O Brasil é um país desigual. Tem 63% de toda a riqueza nas mãos de 1% da população, enquanto a metade mais pobre divide 9,3% da renda total. No campo do direito penal, essa desigualdade tem uma dimensão ainda maior. Desde a seleção dos abordados pela polícia até a execução das penas, pobres, negros e pessoas de baixa escolaridade são os alvos preferenciais do sistema penal.
Pessoas negras e moradores da periferia têm quatro vezes mais chances de serem abordadas pela polícia do que brancos em bairros ricos. A população dos presídios é composta de pobres com baixa escolaridade: 61% não completaram o ensino médio, e apenas 0,92% têm curso superior completo.
Há crimes e contravenções que apenas os menos favorecidos podem praticar, como o delito de tomar refeição em restaurante ou utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recursos para efetuar o pagamento, em que o ato reprovável não é o calote, mas a falta de recursos, a ausência de bens para fazer frente à dívida; ou a vadiagem, descrita como o ato de entregar-se habitualmente à ociosidade sem ter renda que lhe assegure meios de subsistência. Ilícita não é a ociosidade, mas a falta de renda que assegure essa ociosidade.
Por outro lado, leis que tratam de crimes usualmente praticados pelos mais abastados preveem benefícios não estendidos aos demais. Nos crimes fiscais, o pagamento do valor devido, mesmo depois da condenação do réu em todas as instâncias, extingue a punibilidade do delito, acaba com qualquer possibilidade de aplicar a pena. Esse favor não existe para os demais crimes patrimoniais praticados sem violência ou grave ameaça, como o furto ou a apropriação indébita. Nesses casos, mesmo que o valor seja restituído e reparado o dano, a pena será imposta.
A mesma diferença de tratamento ocorre quando a Justiça reconhece o princípio da insignificância, que afasta a aplicação da pena para delitos de considerados de pequeno valor. Nos crimes comuns, como o furto, o limite da insignificância alcança, quando muito, 10% do salário-mínimo. Nos fiscais, consideram-se insignificantes valores até 20 mil reais, porque sonegações até esse montante não são passíveis de execução fiscal. O resultado: um terço dos presos no Brasil foi condenado pelo crime de furto, enquanto os tributários representam 1% do mesmo conjunto.
Há algo errado com um sistema que faz pesar o direito penal sobre uma parcela da população, enquanto poupa outros do incômodo do castigo, muitas vezes diante de agressões mais graves ao bem comum. Que concede benefícios para certos delitos, em geral praticados pelos mais abastados, e prega a prisão como único remédio para tantos outros, encerrando atrás de grades um contingente de 700 mil pessoas, todas da mesma classe social.
Para agravar esse quadro lamentável, o Congresso Nacional começou a discutir um projeto de lei que altera os tempos de progressão de regime de prisão, com o objetivo de minorar as penas do ex-presidente Jair Bolsonaro, dentre outros. Se aprovado, os condenados pela maior parte dos crimes previstos na lei penal, desde que não hediondos e que o réu seja primário, poderão progredir do regime fechado —com restrição de liberdade em tempo integral— para o semiaberto —no qual é possível deixar a prisão para trabalhar durante o dia— quando cumprido 1/6 da pena. Isso não vale para todos os delitos: os condenados por crimes contra a vida, integridade ou patrimoniais, com violência ou ameaça, alcançarão o benefício apenas quando cumprido 1/4 da pena.
Mais uma vez, a desigualdade. Não parece proporcional ou justo dificultar a progressão de regime àquele que praticou um roubo ou uma lesão corporal leve e facilitar a execução da pena do chefe que cometeu assédio sexual, do agente público que desviou dinheiro da saúde, de quem se envolveu em corrupção ou fraude a licitações, queimou ilegalmente milhares de hectares de floresta ou daquele que tentou dar um golpe de Estado com violência ou ameaça.
Roubar um celular é grave, merece punição e tem pena de prisão de 4 a 10 anos. Mas tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, um governo legitimamente constituído é mais grave, tanto que a pena prevista é maior, de 4 a 12 anos de prisão. O primeiro delito afeta o patrimônio de uma pessoa, o segundo abala os fundamentos da democracia, e tem por consequência, em regra, prisões injustas, torturas, censura e arbitrariedade.
Nada justifica um tempo de progressão menor ao segundo, a não ser a usual benevolência com que o Brasil costuma tratar certos criminosos, em especial quando não são pobres, pretos e moradores das periferias.


