Em maio de 1982, preocupado com o futuro do cinema, então ameaçado pela televisão, pelo videocassete e por novas tecnologias que estavam a caminho, Wim Wenders instalou uma câmera no quarto 666 do Hotel Martinez, em Cannes, e convidou 15 cineastas a darem depoimentos sobre como enxergavam a situação naquele momento.
A pergunta que move "Quarto 666", um documentário de 45 minutos, é: "Será que o cinema é uma linguagem prestes a se perder, uma arte prestes a morrer?". O filme começa com uma longa digressão de Godard e conta, entre outros, com os palpites de Fassbinder, Antonioni, Spielberg e Werner Herzog. O resultado é uma polifonia interessante e muito divertida.
Em seu depoimento, Antonioni previu que o cinema saberia se adaptar às muitas novidades tecnológicas que surgiriam nas décadas seguintes. Acertou. É possível dizer hoje, 42 anos depois, que a revolução digital e a televisão até que tentaram, mas não conseguiram matar o cinema.
Com som e imagem devidamente digitalizados e restaurados, "Quarto 666" reapareceu semana passada no Mubi, uma plataforma de streaming especializada em filmes de autor. Não deixa de ser irônico que esse lançamento ocorra justamente num momento em que a indústria do audiovisual americana, dominante no mundo, enfrenta uma grande crise e que alguns de seus maiores cineastas estejam com dificuldades de emplacar projetos.
Se fizesse um novo "Quarto 666", Wenders poderia perguntar a seus colegas se o cinema, a televisão e os streamings vão sobreviver aos interesses econômicos que hoje rebaixam a qualidade da maioria das produções e asfixiam o trabalho de roteiristas e diretores.
Num mercado cada vez mais concentrado, as maiores produtoras do setor são controladas, ao menos em parte, por grandes empresas de private equity. São fundos que financiam investimentos em troca de participação nos negócios e apostam em redução de custos, acima de tudo, para tornar as empresas lucrativas.
A greve dos roteiristas em 2023 afetou, bastante, o volume de produção de novas séries e filmes, mas não explica a baixa qualidade da maior parte do que está chegando aos espectadores.
A Netflix, com exceção talvez de "Ripley", ainda não surpreendeu ninguém neste ano. A HBO, quase escondida dentro do Max, parece ainda de ressaca. A sua principal produção até agora, "Regime", com Kate Winslet, deixa a desejar. A boa "The New Look", da Apple, poderia ter metade do tamanho. O Globoplay, em meio ao incessante relançamento de novelas antigas, lançou "Justiça 2". O que mais?
Num texto intitulado "A vida e a morte de Holywood", publicado neste mês na Harper's Magazine, Daniel Bessner pinta um quadro sombrio. Todas as grandes produtoras e plataformas anunciaram recentemente demissões, corte de custos e redução de investimentos.
Bessner observa que, no esforço de enxugamento de despesas, as empresas estão minando uma das forças motrizes da indústria: os roteiristas. As salas de roteiros contratam cada vez menos autores, por menos tempo e pagando menos. Com base em dezenas de entrevistas, o autor registra como a profissão se tornou instável e pouco convidativa para profissionais em início de carreira.
O anúncio da Netflix de que, a partir do ano que vem, não vai mais informar o seu número de assinantes ajuda a entender o novo quadro. Se na década de 2010 o mais importante era atrair novos assinantes com séries de impacto e mostrar aos investidores o potencial do negócio, hoje o foco é valorizar as horas de audiência e os resultados financeiros.
Spielberg, que lançaria "ET" em Cannes naquele maio de 1982, já alertava em "Quarto 666" que produtores, diretores e roteiristas não tinham grande poder: "O perigo é quem controla o dinheiro e que um dia pode dizer: quero meu dinheiro de volta multiplicado por dez".
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