sexta-feira, 26 de abril de 2024

O dia e a noite de 31 de março de 1964 na Faculdade de Filosofia Por José de Souza Martins, Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 Passei a noite e a madrugada de 31 de março para 1º de abril de 1964 num quartinho em que morava como caseiro numa casa alugada pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras na Rua Piauí. Ali funcionava um centro de pesquisas anexo à Cadeira de Sociologia I, de que era catedrático o professor Florestan Fernandes. Fernando Henrique Cardoso, que era meu professor, me perguntara se queria morar ali e tomar conta do lugar. Assim, eu pouparia as quatro horas diárias da viagem de ida e volta entre São Caetano, onde morava, e a faculdade na Rua Maria Antônia. Poderia empregar esse tempo na biblioteca e aumentar minhas horas de leitura.

O comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, e o vigoroso discurso de Jango em favor das reformas de base, na noite de 13 de março, despertavam nos ingênuos como eu, que eram muitos, um certo otimismo quanto aos rumos políticos do País. Mas o rosto apreensivo da bela e jovem Maria Teresa Goulart, à meia-luz, no palanque, ao lado do marido, sugeria que o cenário não era o de uma vitória.

As tensões cresceram a partir do dia 19 de março. Naquele dia realizara-se a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Fomos em pequeno grupo de alunos para o centro da cidade presenciar e avaliar a marcha, na proximidade do Theatro Municipal e do Viaduto do Chá. À frente da multidão vinha Dona Leonor Mendes de Barros, mulher do governador Adhemar de Barros, conhecida por seu empenho em causas caritativas em favor dos tuberculosos de Campos do Jordão.

Voltei para meu quarto com muito medo, o meu primeiro medo político, que se estenderia pelos próximos anos. Já auxiliar de ensino, eu seria preso e fichado pelo Dops junto com Roberto Schwartz em 1966, na porta do Teatro de Arena.

Na tarde do próprio dia 31 de março de 1964 tinha havido uma reunião de alguns professores para avaliar o andamento da situação. Foi na sala 3, que ficava à direita de quem entrava no saguão. O tom dominante era de que quem estava planejando o golpe era João Goulart. O golpe não era contra ele, mas dele. Imitava Getúlio.

Alguém trouxe a notícia de que tropas do Exército, comandadas pelo general Olímpio Mourão, antigo integralista, se deslocavam de Minas em direção ao Rio de Janeiro. Fora ele autor de um falso plano comunista para tomada do poder, que justificaria o golpe de 1937 e a implantação do Estado Novo e da ditadura de Vargas.

Fiquei no meu cubículo ouvindo o rádio, à noite. A partir de certo momento, começou uma transmissão diretamente do Palácio dos Campos Elísios. O golpe progredia. Os presentes davam entrevistas ao locutor empolgado. Em certo momento, chegou o professor Luís Antonio da Gama e Silva, reitor da USP. Não se sabia ainda, mas ele fora o organizador do CCC, o Comando de Caça aos Comunistas, cujos membros circulavam pelo Dops e vários se tornariam torturadores. Aquele gesto de bajulação aos militares lhe daria o Ministério da Justiça da ditadura, no governo Costa e Silva. Ele prepararia o texto do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, e assinaria os atos de cassação de professores da USP, numerosos deles da Faculdade de Filosofia, no início de 1969.

Desde o ataque de mackenzistas, policiais do Dops e militares do Exército ao prédio da Maria Antônia, em 1968, supostamente contra os estudantes, na verdade contra a Faculdade de Filosofia, ficava claro que o objetivo era destruir a escola e remover-lhe os restos para a Cidade Universitária, para afastá-la do centro da cidade.

Maria Isaura Pereira de Queiroz percebeu que se tratava de nossa deportação e exílio, quando disse com fina ironia: “Não sei se vou me acostumar lá. Minha família é tão urbana!”.

Continuei a ouvir o rádio ao longo da noite. Pouco depois o locutor anunciava a chegada do general Amauri Kruel, comandante do 2º Exército, de São Paulo. Sua traição a Jango e ao País selava o destino do Brasil.

Entre os quatro generais que se recusaram a aderir ao golpe, estava o general Euryale de Jesus Zerbini. Foi preso e cassado. Sua esposa, Terezinha Zerbini, que lideraria a campanha pela anistia, foi presa.

Lembro do general Zerbini, velhinho, de cabelos brancos, no prédio atual de Ciências Sociais e Filosofia, na Cidade Universitária, com cadernos e livros nas mãos, à espera do início das aulas da tarde, de Filosofia, de cujo curso se tornara aluno. Sentava-se numa das carteiras originárias do prédio da Maria Antônia e da fundação da USP. Estão hoje no segundo pavimento do Prédio de Filosofia e Ciências Sociais.

Numa delas, vi pela última vez, em 1964, e com ela conversei, Eleni Guariba, aluna de Filosofia e animadora do Teatro Operário na região do ABC. Foi presa, torturada e assassinada na “casa de morte”, em Petrópolis, segundo a única presa que de lá escapou com vida, Inês Etienne, em depoimento à Comissão da Verdade.

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