Leopoldo e Silva é professor aposentado do departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e atualmente professor visitante do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Newton Bignotto é mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutor em Filosofia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris. É professor de Filosofia Política e de História da Filosofia do Renascimento do Departamento de Filosofia da UFMG.

No editorial que precede o debate no estúdio, Dines questionou se a sociedade contemporânea está desperdiçando a capacidade humana de buscar o sentido das coisas. "Perdemos a capacidade de digerir as mudanças descarregadas pela galáxia novidadeira? As tensões e o estresse – artificiais ou não – de uma sociedade espetacularizada não estariam nos empurrando para uma banalização que encara a Filosofia como chatice? A imprensa tem muito a ver com esta onda de simplificações e esta perda de transcendentalidade. Ao abdicar do papel de alavanca para indagações, ela estimula o simplismo, o reducionismo e a irracionalidade", avaliou.

Exemplo a ser seguido

No debate no estúdio, Adauto Novaes chamou a atenção para a pouca cobertura da mídia sobre a morte do filósofo Claude Lefort (1924-2010), um dos grandes pensadores da Filosofia política do século passado, ocorrida em 3 de outubro último. Além de destacada carreira internacional, Claude Lefort foi professor na USP e contribuiu para a formação de diversas gerações de intelectuais no Brasil. Na visão de Adauto, a morte do filósofo não passaria em branco para o setor de pesquisa do Jornal do Brasil porque o departamento, periodicamente, preparava cadernos sobre personagens e momentos importantes do passado e da atualidade. "Uma morte como esta teria, no mínimo, uma página no dia seguinte. O espaço da reflexão se perdeu na imprensa escrita", criticou.

O professor Franklin Leopoldo e Silva questionou o papel dos leitores nesta conjuntura: "Será que a nossa oferta de boa qualidade na imprensa não está à altura do público porque não há demanda sobre isso, ou será que a demanda condiciona ou induz uma certa oferta de qualidade?", perguntou. Para o filósofo, a questão passa pelo caráter pedagógico da imprensa. A mídia não como função conduzir os indivíduos nem formar opiniões, mas sim impulsioná-los em direção à autonomia. Fazer com que o cidadão pense por si mesmo. "A formação, que não envolve uma passividade do indivíduo, é realmente algo que só pode ser possível se você oferecer ao público sempre um pouquinho mais do que aquilo que ele está habituado a ter", disse. O professor reconhece que seria necessário um esforço maior do leitor, no entanto ponderou que o empenho é estimulante para a mentalidade crítica.

Dines questionou se a universidade continua sendo o "lugar da reflexão". Para Newton Bignotto, a academia ainda ocupa este espaço, embora tenha perdido atualidade. "Em busca de um modelo em que o produto, independente do seu conteúdo, parece mais importante, muitas vezes nós estamos renunciando a enfrentar temas contemporâneos mais árduos, mais difíceis", disse. De um lado, os intelectuais buscam se proteger de "um certo ensaísmo" pouco rigoroso. Mas ao fazer este movimento e tratar de "pequenos temas e problemas", perdem o sentido da atividade e acabam gerando um "produtivismo" que os isola do tempo presente e tem como consequência a restrição do público.

De olhos fechados para as mutações

Na avaliação de Adauto Novaes, os meios de comunicação talvez não estejam se dando conta das profundas transformações pelas quais o mundo passa hoje. As chamadas "mutações", tema estudado pelo grupo de convidados do Observatório há cinco anos em ciclos de conferência realizados por todo o Brasil, ocorrem, de acordo com Adauto, a partir de uma impactante evolução técnico-científica, biotecnológica e da informática. Dentro deste aspecto, todas as áreas estão passando por transformações nas mentalidades, na ética, na política e nos costumes. E é preciso refletir sobre esses temas. O filósofo avalia que imprensa escrita oferece pouco espaço para discussões como esta, novas em vários campos da atividade humana.

"Talvez seja este um dos problemas. Querer entrar neste novo mundo onde estamos vivendo. Aquilo que a Hannah Arendt (1906-1975) diz: a gente vive entre dois mundos, um que não acabou inteiramente e outro que não começou inteiramente. A gente está nesta passagem e talvez a imprensa esteja nesta passagem também – e ainda não acordou para esta realidade", disse. Adauto sublinhou que atualmente vivemos em um momento de "passagem radical". Após as duas grandes guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945), teve início a grande mudança gerada pelas transformações científicas, tecnológicas e da informação. "Os jornais também estão refletindo este impacto hoje. Eles estão perdidos", comentou.

Através da experiência com os ciclos de conferência organizados por Adauto Novaes, o professor Franklin Leopoldo e Silva observou que este é um nicho que poderia ser mais bem explorado. "Apesar de todas as dificuldades, como a inflação de idéias, por exemplo, há ali um público em potencial capaz de assimilar criticamente uma discussão feita em um nível razoavelmente elevado, levando-se em conta, naturalmente, a maneira pela qual você aborda a contemporaneidade", afirmou.

O professor comentou que em todos os ciclos organizados por Adauto há uma ligação entre a História do Pensamento e da Cultura com acontecimentos que são capazes de despertar no ouvinte ou no leitor "certas ligações"; e levar o público a perceber que o passado serve para compreender o presente e que os acontecimentos podem ser mais bem analisados à luz de uma estrutura cultural histórica.

Fatos e reflexões


Adauto Novaes aproveitou para homenagear os conferencistas que participam das palestras e que hoje compõe uma "comunidade de amigos". Para preparar os ciclos, os palestrantes se reúnem para uma discussão de idéias e buscam integrar as diversas disciplinas. Não há apenas filósofos. O grupo conta com cientistas políticos, cientistas sociais e psicanalistas. Adauto comentou que a Filosofia está segregada na sociedade e que os ciclos de conferência tentam expandir o público interessado neste tipo de discussão. Adauto lembrou que o poeta e filósofo Paul Valéry (1871-1945) começa o ensaio Prefácio às cartas persas afirmando que "a era da barbárie é a era dos fatos, nenhuma sociedade se estrutura, se organiza, sem as coisas vagas". Por "coisas vagas" se entende a Filosofia, as abstrações, as Artes, os ideais políticos. "A gente está vivendo hoje a era dos fatos. Tudo se reduz a ‘fato’ e a idéia do Pensamento está a reboque desses fatos". Para o filósofo, este é o grande desafio da atualidade.

Dines comentou que o espaço da Filosofia na iniciativa privada ainda é muito restrito e questionou se o mercado poderia "tirar as pessoas da barbárie dos fatos" para criar o hábito da reflexão. Para Franklin Leopoldo e Silva, o mercado de bens culturais tende a facilitar e a simplificar. A maioria dos eventos pretende oferecer ao público apenas o mínimo e fazê-lo pensar apenas o mínimo. "O que a gente nota no mercado editorial e na oferta de eventos, de maneira geral, é esta tentativa de contemporizar, simplificar, e não mexer muito com a acomodação das pessoas. Não fazer com que a reflexão seja um instrumento de mudança na vida pessoal e coletiva, porque isto incomoda". Esta conjuntura tem reflexos no patrocínio da iniciativa privada. "Muitos não querem ver a sua marca associada a questões ‘estratosféricas’", disse o professor. As leis de incentivo promovem o interesse do setor, mas ainda de maneira lenta.

A participação da internet também esteve em pauta no Observatório. Newton Bignotto comentou que as conferências inaugurais realizadas no Rio de Janeiro são transmitidas em tempo real via web. Este ano, o ciclo foi seguido pela rede de microblogs Twitter. "A internet é uma ferramenta essencial nisso. Até porque justamente ela precisa, talvez, estar menos condicionada a grandes meios, e é muito eficaz. Eu sou otimista neste sentido. Eu acho que a internet, como o que está acontecendo com os blogs hoje, produz um debate, uma possibilidade de encontro que é impossível em outros meios. Também para a troca de pensamentos, é muito razoável nos servirmos da internet", avaliou o filósofo.

Elogio à preguiça

O tema do próximo ciclo, revelado por Adauto Novaes aos telespectadores do programa, será a preguiça. "Como diz o [Albert] Camus (1913-1960), é o ocioso que transforma o mundo porque os outros não têm tempo", disse. O filósofo destacou que este assunto é interessante para a atualidade exatamente porque quanto mais se trabalha, menos se pensa. Questões como o esgotamento do corpo e do espírito através do trabalho, o ócio e o tempo para a reflexão estarão em pauta. "É um tema muito sério. Veja o que estava acontecendo com os pobres que estavam soterrados lá no Chile. A imprensa fala diariamente, mostra imagens miraculosas, maravilhosas, mas nenhum jornal, nenhuma televisão falou das condições de trabalho que levaram a isso. Isso é muito mais importante", assegurou.

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Mídia e filosofia

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 571, exibido em 9/11/2010

Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.

Alguns otimistas etiquetam os nossos tempos como "a era da informação", outros preferem uma designação mais cautelosa, cética. Segundo eles, estaríamos na "era da indiferença". Uma terceira visão parece mais adequada e equilibrada: a era da informação – o dilúvio informativo – produz uma fragmentação e uma secundarização que deságuam numa espécie de letargia coletiva e globalizada. Informação e indiferença, portanto, fariam parte do mesmo pacote.

Isso significa que a sociedade contemporânea está desperdiçando a capacidade humana de buscar o sentido das coisas? Perdemos a capacidade de digerir as mudanças descarregadas pela galáxia novidadeira? As tensões e o estresse – artificiais ou não – de uma sociedade espetacularizada não estariam nos empurrando para uma banalização que encara a filosofia como chatice? Penso, logo existo saiu de moda?

A imprensa tem muito a ver com esta onda de simplificações e esta perda de transcendentalidade. Ao abdicar do papel de alavanca para indagações, ela estimula o simplismo, o reducionismo e a irracionalidade. Para o brasileiro médio, Sócrates é uma grande estrela do futebol, médico, corintiano, capitão da nossa seleção em 1982. Mas sobre o seu homônimo precursor, o filósofo grego Sócrates, é uma abstração.

Mas nem tudo está perdido. Este Observatório traz hoje uma experiência muito bem sucedida comandada por um jornalista-filósofo que em três décadas organizou trinta ciclos de conferências em sete cidades brasileiras. Cada ciclo resultou num livro e desta biblioteca foram vendidos 180 mil exemplares.

Adauto Novaes é o autor desta façanha que, de certa forma, tem o seu início no velho departamento de pesquisa do recém-falecido Jornal do Brasil. Também estão conosco neste programa Franklin Leopoldo e Silva e Newton Bignotto, filósofos que participam constantemente dos ciclos de debates promovidos por Adauto.




A Amazônia pecuarista se industrializa

16/11/2010 - 04h11 do site Envolverde


Por Mario Osava, da IPS

Porto Velho, Brasil, 16/11/2010 – Após se transformar em exemplo de desmatamento da Amazônia brasileira, ao acumular um rebanho de 12 milhões de reses, o Estado de Rondônia aproveita a construção de duas grandes hidrelétricas e corredores interoceânicos para passar de fronteira agrícola para industrial. A Indústria Metalúrgica Mecânica da Amazônia, inaugurada em março pelo grupo francês Alstom, em sociedade com a empresa brasileira Bardella, marca esta transição. Em Porto Velho, capital de Rondônia, produzirá equipamentos para as centrais elétricas previstas em rios amazônicos do Estado e do resto do Brasil, da Bolívia e do Peru, apesar dos protestos de ambientalistas, indígenas e moradores ribeirinhos. 

O conglomerado industrial brasileiro Votorantim já havia inaugurado, em 2009, uma fábrica de cimento em Porto Velho para atender a demanda de Santo Antonio e Jirau, as hidrelétricas em construção no trecho do Rio Madeira, um dos maiores afluentes do Amazonas, que passa pelo Estado. Somente Santo Antônio exigirá uma quantidade de concreto correspondente a 36 Maracanãs, o estádio de futebol do Rio de Janeiro considerado o maior do mundo, e o aço corresponderá a 16 torres Eiffel, segundo Eduardo Bezerra, funcionário da Odebrecht, principal sócia e construtora da hidrelétrica.

Abundância de eletricidade e matérias-primas, além de facilidades logísticas por estar no centro do corredor entre portos peruanos do Pacífico e brasileiros do Atlântico atraíram investimentos produtivos para o Estado, afirma Gilberto Baptista, superintendente da Federação das Indústrias de Rondônia. As duas hidrelétricas aumentaram em 6% a capacidade de geração do país, contribuindo com 6.450 megawatts, que aumentarão se forem aprovadas ampliações dos projetos originais.

Mais importante, segundo Gilberto, será uma melhor ligação ao Sistema Integrado Nacional de eletricidade, o que garantirá o fornecimento estável à indústria. Santo Antonio e Jirau, combatidas por ambientalistas como elementos de um desenvolvimento tradicional depredador da Amazônia, exigirão investimentos equivalentes a US$ 15 bilhões, quase o dobro do atual produto interno de Rondônia. O emprego para 30 mil trabalhadores e a forte demanda por bens e serviços aumentaram a renda local, impulsionaram a construção e o comércio e atraíram imigrantes, com sua consequente explosão de preços da habitação e dos alugueis.

Entretanto, esse crescimento é anterior ao início da construção das centrais, em 2008. O PIB de Rondônia cresceu quatro vezes mais do que a média nacional entre 2003 e 2007, segundo o economista Valdemar Camata, gerente de Relações Institucionais da Odebrecht. Em 2009, gerou dois terços de todos os empregos da região Norte. A isenção ou redução de impostos, tanto para o mercado interno quanto para a exportação, bem como um crédito barato, favorecem esta industrialização, acrescentou.

Atualmente, Rondônia é produto da expansão agrícola para o interior da Amazônia, empurrada pelo regime militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985. Terras doadas e uma migração principalmente do Sul, atraída por enganosas promessas de encontrar o “Eldorado”, multiplicaram por dez sua população entre 1970 e 1991. Três décadas depois do auge da “colonização”, apenas 53,8% de seus 1,52 milhão de habitantes são naturais do Estado, destacou o economista.

O cultivo de arroz, cacau, café, milho e outros produtos cedeu a primazia à pecuária, que, a partir da década de 1980, cresceu vertiginosamente, até chegar aos 12 milhões de cabeças de gado bovino atuais, o que dá a espantosa proporção de oito animais para cada habitante do Estado. A carne se converteu na principal produção do Estado. A indústria de lácteos e frigoríficos se seguiu à economia anterior, extrativa florestal e mineradora, golpeada pelo desmatamento e pelas crescentes exigências ambientais. De 2.500 empresas madeireiras, “hoje restam não mais de 200”, disse Valdemar.

As vias de transporte, até agora escassas e precárias, serão outro fator a empurrar o desenvolvimento econômico em Rondônia. Estão em marcha a pavimentação de estradas que cruzam todo o Estado e o vizinho Acre, com ramificações até a fronteira com Bolívia e Peru, junto com a construção de pontes e hidrovias que farão de Rondônia um centro logístico das regiões amazônica e andina.

O setor empresarial de Rondônia, com escassa cultura exportadora, “apenas olhava São Paulo” e outros grandes mercados brasileiros, mas agora se volta também para o Pacífico, abrindo “uma nova fronteira de progresso”, resumiu Gilberto. Isso significa um mercado de 140 milhões de habitantes nos países andinos vizinhos que, por serem “pouco industrializados, se abastecem no oeste dos Estados Unidos e na Ásia”, acrescentou Valdemar.

Rondônia, mais próximo, pode disputar consumidores com essas nações que somam um PIB de US$ 1,3 trilhão. A potencialidade se reflete no comércio do Brasil com o Peru. Em 2003, o intercâmbio era de apenas US$ 727 milhões e em 2008 chegou a US$ 3,255 bilhões, com grande superávit para o Brasil, disse Valdemar, afirmando que após uma queda em 2009, devido à crise econômica mundial, as exportações se recuperaram este ano.

Os planos empresariais e governamentais, que fazem de Porto Velho um ponto de confluência de várias rotas, compreendem a estrada para Manaus, capital do Amazonas, uma ferrovia para a região Sudeste, a mais rica do país, e uma hidrovia para unir Rondônia com o Norte da Bolívia e o Sudeste do Peru. A rodovia BR 139, construída na década de 1970, atualmente intransitável na maior parte de seus 870 quilômetros, exige uma reconstrução entravada por exigências ambientais. Teme-se que aumente o desmatamento para o centro ainda preservado e muito biodiverso da Amazônia.

É uma alternativa mais rápida do que a paralela hidrovia do Rio Madeira, facilitando o transporte de produtos perecíveis, como verduras, para o grande mercado de Manaus, um polo industrial de 1,7 milhão de habitantes, com saída para o Caribe por uma estrada que cruza a Venezuela, e para o Norte do Atlântico pelo Rio Amazonas.

Além de gerarem eletricidade, Santo Antonio e Jirau têm o “objetivo estratégico” de promover a integração entre Brasil, Bolívia e Peru, “para a expansão do agronegócio” e a exportação de madeira, segundo Guilherme Carvalho, coordenador na Amazônia da organização não governamental Fase. Para isso estão previstas eclusas e no futuro a construção de uma extensão da hidrovia do Madeira para a parte alta e acidentada da bacia.

Porém, segundo Valdemar, será viável apenas se foram construídas outras duas hidrelétricas em rios formadores do Madeira: uma binacional em Mamoré, na fronteira com a Bolívia, e outra nesse país vizinho, no Rio Beni. Isso aumentaria a hidrovia em 4.225 quilômetros, para alcançar a área central boliviana e a região peruana de Madre de Dios.

Ambientalistas e ativistas sociais são contra esses projetos, por considerá-los parte de um modelo de desenvolvimento que destroi as florestas, a biodiversidade e as condições de vida dos povos tradicionais da Amazônia, o que agrava a mudança climática. Está em jogo a “última fronteira amazônica”, segundo Alfredo Wagner de Almeida, antropólogo que organizou o livro “Conflitos Sociais no Complexo Madeira”, com estudos de 21 pesquisadores, e coordena o projeto Nova Cartografia Social da Amazônia. Envolverde/IPS

FOTO
Crédito:
 Mario Osava /IPS
Legenda: O cimento domina trecho do Rio Madeira onde está em construção a Hidrelétrica Santo Antônio.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Aos nossos filhos

11/11/2010 - 11h11


Por Frei Betto*

Não tenho filhos. Mas, obviamente, sou filho, em companhia de mais sete irmãos. Se me faltam filhos biológicos, tenho-os espirituais ou por vínculos de parentesco. Sobrinhos são 16. Sobrinhos-netos, 14, dos quais nove com menos de cinco anos de idade!

Quando se fala em legado aos filhos há quem, de cara, pense em dinheiro. Tudo bem que os pais queiram fazer um pé de meia de olho no futuro de seus rebentos. Mas... cuidado! Não é dinheiro o que um filho mais espera dos pais, ainda que não saiba expressá-lo. É amor, amizade, apoio e, sobretudo, exemplo de vida. Thomas Mann dizia que um bom exemplo é o melhor legado dos pais aos filhos.

Ainda que os pais, bafejados pela roda da fortuna, deixem a seus descendentes gordas heranças, estas não deveriam ser o principal legado. Nada mais perigoso a um jovem que centrar sua autoestima na conta bancária ou no patrimônio familiar. É meio caminho para se tornar arrogante, preconceituoso e vulnerável às drogas. Sobretudo à cocaína, cujo efeito anaboliza a prepotência. Ao primeiro revés, o herdeiro despencará no abismo, despreparado para enfrentar a realidade.

Quem não se sente subjetivamente valorizado corre o risco de querer nutrir sua autoestima através de valores financeiros e patrimoniais. O ter suplantando o ser. Como o desejo tem fome de infinito, o tamanho da ambição costuma ter a medida da profundidade da frustração. Na Roma antiga os filósofos aconselhavam a considerar o necessário o suficiente. Uma sábia dica para saber lidar com a avassaladora pulsão consumista que assola o mundo.

Educação e espiritualidade

O melhor legado aos filhos é, sem dúvida, uma boa educação. Não me refiro apenas à escolaridade, que é imprescindível. Pesquisas comprovam que, no mercado de trabalho, o nível de escolaridade corresponde ao salarial. Conhecimento é poder.

A educação ética deveria ser o principal legado aos filhos. E ela decorre do exemplo dos pais. Estes devem fazer a escolha: incutir nos filhos atitudes de competitividade ou de solidariedade? O professor Milton Santos, da USP, enfatizava a importância de se perseguir os bens infinitos, e não apenas os finitos. A advertência ganha especial importância neste mundo desimbolizado, desencantado, em que vivemos, onde se carece de abertura aos valores transcendentais.

Em sua Metafísica dos costumes Kant alerta: "Tudo tem ou bem preço ou bem dignidade. O que tem preço pode ser substituído por seu equivalente; ao contrário, o que não tem preço e, portanto, equivalente, é o que possui dignidade." Em outras palavras, o sadio orgulho de ser ético se contrapõe à miserável satisfação de ser esperto.

Uma criança não deve ser movida a consumo, e sim a aprendizado, brincadeiras e fantasias. Um jovem será tanto mais cidadão quanto mais se incutir nele esperanças altruístas, ideais, sentido de vida e utopias.

Toda criança é mimetista. Se os pais dizem que toda pessoa merece respeito e, ao mesmo tempo, tratam a faxineira como escrava virtual, com certeza o filho fará o mesmo quando adulto. Idem no que diz respeito à preservação ou degradação ambiental.

O legado moral consiste em evitar que o filho seja preconceituoso, mentiroso, invejoso, e saiba tratar cada ser humano com pleno respeito à sua dignidade e a seus direitos. Sobretudo, que tenha espírito crítico e disposição de tornar o mundo menos desigual e mais justo.

Todos acompanhamos o recente episódio, no Rio, do rapaz que, num racha, desrespeitou a sinalização de "trânsito impedido" num túnel em obras e matou Rafael, 18, filho da atriz Cissa Guimarães com o músico Raul Mascarenhas. Segundo o noticiário, o pai do jovem homicida teria subornado os policiais incumbidos de puni-lo. Tal pai, tal filho.

Isso vale para outros aspectos da vida. Como se queixar do filho obeso se os pais se empanturram à mesa e se entopem de açúcares e gorduras saturadas?

Com frequência, pais de adolescentes me consultam sobre como agir frente à indiferença religiosa dos filhos. Minha primeira reação é dizer que a pergunta veio com dez anos de atraso. Se os filhos tivessem 6 ou 8 anos, e não 16 e 18, eu saberia o que aconselhar: orem com eles, leiam e comentem a Bíblia, levem a sério o caráter religioso de datas como Páscoa, Natal ou, caso não sejam cristãos, as efemérides próprias de sua denominação religiosa.

E exercite-os na cada vez mais rara virtude da tolerância. Deus não tem religião. Ensinem a seus filhos não considerarem diferença divergência.

Pela ordem natural, pais morrem ou transvivenciam antes de seus descendentes. Se indaguem - que imagem vocês deixarão na memória de seus filhos? Lembrem-se de seus próprios pais e avós. Quais os legados positivos e negativos eles imprimiram em sua memória afetiva? Deixaram saudades?

A parábola


Um homem muito rico, acometido de grave doença e desenganado pelos médicos, convocou filhos e netos para comunicar-lhes a herança que lhes deixaria. Todos, ansiosos, compareceram ao hospital. Formaram uma grande roda em torno do leito.

Dada a ordem, o advogado do enfermo abriu a pasta e distribuiu aos herdeiros caixas de fósforos, uma para cada um. Decepcionados, entreolharam-se e, ao abrirem a caixinha, encontraram pequenas sementes. O homem, tomando em mãos uma das caixas, explicou:

"Esta semente é a do amor; esta, da solidariedade; esta aqui, da compaixão; esta, da amizade; aquela ali, do perdão. Se vocês souberem cultivá-las, haverão de ser felizes."

E acrescentou:

"A fortuna que acumulei será destinada a obras sociais."

*Escritor e assessor de movimentos sociais, autor de "A arte de semear estrelas" (Rocco), entre outros livros. http://www.freibetto.org/- twitter:@freibetto