quarta-feira, 10 de abril de 2024

O digital mudou inteiramente a comunicação, só o governo não vê, Wilson Gomes, FSP

 Na última visita que fiz a Portugal, ao ouvir a minha declaração de que estava chegando a convite da Universidade da Beira Interior para fazer umas palestras sobre comunicação e política, o funcionário do serviço de imigração do aeroporto de Lisboa brincou: "Ah, professor, bem que o senhor poderia me ajudar aqui. Tenho tantos problemas de comunicação neste posto! E política, então, nem se fala". Quem não os tem?

A crer-se no que vem sendo noticiado nas últimas semanas, o governo Lula também reconheceu que tem problemas nessa área. A convocação de Sidônio Palmeira, o coordenador de comunicação da campanha eleitoral de Lula, para discutir as estratégias da Secom e do Ministério da Saúde é só o ato mais recente do diagnóstico de falha na comunicação governamental.

A questão, no entanto, não é apenas ter problemas de comunicação, mas sim o entendimento do que isso significa. É bastante sintomático que, ao pensar em comunicação governamental, a primeira ideia que vem à mente de Lula seja "chamar o marqueteiro". O diagnóstico de Lula, Rui Costa e vários outros petistas é que o governo está se saindo bem e a situação do país melhorou, mas, como o apoio a Lula e a aprovação ao governo diminuíram, eles presumem que isso se deve à dificuldade em comunicar o que está sendo feito. Portanto, profissionais de marketing, publicidade ou assessores de imprensa são a primeira solução que vem à mente quando se trata de "mostrar ao público" o que o governo anda fazendo de bom.

Se esse modelo já fazia água na era da televisão, em plena era digital é que não faz sentido mesmo. O cidadão médio não está mais sentado no sofá da sala, onde mensagens publicitárias transmitidas nos intervalos comerciais da programação de TV eram absorvidas inadvertidamente. Vinte e cinco anos de intensa transformação digital na forma como consumimos informação e interagimos socialmente em ambientes digitais mudaram quase tudo.

Na ilustração em bico de pena, da tela de um celular, surgem duas povoadas sobrancelhas, uma longa e fina nariz e uma boca aberta que projeta uma grossa língua com a ponta enrolada por uma chave de abrir latas de sardinhas. A ponta da longa nariz, de cor roxo intenso, termina na falange do dedo indicativo. Sobre a unha sem cor, um diminuto sujeito de terno manipula duas cordas, que após passar por dois engrenagens, estão amarradas nos lados da chave, mostrando que se pode controlar o movimento da língua quando puxa uma o outra corda. Para ressaltar a ilustração, como fundo, uma faixa na altura da boca aberta, em tons degradê do roxo ao azul claro.
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes de 9 de abril de 2024 - Ariel Severino/Folhapress

Quando a propaganda governamental chega ao cidadão, se é que chega, ele já leu, ouviu ou viu centenas de outras mensagens políticas que usará como filtro, inclusive para ignorar o que o governo, sobre o qual já tem uma opinião formada, quer lhe dizer. A ideia de "mostrar ao público" o que governo fez por meio de vídeos de propaganda é tão antiquada quanto ingênua. Especialmente em meio à polarização infernal em que nos encontramos, em que todo mundo já tomou posição e não parece disposto a sair dela.

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Especialistas tendem a ter uma ideia de comunicação governamental bem diferente dessa. Trata-se de uma atividade estratégica que produz e entrega mensagens consistentes, sim, mas conforme metas bem planejadas, para públicos bem caracterizados, supondo um ambiente politicamente competitivo, plural e hostil.

Uma análise de públicos precede tudo. Fazer um vídeo com a mesma mensagem para todos os públicos e achar que a coisa está resolvida é tão tolo quanto imaginar que lulistas, evangélicos conservadores, o agro, antipetistas, pessoas que taparam o nariz, mas votaram em Lula, moradores de territórios dominados por milícias e habitantes do interior de Santa Catarina podem ser convencidos pelos mesmos argumentos. É preciso dizer coisas distintas para públicos diferentes, mas naturalmente depois de entender o que eles são, a que mensagens seriam sensíveis e por quais meios poderiam ser alcançados.

Além disso, a comunicação governamental é parte da comunicação política horizontal que se espalha em ambientes sociais baseados em plataformas e aplicativos. Precisa ser, portanto, também uma ação estratégica articulada e consistente para disputar na esfera pública a interpretação dos fatos do dia, a agenda pública, a imagem do governo, as narrativas predominantes.

Mas isso supõe uma infraestrutura de redes de comunicação interpessoal em mídias digitais que leva tempo para ser construída. Assim como supõe permanente análise de redes e análise de sentimentos para identificar os temas da conversa pública, os detratores e apoiadores, as controvérsias principais, as inquietações de cada público.

A comunicação governamental hoje supostamente deveria ser baseada em dados (big data) e evidências, ágil para identificar os movimentos da opinião pública e reagir a eles, com um planejamento coerente, entrega segmentada e foco preciso. Mas isso realmente está no radar da comunicação governamental? Duvido muito.

Na mente do governo, a Secom deveria ser essencialmente uma assessoria de imprensa combinada com um setor de marketing e propaganda. Como nos bons tempos dos faraós.

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