Numa área do norte de Paris conhecida no passado por terminais ferroviários, viciados em drogas e campos de refugiados, Anne Hidalgo contempla uma série de obras de construção enormes. Diante dela está uma avenida de quatro pistas, todas engarrafadas.
"Tudo isto daqui era o caos", diz a prefeita. Era? "OK, é!" Hidalgo descreve a avenida congestionada como "horrorosa." Mas ela tem um plano radical para este local, a Porte de la Chapelle, assim como para outras áreas de Paris. Ela quer menos carros, calçadas mais largas e mais árvores. "E bicicletas, é claro, porque sem bicicletas não seria meu plano!"
A prefeita de Paris lidera um dos esforços mais ambiciosos do mundo para acabar com a dependência das pessoas de seus carros. Ela abraçou o conceito da "cidade de 15 minutos", redesenhando os transportes públicos, a moradia, os empregos e os espaços públicos para que os parisienses possam viver sem passar longas horas diárias indo e vindo do trabalho (e gerando poluição com isso).
De acordo com a empresa de análise Inriz, Paris é a segunda cidade mais congestionada da Europa, atrás apenas de Londres. Mas hoje vê-se um fluxo constante de ciclistas em muitos de seus bulevares.
Os parisienses que gostavam de percorrer a cidade de carro estão indignados. Acusam Hidalgo de tornar a capital um lugar menos fácil e agradável de se viver. Nas redes sociais, algumas pessoas estão usando a hashtag #SaccageParis ("Paris depredada") ao compartilhar fotos de ciclovias e plantio de árvores que não deram certo, assim como quando veem uma quantidade maior de lixo nas ruas.
Para agravar a situação, desde a pandemia de Covid, a rede de ônibus parisiense sofre os efeitos da falta de motoristas —ainda que isso não seja da alçada da prefeita.
Carlos Moreno, acadêmico responsável pelo conceito da cidade de 15 minutos, atribui a oposição a pessoas de alto poder aquisitivo que não querem ver pobres ocupando o espaço público. "Há um pouco disso, sim", diz Hidalgo. "Há pessoas conservadoras que não se interessam em ver transformações, porque elas vivem bem, têm apartamentos amplos e casas de campo. Elas não compartilham a vida da classe média parisiense."
Hidalgo vem tendo dificuldade em levar sua mensagem a um público mais amplo. No ano passado, sua campanha presidencial recebeu apenas 1,75% dos votos, o pior resultado já obtido por um candidato do Partido Socialista.
Mas em breve o mundo terá a oportunidade de avaliar as mudanças que ela está promovendo. Paris será a sede das Olimpíadas de 2024. Onde hoje há vias públicas em obras, haverá 60 quilômetros de ciclovias, de modo que os turistas poderão ir de bicicleta a todos os locais dos eventos.
A Porte de la Chapelle terá um novo ginásio de esportes com telhado ajardinado. Hidalgo quer que a área fique "tão bela quanto Les Invalides", o monumento erguido pelo rei Luís 14. "A população local merece a beleza. Sempre há quem diga ‘sim, mas não agora’. E eu digo: ‘Não! A população daqui tem pressa.’"
Muitos políticos falam sobre mudança climática. Mas Hidalgo é uma das poucas a pedir que os cidadãos aceitem os inconvenientes. Menos carros em circulação figuram como um exemplo disso. Outro é o ar-condicionado. Cada vez mais, a temperatura no verão parisiense anda passando dos 40 graus. Contudo, para poupar energia, a Vila Olímpica, local onde os atletas vão se hospedar, não terá os aparelhos.
"Por que pensamos que precisamos de ar-condicionado?" A ideia é que o design dos prédios garanta que, mesmo no clima de 2050, a temperatura em seu interior não passe de 28°C por mais de 160 horas por ano. "Não posso pensar apenas no impacto sobre os atletas por 15 dias", explica a prefeita. "Não dá para responder à mudança climática sem levá-la em conta sempre."
Hidalgo quer que atletas russos e belarussos sejam banidos das Olimpíadas. Posição que a coloca em rota de colisão com o Comitê Olímpico Internacional. "Há pressão", diz, sorrindo. "Mas eles me conhecem."
Conspiracionistas de extrema direita criticam o conceito da cidade de 15 minutos, dizendo que faz parte de um complô socialista para controlar o mundo. Essa visão não se sustenta após um contato com Hidalgo: ela pode ser social-democrata, mas não é nenhuma vilã de filme de James Bond. É uma figura delgada e sorridente que às vezes parece sonhadora.
"Eu tenho um sonho, porque nasci na Andaluzia [no sul da Espanha], onde o modo de vida das pessoas é muito diferente do daqui. Quando eu era pequena, nós –as crianças, os avós, todo mundo— descíamos para a rua levando nossas cadeiras e brincávamos ali. Para mim, isso é como um ideal."
Hidalgo se mudou da Espanha para a França quando era criança. Antes de ser eleita prefeita de Paris, em 2014, foi inspetora de trabalho e vice-prefeita da cidade. No ano seguinte, terroristas mataram mais de 130 pessoas em Paris em ataques coordenados. Uma onda de refugiados chegou da Síria. Em 2016, chuvas fortes fizeram o rio Sena transbordar. "Passei seis anos administrando crises", diz Hidalgo.
Uma de suas ações mais ousadas foi em 2020, quando ela decidiu fechar para o tráfego de carros na Rue de Rivoli, uma via importante no centro de Paris, cheia de butiques de alta-costura, hotéis de luxo e museus. "Minha equipe inteira me olhou como se perguntasse: ‘Você enlouqueceu? Tem uma eleição chegando'." Os críticos dizem que a mudança afetou as empresas. "Mas é mentira", diz a prefeita.
A população de Paris diminuiu em cerca de 75 mil pessoas entre 2014 e 2020. O êxodo, que provavelmente aumentou durante a pandemia, não parece sinal de uma cidade que esteja prosperando. Mas Hidalgo insiste: "Paris não está se esvaziando. Paris era muito densa. Estamos ‘desadensando’ a cidade."
Ela atribuiu a queda na população aos preços dos imóveis e aos índices de divórcio. Hidalgo pede que as pessoas pensem não apenas na cidade de Paris, com 2 milhões de habitantes, que ela administra, mas também na Grande Paris, a região maior, com 7 milhões de habitantes, que será interligada por uma rede de metrô (cuja construção está atrasada).
"A oposição diz que as pessoas estão indo embora porque não conseguem atravessar o centro da cidade de carro. Isso é estupidez. O que as pessoas dizem é que precisam de habitação de preço mais acessível para poderem permanecer em Paris. A criatividade da cidade não depende dos carros. Isso é coisa do século 20. Estamos no século 21."
Sua meta é elevar a proporção de habitação social de cerca de 25% para 40% até 2026. Isso custará € 200 milhões apenas neste ano, valor que inclui a aquisição de antigos edifícios comerciais para convertê-los em conjuntos habitacionais.
Hidalgo critica a plataforma de aluguel de imóveis Airbnb, "que nos fez perder muitas unidades habitacionais". Pergunto se ela vai levar adiante um referendo prometido sobre o aplicativo. "Por enquanto não, também porque as Olimpíadas estão chegando." Mas disse que a presença do Airbnb em Paris ainda não é uma questão resolvida.
A prefeita também lidera uma campanha de limpeza do rio Sena, mas atrasos no cronograma previsto significam que ele só será aberto para a natação em 2025. Como parte da operação, 35 mil residências na Grande Paris que antes jogavam seus resíduos diretamente no rio terão conexão com a rede de esgotos. E será construída nova infraestrutura para que os esgotos principais da cidade não sejam esvaziados no Sena quando ocorrem enchentes. Hidalgo quer conferir status de pessoa jurídica ao rio, para que seja possível mover ações na Justiça contra aqueles que o poluem.
Ela não sabe dizer quando as ruas de Paris deixarão de estar cheias de obras, mas afirma que a realização das Olimpíadas na cidade acelerou as melhorias. "Entre hoje e 2025-26 haverá transformações radicais no modo como as pessoas se locomovem na cidade e na habitação. Haverá um ‘antes’ e um ‘depois’ visíveis."
Mas os críticos da prefeita dizem que as ruas de Paris estão ficando mais sujas. "Sempre há um problema de limpeza na França. O comportamento das pessoas em Paris ainda precisa melhorar. Ainda há quem diga aos garis e lixeiros: ‘Eu pago meus
Outro problema são os patinetes elétricos. Três pessoas morreram no ano passado em acidentes envolvendo patinetes e semelhantes. No dia 2 de abril, Hidalgo vai promover um referendo para decidir se as empresas de aluguel de patinetes, como a Lime, devem ser proibidas. "Já chega! Já falamos muito com as operadoras. Impusemos restrições. Mas chegamos a um ponto em que não é mais possível."
Um referendo contraria as palavras dos críticos para os quais as transformações adotadas por Hidalgo têm sido muito de cima para baixo. "Acho que a população vai votar para proibir os patinetes, mas posso estar enganada. O 2 de abril será um exercício democrático que nunca antes fizemos. Será o primeiro, mas não o último. Todo ano poderemos votar sobre alguma coisa."
Menciono a experiência do Reino Unido com referendos, algo que deve inspirar cautela. Pergunto se Paris se beneficiou do brexit. "Um pouco. Sempre éramos comparados com Londres, não muito favoravelmente. Quando [a editora chefe da revista Vogue] Anna Wintour vem me ver e diz ‘é aqui que a energia está hoje’, me sinto como [a personagem fictícia da Netflix] Emily em Paris!"
Como Hidalgo explica o fracasso de sua campanha presidencial? Ela não põe a culpa em sua mensagem, nem acha que tentou dar um passo maior que as pernas. Critica o presidente Emmanuel Macron por reformular a política francesa, de modo que hoje não existe mais "uma direita razoável e uma esquerda razoável", mas um centro ao qual se opõem populistas de esquerda e de direita. "Eu sabia que teria poucas chances de ganhar."
Hidalgo é totalmente contra a reforma das aposentadorias promovida por Macron. "Em sua campanha de reeleição, Macron repisou muito a ideia de ‘ou eu ou o caos’. Mas teremos ele e o caos."
Os aliados do presidente acusam Hidalgo de má gestão financeira. "Tentaram nos estrangular e não conseguiram." Sem poder arrancar mais dinheiro do governo central, ela elevou o imposto predial.
As mudanças adotadas por Hidalgo criaram tanta polêmica que mesmo seus aliados questionam suas chances de se reeleger em 2026. Ela própria diz que ainda não decidiu se será candidata novamente.
Apesar de todas suas ambições, é quase certo que até 2026 Paris ainda não terá se equiparado a Amsterdã em matéria de ciclovias, nem a Viena no quesito da habitação pública, assim como não terá desfrutado o boom pós-olímpico de Barcelona. As chances de a capital francesa algum dia se converter em uma cidade de 15 minutos provavelmente dependerão tanto do próximo prefeito quanto de Hidalgo.
Tradução de Clara Allain
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