Quando tinha 14 anos, Raphael Montes já queria ser escritor e revelou o desejo para a mãe. Proveniente de uma família de classe média baixa do subúrbio carioca, ouviu na hora um conselho realista, mas desencorajador: “Filho, escritor no Brasil só tem o Paulo Coelho”.
Nem por isso ele desistiu. Ávido leitor de romances policiais, de autores consagrados como Sir Arthur Conan Doyle e Agatha Christie, logo percebeu que não havia uma referência literária desse estilo no País, com exceção de nomes esparsos como Luiz Alfredo Garcia Roza ou artistas de outras áreas que se arriscaram no gênero, como Jô Soares e o titã Tony Bellotto.
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Hoje, com apenas 33 anos, Montes é um dos escritores mais populares do Brasil. Recheados de violência e reflexões sobre temas relevantes à sociedade, seus livros – e suas respectivas adaptações para o audiovisual – atraem uma legião de fãs, ou melhor: “missionários”, como ele mesmo define os devotos que “espalham a palavra” do mestre do suspense.
Depois do sucesso de Dias Perfeitos (2014), Jantar Secreto (2016), Bom Dia, Verônica (2016), entre outros, o autor acaba de lançar Uma Família Feliz, trama complexa sobre a maternidade, que faz parte de um projeto multimídia – a versão cinematográfica, estrelada por Reynaldo Gianecchini e Grazi Massafera, já disponível nos cinemas. LEIA AQUI SOBRE O FILME
Em entrevista ao Estadão, por videoconferência, Montes falou sobre temas recorrentes em sua obra e destacou a importância da literatura provocativa, além de outros assuntos.
Como é ser um autor tão popular no Brasil?
É um privilégio. Quando o meu primeiro livro saiu, o meu editor falou: ‘Você sabe que ninguém gosta de ler literatura policial brasileira. O Brasil é um país solar, do carnaval, da alegria, da festa, não combina com histórias de suspense. O suspense é mais pro londrino, pro clima de Nova York’. Mas eu comecei a fazer muito porque eu gosto, no universo que eu conheço. Eu tenho a impressão de que a minha carreira, que começou há cerca de 10 anos, cresceu ao mesmo tempo em que o público brasileiro, por causa das redes sociais, passou a gostar de ler histórias brasileiras, que se passam no seu país, com seus trejeitos, suas questões culturais, seus debates sociais.
Você é formado em direito, como esse curso te ajudou na criação dessas histórias?
Quando eu tinha que escolher a minha faculdade, eu queria ser escritor. E para mim não existe faculdade de escritor. Acho que o curso de Letras não ajuda você a ser escritor, ajuda a entender de literatura, mas não a ser escritor, porque é preciso ter certa liberdade e às vezes até certa ignorância. Se você sabe tudo, estuda os movimentos e o estilo do William Faulkner, do Machado, profundamente, você trava, entende? Tenho a sensação de que Letras me engessaria muito. Então fiz Direito na UERJ, mas nunca trabalhei como advogado, porque justamente quando eu estava na faculdade, publiquei meu primeiro livro, o Suicidas. E quando eu terminei a faculdade, lancei o segundo livro, Dias Perfeitos, e ele em poucos meses entrou na lista dos mais vendidos. E foi vendido para mais de 10 países em uma semana. Aí naquela época eu ganhei um dinheiro que eu falei ‘Isso aqui é o meu salário de advogado por um ano. Então eu vou sair do escritório, vou experimentar por um ano ser só escritor e ver se funciona’. E foi o que eu fiz, por enquanto eu não precisei voltar para o escritório.
A violência gráfica é uma característica proeminente no seu trabalho. O Quentin Tarantino disse que via filmes violentos desde criança e ouvia da mãe: ‘Quentin, eu me preocupo mais com você vendo o noticiário. Um filme não vai te fazer mal algum’. É por aí, um livro violento não faz mal a ninguém?
Eu acho. Gosto de histórias de violência, porque a violência é uma maneira de você investigar o ser humano, a sociedade, e também, de algum modo, colocar para fora sentimentos que todos temos: mágoa, angústia, raiva. Acontece com alguma frequência de eu ter leitores de 11 anos de idade, que leem meus livros adultos e os pais brincam: ‘Poxa, meu filho lendo um livro chamado Jantar Secreto, sobre jantares de uma high society carioca comendo carne humana’. E aí a minha resposta a isso é que, primeiro, a literatura oferece a nós um arcabouço emocional. Eu não preciso ser uma mãe que perdeu um filho pra ter a sensação de uma mãe que perdeu um filho, porque eu já li histórias de mães que perderam seus filhos. Acredito que se um pai vê que o filho gosta de histórias violentas, de crime, ele tem que estar próximo, orientar, conversar sobre isso. E que bom, você vai estar formando uma pessoa que pensa assuntos. Não vejo um grande perigo. Estou longe de ser uma pessoa soturna e macabra. Violência real eu detesto, nem gosto de ver documentários de serial killers, true crime, que estão super na moda. A ficção é o lugar que me atrai, porque ali a própria violência tem uma certa ordem, tem uma certa lógica. A violência na ficção, a meu ver, é mais uma ferramenta para você refletir sobre quem pratica violência.
É recorrente na sua obra uma investigação e subversão da família tradicional brasileira. Por quê?
Uma coisa que me interessa muito é o mundo de aparências, o que as pessoas mostram e quem elas realmente são. Por exemplo, as redes sociais estão muito presentes em Uma Família Feliz. Você está deprimido em casa, posta uma foto sorrindo, com filtro e escreve ‘Carpe Diem’. E as pessoas vão lá e curtem, comentam, parece estar tudo bem e não está. Eu sempre tenho muito medo e ojeriza dos extremos. Tenho medo das pessoas muito más, mas também morro de medo das pessoas muito boas, que só têm pensamentos bons, que só querem o bem, que não têm qualquer egoísmo, inveja. Mentira! Essas pessoas são mentirosas, são perigosíssimas. Também não acredito na pessoa que só tem uma vida péssima o tempo inteiro, porque na miséria você tem momentos de felicidade e na riqueza você tem muitas relações falsas.
Você é muito convincente quando adota o eu lírico feminino. Como moldou esse olhar na sua obra?
Esse é o trabalho do escritor: vestir corpos, cabeças e experiências que não são as suas. É engraçada essa pergunta agora quando eu lanço Uma Família Feliz porque, quando escrevi Dias Perfeitos, que é o livro da perspectiva de um psicopata, falaram ‘Nossa, como é que você faz tão bem? Você é um psicopata?’ Não, mas eu vesti a cabeça de um psicopata. E agora, eu vesti a cabeça de uma mulher e no outro livro eu vesti a cabeça de um jovem do interior, que eu também não sou. Nós escritores temos uma responsabilidade pelo que escrevemos. Mas a responsabilidade não é um impedimento, não é uma censura, é só uma responsabilidade. Então, quando eu vou escrever a história da perspectiva de uma mulher, sei que eu não sou uma mulher, mas eu posso ler muito sobre o assunto, conversar com muitas pessoas. E foi o que eu fiz.
E tem a questão da maternidade, tema tão presente em ‘Uma Família Feliz’. Por que é importante desvirtuar essa ideia de que ser mãe é algo sagrado e inquestionável?
Porque a maternidade é algo misterioso e curioso. Ao escrever o livro eu mostrei para algumas pessoas. Uma amiga leu e falou: ‘Meu Deus, você está descrevendo a minha gravidez!’. Eu mostrei para outra e ela falou: ‘Isso aqui é um bando de clichês de gravidez, porque minha gravidez foi ótima!’. Mas não existe verdade, não existe regra. Essa idealização da maternidade é fruto de uma lógica machista da nossa sociedade, de que a mulher tem que estar pronta e não interessa a carreira. E esse machismo não vem só dos homens, vem também de algumas mulheres, das próprias amigas, que pressionam essa espécie de vocação para ser mãe.
Qual a importância de fazer uma literatura provocativa? É um norte do seu trabalho tocar em pontos que deixem as pessoas desconfortáveis?
Sem dúvida. Eu não diria desconfortáveis, mas reflexivas, incomodadas, instigadas, cutucadas. Eu não acredito numa literatura que tenha mensagem, que seja didática, panfletária. Para mim, tudo isso tem espaço na não ficção, no ensaio. Mas a arte da ficção, para mim, é contar uma boa história. A relação que eu estabeleço com o meu leitor é tão íntima e bonita, porque ele cria junto comigo, é meu coautor. O leitor pensa a cara dos personagens, cria a entonação daquelas falas, pinta o cenário na mente. Mas, além de contar uma boa história, o que eu tento fazer, em geral, é discutir assuntos que me interessam.
3 livros e 3 filmes favoritos?
Livros: E não sobrou nenhum (1989), de Agatha Christie; O Bebê de Rosemary (1967), de Ira Levin; e O Talentoso Ripley (1955), de Patricia Highsmith.
Filmes: Cães de Aluguel (1992); 12 Homens e uma Sentença (1957) e Violência Gratuita (1997).
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