Às vésperas de completar 55 anos, a TV Cultura, principal emissora pública do país, enfrenta uma investida do governo Tarcísio de Freitas, do Republicanos, e de deputados aliados na Assembleia Legislativa de São Paulo.
Na frente das câmeras, o discurso é o de que o governo pretende reduzir gastos e aumentar a eficiência da Fundação Padre Anchieta, que administra a TV Cultura. Por trás das câmeras, está o roteiro de uma série de crises entre o conselho da fundação e o governo, que se incomoda com a independência da programação da emissora.
O barril de pólvora vem de longa data, do início da gestão Tarcísio, e se incendiou nesta semana, quando o deputado Guto Zacarias, do União Brasil, vice-líder do governo na Alesp, propôs uma CPI para investigar supostas irregularidades na fundação.
O nó dessa relação é que, embora a TV Cultura seja uma emissora pública, ela é gerida por um conselho que tem autonomia em relação ao governo.
Ironicamente, a autonomia agora questionada por Tarcísio é garantida por um decreto assinado em plena ditadura militar. Em 1967, o governador Abreu Sodré assinou o decreto de criação e aprovação do estatuto da Fundação Padre Anchieta, que teria o objetivo de operar emissoras de rádio e televisão educativas. O texto previa autonomia para a fundação, uma entidade de direito privado, que deveria ser gerida por um conselho curador com representantes do governo e da sociedade civil.
Em 15 de junho de 1969, a TV Cultura de São Paulo entrou no ar e passou a ser mantida por repasses do governo do estado e por receitas próprias da fundação.
A relação entre uma TV pública e um governo que, em boa parte, a financia, mas não a controla, nasceu, portanto, para ser tensa. É uma tensão que, de certa forma, colabora para garantir o pluralismo e a independência política da programação.
E essa tensão pode ser mais forte ou menos, mais saudável ou menos, a depender da compreensão de cada governante sobre o papel da TV pública e também, claro, da capacidade de gestão da emissora e da qualidade de sua programação.
A insatisfação de Tarcísio com a TV Cultura foi exposta por ele a deputados aliados durante um jantar no início deste mês. Interlocutores do governador detalham que há no governo uma frustração por ter de bancar a fundação sem que tenha o seu controle.
No jantar, Tarcísio apontou que a TV Cultura tem aproximadamente o dobro de funcionários de emissoras como a CNN e a Jovem Pan –a Fundação Padre Anchieta rebate a comparação, afirmando que produz outros canais além da TV Cultura, como a TV Rá-Tim-Bum e a Univesp TV —o número de funcionários é, ao todo, de 743 funcionários em regime CLT, além de contratados como pessoa jurídica por projeto.
Números à parte, Tarcísio deixou claro a aliados o que o havia irritado —o fato de a TV Cultura não ter mandado uma equipe do jornalismo para cobrir a sua presença em uma entrega de casas em São Sebastião, no litoral paulista, depois das enchentes do ano passado.
Em nota, a TV Cultura afirma que fez a cobertura de todas as entregas e de todos os eventos do governador na região, além de um total de 35 reportagens sobre a tragédia em São Sebastião, boletins e dois documentários.
Nos bastidores, auxiliares do governador passaram a defender que é preciso racionalizar os gastos e a gestão da TV Cultura, que, segundo eles, é "inchada e obsoleta". Argumentam que não se trata de uma medida específica voltada à fundação, mas de uma orientação geral para enxugar órgãos sustentados pelo estado.
Ainda de acordo com secretários, Tarcísio não definiu as mudanças que pretende implementar, mas estuda caminhos possíveis diante da autonomia da fundação. Alguns falam em rever os repasses de verba e até em um projeto de lei para alterar o tamanho e a composição do conselho da Fundação Padre Anchieta.
Em nota à reportagem, a Secretaria da Cultura afirmou que a TV Cultura "é uma emissora pública de sinal aberto que atua com total independência em relação à gestão estadual e responde diretamente à Fundação Padre Anchieta, entidade de direito privado sem fins lucrativos com autonomia jurídica, administrativa e financeira".
O conselho tem 47 membros, e apenas quatro deles são fiéis a Tarcísio. Um pouco de história e matemática ajudam a entender essa disputa de poder.
O decreto que criou a Fundação Padre Anchieta, em 1967, apesar de prever a sua autonomia, criava espaço para a ingerência do governo ao determinar que o diretor-presidente e o vice-diretor do conselho deveriam ser escolhidos pelo governador. Além disso, eram apenas 20 conselheiros e quase metade das vagas ficavam para membros do governo.
Com o fim da ditadura, o caminho se abriu para ampliar a autonomia. Em 1986, um novo decreto, assinado pelo governador Franco Montoro, ampliou o número de conselheiros para 45, reduzindo o percentual de membros do governo estadual.
Além disso, no novo estatuto, o governador não tinha mais o poder de eleger o presidente e o vice-presidente do conselho, o que passou a caber aos conselheiros.
Atualmente, após alterações estatutárias posteriores, o conselho tem 47 membros, sendo três vitalícios —da família que fez a doação inicial para a criação da Fundação Padre Anchieta—, 20 natos —ou seja, que ocupam cargos, como o secretário da Cultura ou o reitor da Universidade de São Paulo—; 23 eletivos —pessoas da sociedade civil indicadas e eleitas pelos conselheiros— e um representante dos funcionários da fundação.
É dentre os natos que o governo consegue ter representantes. Além do titular da secretaria da Cultura, fazem parte do conselho o secretário da Educação e o da Fazenda. Outras duas vagas de natos são da Alesp, o presidente da Comissão de Educação e Cultura e um deputado indicado pela comissão. Nessas vagas estão Bebel, do PT, de oposição a Tarcísio, e Tomé Abduch, do Republicanos, da base do governo.
Desde 2020, o governo tem repassado cerca de R$ 100 milhões por ano à fundação. Esse valor é aplicado quase na totalidade no pagamento de salários dos funcionários e, por isso, não poderia ser alvo de cortes, segundo técnicos da própria gestão Tarcísio.
O decreto da fundação põe, dentre os recursos, "as dotações, subvenções e contribuições que o Estado anualmente designar em seus orçamentos". Não há, contudo, uma determinação legal sobre o valor a ser repassado e, segundo a fundação, a participação do repasse do governo nos recursos vem diminuindo.
Há cinco anos, representava 70%, e atualmente, 40%. Os 60% restantes advêm de publicidade, doações, parcerias e prestação de serviço, como a produção da TV Câmara, paga pela Câmara Municipal de São Paulo, e a TV Educação de Santos, da prefeitura.
O fato de não haver uma previsão legal do montante do repasse amplia a tensão na TV Cultura. Ex-presidente do conselho curador da Fundação Padre Anchieta, especialista em direito público e membro da Comissão Internacional de Juristas, Belisário dos Santos Junior disse à reportagem que, uma vez que o estado ajudou a instituir a fundação e fez com que constasse do estatuto que ela receberia parte dos recursos do orçamento, "existe uma obrigação jurídica de manter a TV Cultura funcionando".
"Seria desarrazoado e passível de correção judicial o governo não repassar dinheiro suficiente para que a TV cumpra com seus objetivos", afirmou. "É uma TV premiada internacionalmente e reconhecida por ser uma emissora pública de confiança. É impossível o governo dizer que ela não cumpre o seu papel."
Na TV Cultura o clima é de muita apreensão. Os mais otimistas temem um processo de estrangulamento, com corte de repasses e pressões variadas —a exemplo do pedido de CPI. Para os mais pessimistas, o governo busca um caminho para a venda da emissora.
A tensão no conselho vem desde o ano passado. Em maio, a secretária de Cultura de Tarcísio, Marilia Marton, sugeriu a indicação do cineasta Josias Teófilo para o conselho. Teófilo é autor de um documentário sobre o escritor e guru do bolsonarismo Olavo de Carvalho.
A reação negativa foi forte por parte dos conselheiros, e Marton decidiu fazer a indicação de Aldo Valentim, ex-secretário nacional de Economia Criativa e Diversidade Cultural do governo Bolsonaro e atual secretário de Cultura de Osasco, na Grande São Paulo. Professor universitário e mestre em políticas públicas pela Fundação Getulio Vargas, em São Paulo, Valentim tem um perfil técnico e acabou sendo eleito.
Numa reunião do conselho em junho, o clima foi pesado, e a secretária de Cultura de Tarcísio se queixou do veto ao cineasta, o que considerou uma falta de abertura para a diversidade. Posteriormente, em setembro, em nova reunião, a secretária intimidou conselheiros, dizendo que iria descobrir quem havia vazado para a coluna Painel a informação sobre a indicação que ela havia feito de Teófilo.
Neste ano a temperatura subiu e terminou na Justiça. Em fevereiro, numa nova eleição, Fabio Magalhães, presidente do conselho, disse que havia feito uma consulta a conselheiros e que havia chegado a uma lista de sugestões. Os nomes apresentados, segundo ele, ajudariam a ampliar a diversidade de gênero, raça, perspectivas e interesses.
A colocação gerou incômodo no governo, que se sentiu preterido nas indicações. Marton disse a pessoas próximas que não foi consultada. Em março, os seis nomes mencionados por Magalhães foram eleitos —Lilia Moritz Schwarcz, Djamila Ribeiro, Renata de Almeida, Antonia Quintão, Cristine Takuá e Gabriel Jorge Ferreira.
O bolsonarista Caíque Mafra, que foi candidato a deputado estadual em 2022 pelo Republicanos, pediu uma liminar para que a votação não fosse realizada. A fundação disse que "jamais houve limitação de indicação de candidatos" e que o governo não propôs nomes. A Justiça indeferiu o pedido de liminar.
O conselheiro Aldo Valentim criticou o modelo de eleição. "Fiquei bastante incomodado com a condução do processo eleitoral, com o formato de indicação, sem ampla consulta junto aos representantes do governo, do deputado representante do Poder Legislativo [Abduch] no colegiado e com nomes fechados em uma única reunião", ele disse, em entrevista.
As últimas quatro reuniões do conselho, segundo a fundação, não contaram com a presença de nenhum dos três membros do governo. A ausência foi vista como ruptura.
E essa ruptura se evidenciou com o pedido de CPI, ainda que o governo, oficialmente, negue essa relação. Em nota, a Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Estado de São Paulo afirmou que "a instalação de qualquer CPI na Alesp é uma prerrogativa exclusiva da atuação parlamentar, sobre a qual o Palácio dos Bandeirantes não exerce nenhuma ingerência".
Entre as acusações que embasam o pedido de CPI está uma de nepotismo –Pedro Martins, enteado de José Roberto Maluf, presidente da fundação, é funcionário da TV, na área de mídias digitais, com salário de R$ 18,2 mil. A fundação afirmou que não cabe o conceito de nepotismo em entidades de direito privado –a fundação não tem funcionários públicos. "Além disso, não existe grau de parentesco com o presidente, bem como subordinação do colaborador com o mesmo."
Responsável pelo pedido de criação da CPI, Guto Zacarias afirmou que "quer que o dinheiro público seja bem investido, com o menor gasto e a maior audiência e qualidade".
Sobre isso, a fundação afirmou que a programação tem um reconhecimento internacional e que, de acordo com dados do Kantar Ibope, está em quarto lugar em audiência na TV aberta de segunda a sexta, em média durante 6 horas por dia, atrás de Globo, Record e SBT e à frente de Band, Rede TV! e Gazeta. Afirmou ainda ter mais audiência do que os canais fechados.
RODA VIVA
Independente, a TV Cultura irrita bolsonaristas. Em outubro de 2022, antes da eleição de Tarcísio, foram renovados os contratos de Vera Magalhães, apresentadora do Roda Viva, e Marcelo Tas, do Provoca, ambos críticos ao bolsonarismo. Os contratos dos dois venceriam em dezembro daquele ano e foram renovados até 2025.
Também em outubro, a uma semana do segundo turno das eleições, o diretor-presidente da fundação publicou um artigo neste jornal com o título "Autonomia é chave nas rádios e TV Cultura".
Em 23 de janeiro do ano passado, no calor da tentativa de golpe de 8 de janeiro, a Cultura exibiu o documentário "O Autoritarismo Está no Ar – 3 Anos Depois", sobre os riscos do avanço da extrema direita. O deputado federal Eduardo Bolsonaro postou "discurso ideológico e uso da máquina estatal em favor da política".
Em maio, o deputado estadual bolsonarista Gil Diniz, do PL, chamou a secretária Marilia Marton e o presidente da fundação para que dessem explicações na Alesp sobre a programação da TV Cultura, vista por ele como contrária à direita e a Bolsonaro.
Nesta semana, no entanto, foram militantes de esquerda que ficaram em polvorosa com o Roda Viva com Flávio Bolsonaro. O convite para o senador, segundo a reportagem apurou, foi feito no dia 30 de janeiro.
O programa quer manter a lista de convidados equilibrada em relação ao viés ideológico e avaliou que é preciso chamar mais personalidades da direita, embora já tenha tido entrevistados como os senadores Ciro Nogueira, Rogério Marinho e o deputado Marcos Pereira. Tarcísio, inclusive, vem sendo insistentemente convidado.
O convite a Flávio Bolsonaro, em meio à cruzada contra a fundação, foi visto pela emissora como um reforço na sua imagem de independência e pluralismo.
Colaborou Tulio Kruze
Nenhum comentário:
Postar um comentário