segunda-feira, 15 de abril de 2024

, HEY, PAIS, DEIXEM AS CRIANÇAS EM PAZ Por Andrea Freitas, MEIO


Há cerca de 30 ou 35 anos, quando o celular ainda era coisa rara, a regra na maioria das famílias era que os filhos só ligassem para o trabalho dos pais em situações de vida ou morte. O custo da ligação era alto e, em tempos de telefone fixo, criança ou adolescente incomodando no escritório não era bem visto. Muitos daqueles menores agora são pais. E, em um mundo altamente conectado e em que cada um tem seu próprio smartphone sempre à mão, respeitar limites, como o horário escolar, tem sido tarefa difícil não só para os alunos, mas também para alguns responsáveis.

Há quem não hesite em trocar mensagens com os filhos durante as mais diferentes atividades dos jovens. Pode ser um lembrete bobo ou um aviso importante, na hora do recreio ou do almoço, ou até mesmo uma longa conversa. Outro dia, em uma classe de Ensino Médio de uma escola carioca, por volta das 11h, uma mãe relatava no grupo de responsáveis observações feitas pouco antes pelo filho durante uma aula, com queixas de um professor. O menino iniciou a conversa e ela manteve o diálogo. Dias depois, quando o calor no Rio gerou uma sensação térmica de mais de 50 graus Celsius, mesmo quadro: às 8h20, um aluno puxou conversa com a mãe por WhastApp sobre o ar-condicionado da sala que não funcionava. E ela seguiu com o papo.

Uma enquete com 50 responsáveis de diferentes escolas do Rio revela que a maioria (30) afirma não enviar mensagens para os filhos durante o horário escolar ou alguma atividade. Dez, no entanto, admitiram que se comunicam com os filhos nesses momentos. Outros dez não responderam. Entre os que disseram que não enviam mensagens, quatro abriram um parêntese para explicar que conversam com os filhos na hora do recreio ou do almoço na escola. Esses intervalos, no entanto, também fazem parte da rotina escolar.

Faz tempo que o uso excessivo de celular na escola é um problema. Segundo o Pisa 2022, principal avaliação mundial da educação, 80% dos alunos brasileiros de 15 anos disseram que se distraem com o uso de celular nas aulas de matemática. Argentina, Canadá, Chile, Finlândia, Nova Zelândia e Uruguai registraram o mesmo indicador, enquanto no Japão a taxa é de apenas 18%. A restrição de uso desses aparelhos nas escolas vem crescendo. Em fevereiro, o Rio de Janeiro proibiu a utilização de celulares inclusive no recreio, mas só na rede municipal.

Quando a contribuição para essa distração vem dos pais, o cenário fica mais desafiador. Pais excessivamente envolvidos e ligados tecnologicamente a seus filhos acabam impedindo o potencial educacional deles e não conseguindo criar adultos independentes, alerta a jornalista Jill Filipovic, autora do livro OK Boomer, Let’s Talk: How My Generation Got Left Behind. Deixar os filhos em paz é uma mensagem cada vez mais difundida entre educadores, terapeutas, especialistas em desenvolvimento infantil e até professores universitários. Não concorda com a fala do professor? Pergunte, converse. O ar-condicionado não funciona? Sugira uma alternativa, como uma aula do lado de fora.

“Nas escolas, as crianças ficam presas aos telefones em detrimento de sua atenção e educação. Mas alguns alunos e seus pais argumentam que precisam estar constantemente disponíveis para contato. Os professores relatam que os pais discutem com os filhos sobre notas, ligam durante as aulas, esperam atualizações constantes por mensagens de texto e até monitoram as telas ou ouvem as aulas”, relata Jill.

A psicóloga Marly Tostes, que atende crianças e adolescentes, diz que a ansiedade ajuda a explicar esse comportamento dos adultos. Ela aponta também a falta de maturidade e responsabilidade em algumas famílias. O que parece melhor para acalmar suas próprias ansiedades imediatas não é necessariamente o melhor para o desenvolvimento e o bem-estar de uma criança ou adolescente.

“É preciso estar atento o tempo todo, sim. Mas é preciso dar limites. Não posso conversar com o aluno durante a aula, a terapia, o estudo. Esse pai ou essa mãe não está atento a isso. Falta bom senso. O exemplo é essencial. Não existe fórmula, mas a verdade é que nunca foi tão difícil como hoje”, diz a psicóloga, pontuando que em seu consultório há pais que entram em contato com os filhos durante as sessões. “O combinado nesse ambiente é deixar o celular de lado. Não podem responder.”

No best-seller The Anxious Generation: How the Great Rewiring of Childhood Is Causing an Epidemic of Mental Illness, o psicólogo social Jonathan Haidt argumenta que dispositivos inteligentes e pais superprotetores “deformaram” os processos de desenvolvimento da infância. Ele defende a proibição de smartphones para crianças menores de 14 anos e redes sociais só depois dos 16. Seguindo essa linha, no fim de março, o governador da Flórida, Ron DeSantis, sancionou uma lei para restringir o uso de redes sociais até 16 anos — proibição total, com exclusão de contas, até os 13 e, aos 14 e 15, só com autorização dos pais. A decisão se baseia em evidências de melhora no comportamento nas escolas após uma proibição total de smartphones imposta em 2023 no condado de Orange. Oficialmente, as plataformas só autorizam a criação de contas a partir dos 13 anos. Opositores a medidas como essa, no entanto, argumentam que proibições são inconstitucionais e interferem no direito dos pais de decidir o que é melhor para os filhos.

“O celular tomou conta da vida dos pais e está tomando conta da vida dos filhos. O adulto é exemplo, precisa ter essa consciência e estar atento a esse lugar. Sim, hoje há uma demanda de tomar conta o tempo inteiro. Mas o horário da escola, do estudo, de uma atividade precisa ser respeitado sempre”, afirma Marly. “Vejo muitos adolescentes que já não acreditam em tudo o que os pais dizem. Sabem que eles falam, mas não fazem. Isso é identificado pelos filhos, que não dão crédito a esses pais, perdem a confiança.”

Essa ansiedade e necessidade de controle em tempo integral sobre os filhos não termina com o fim da adolescência. No ensino superior, muitos pais seguem ansiosos e necessitando de respostas constantes sobre seus rebentos. “Os pais estão permitindo que a ansiedade assuma o controle, e isso não está ajudando ninguém, muito menos os filhos. Se uma criança liga muito para casa, deve haver uma crise! E se uma criança liga muito pouco, deve haver uma crise!”, escreveu Mathilde Ross, psiquiatra da Universidade de Boston, em um artigo no New York Times. “Os pais de hoje sofrem de ansiedade em relação à ansiedade, que na verdade é muito mais séria do que a ansiedade.”

Com quase 20 anos de experiência em educação, a professora Raphaela Bomtempo enfrenta em sala de aula o desafio de conquistar a atenção de alunos que têm contato excessivo com as telas desde muito cedo. O tempo de concentração fica reduzido desde a primeira infância. “A tela é um grande aliado das babás, das famílias, deixando as crianças hipnotizadas durante o almoço. Com isso, há uma redução de limite, de estímulo, de vínculo. Não tem conversa à mesa. Dentro da escola fica claro que esse é um desafio geracional e tanto”, explica.

Se um pai ou uma mãe envia uma mensagem bem quando esse precioso tempo de concentração está sendo usado pelo aluno em sala de aula, recuperar esse foco é complicado. Quão difícil é para qualquer um receber uma mensagem e não responder quase imediatamente? A mensagem, a notificação e o alerta que chegam quebram a atenção e geram ansiedade para se descobrir do que se trata, quem falou e o quê. Para uma criança ou adolescente, o desafio de se controlar e esperar o momento certo para verificar é ainda maior.

“Estou à frente de um projeto com adolescentes na escola onde trabalho. Às vezes, eles me fazem perguntas no horário letivo, quando também estou em sala de aula, dando aula para outro grupo. Não respondo ou aviso que só vou responder depois. O horário da aula não é para isso, eles têm de estar atentos ao professor. E a gente precisa ensinar”, afirma Raphaela.

Como mãe, o desafio de Raphaela é o mesmo: dar limites e estabelecer quando o uso do celular é bem-vindo. Trocar mensagem com a filha adolescente só depois que a aula termina. “Minha filha, de 13 anos, ganhou um celular aos 12 por uma questão prática e de logística, para ter mais autonomia, já que começou a usar o metrô sozinha. O aparelho também facilitou nossa comunicação quando está na casa do pai. Mas não envio mensagem no momento da aula porque não é o horário. Só mando a partir das 12h45”, diz.

Esse letramento sobre o bom uso do celular é um trabalho a ser feito em parceria: escola e família. E o exemplo é fundamental. “As escolas precisam tomar medidas que tenham efeito, como impedir o uso durante a aula, deixando os aparelhos em armários, por exemplo. Mas as famílias também precisam se envolver com essas regras. Se os pais não cumprem, a criança ou o adolescente não vai cumprir. Fica difícil de entender. O que vale é o exemplo”, reforça Raphaela.

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