Por Luciana Lima O PT estava reunido a portas fechadas. Do lado de fora, o sol do início de dezembro castigava jornalistas que cobriam a transição de governo e acampavam na portaria do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em Brasília, à espera do primeiro que saísse. Do lado de dentro, petistas se apinhavam para o primeiro encontro oficial do partido com seu líder máximo e então presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva. A dúvida era qual seria o quinhão do PT no novo governo. Quem seriam os escolhidos para a “cozinha” do Planalto? Quem cuidaria do Bolsa Família? Da economia? Diante de olhos curiosos, Lula lançou mão do tom paternal de criador da legenda. Como quem ao mesmo tempo dá uma bênção e uma incumbência, Lula pousou a mão sobre a cabeça da presidente do partido e avisou: “Gleisi não será ministra. Eu penso que ela tem que ficar na presidência do PT”. O comunicado frustrou boa parte dos presentes. Se tinha alguém em que se apostava como titular de uma pasta importante na Esplanada de Lula, essa pessoa era Gleisi Hoffmann, a advogada curitibana que já foi senadora e ministra da Casa Civil de Dilma Rousseff, de 2011 a 2014. Tanto que já se ensaiava, entre as várias correntes políticas petistas, uma disputa pela vaga de presidente do partido. José Guimarães (PT-CE) e Rui Falcão (PT-SP), entre outros, se mexiam discretamente. Gleisi havia cumprido com louvor todas as missões assumidas até ali — a maior parte bem árdua. Primeiro, na condução da escolha do candidato para 2018, quando Lula se encontrava preso. Depois, na campanha para a libertação de Lula. Em seguida, na construção da federação de partidos e da política de alianças que levaram Lula ao palanque em 2022. Todas as tarefas, note-se, redundam nele. Foi notável a lealdade de Glesi nos anos mais difíceis do PT, quando o partido foi apeado da Presidência da República. Mas, com a mão de Lula sobre sua cabeça, ela era convocada, mais uma vez, a botar sua resiliência à prova. E assim o fez: com a decisão do PT de prorrogar seu mandato, Gleisi será a presidente do partido até 2025. Após o recado direto do presidente, os dois deixaram o prédio juntos. Lula acompanhado da mulher, Rosângela da Silva, a Janja; e Gleisi, do namorado, o deputado Lindbergh Faria (PT-RJ). Ao responder perguntas da imprensa, Gleisi não falou sobre o assunto. Disse apenas que a reunião “foi boa” e emendou com os planos de, dali para frente, preparar a lista de cargos de que o partido não abriria mão. No dia seguinte, Lula confirmava a decisão em uma fala recheada de justificativas. “É um reconhecimento da grandeza dela e não uma diminuição do seu papel”, explicou o presidente. “Gleisi tem um papel muito importante, de manter o PT se organizando, se fortalecendo.” Nesta semana, em conversa com o Meio, Gleisi falou sobre sua pronta aceitação de permanecer na condução do PT. Disse, com firmeza, que não se sentiu preterida ou magoada. “Foi tranquilo, fiquei numa boa. A política, para mim, tem causa. Não é só uma questão de posição. Qual é a nossa causa? Por que a gente vive?”, respondeu sem qualquer sinal de hesitação. “Entendo que a política é um instrumento que faz com que a gente possa mudar as coisas. E o PT é um instrumento principal desse processo. É o maior partido político do Brasil. O PT tem vida, é um partido que discute, que tem participação e base social e atua em várias áreas. Então, é um instrumento muito importante.” Se em dezembro Gleisi foi monossilábica na saída da reunião com Lula, hoje ela protagoniza uma sequência de posicionamentos que beira a verborragia. Foi assim com as críticas ao presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, corroborando a tese de Lula. Foi assim com a reoneração dos combustíveis, contrariando o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT-SP). “A nova missão de Gleisi é essa”, dizem alguns petistas que dividem com ela a comissão executiva do PT. “Não se trata de uma posição só dela. Gleisi vocaliza a posição do partido, que é o maior da aliança. A diferença desse governo para os anteriores é que o PT vai continuar existindo, agora cada vez mais forte. O partido vai emitir opinião e, às vezes, ela vai ser diferente da do governo. O PT vai sustentar o governo, mas vai defender suas ideias. Não vai só seguir o que o governo diz”, disse a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), secretária nacional de Formação da legenda. No discurso que fez na festa de 43 anos do PT, ao lado de Lula, da ex-presidente Dilma e de muitos dos atuais ministros do PT, ela já havia indicado que seguiria falando, entregando seus posicionamentos ao mercado, ao governo, ao Congresso, à frente ampla que está no poder, sem se importar com quem possa se doer. Ali, ela demarcava muito claramente qual seria a arena de suas contendas: a economia. “É, sim, papel irrecusável do PT tanto a solidariedade e o apoio quanto o debate crítico e leal das políticas do novo governo, em todas as áreas, inclusive no terreno econômico. Debate que setores atrasados e poderosos pretendem interditar, como se fossem senhores absolutos da razão e da técnica”, discursou Gleisi. “Não há técnica nem razão inquestionável nas decisões econômicas se elas não estiverem consoantes com as grandes decisões políticas, aquelas que emanam da vontade soberana da maioria da população. Se a prioridade do país é o crescimento e a geração de empregos e oportunidades, é neste sentido que deve caminhar a política econômica.” “Dano precificado” A conveniência de marcar uma posição da legenda que privilegie uma retomada do elo perdido principalmente com populações da periferia de grandes cidades e a necessidade de consolidar uma cara para o partido para as eleições de 2024, mais à esquerda, são consenso no PT. Contam, inclusive, com a aprovação de membros do partido que estão no governo. A divergência é sobre o tom que essas críticas devem ter. “O que a gente precisa agora é transformar a força eleitoral do Lula em uma força política organizada no Brasil para que nunca mais a extrema direita e o fascismo cheguem ao poder. Isso não se faz de dentro do Palácio do Planalto”, argumentou Maria do Rosário. "Quando estivermos no território das eleições municipais, tudo vai passar pela Gleisi. Agora, é importante que o PT seja forte dentro dessa aliança ampla, senão o governo vai só para um lado.” Gleisi tem, em seus comentários, dois públicos-alvo: o próprio PT e os movimentos sociais. Haddad é membro e porta-voz do governo de Lula, que precisa ponderar com o mercado, com a necessidade de equilíbrio fiscal, e a realidade de um Banco Central independente, entre outras demandas. “A gente já começou há algum tempo a trabalhar muito no sentido dessa reaproximação, do fortalecimento do PT na base, porque vimos o quanto esse afastamento foi ruim pra nós, o nosso campo político e as organizações. Quando viramos governo, as forças do partido se voltaram a ajudar a governar o país e isso acabou nos distanciando da base. Os movimentos começaram a ter relação mais com o governo e menos com o PT. Agora, o PT só é uma fortaleza se tiver essa relação mais sólida com a base social que ele representa”, explica a deputada. Apesar de compreendida a motivação, a postagem de Gleisi se posicionando veementemente contra a volta dos impostos federais sobre a gasolina surpreendeu Haddad. “Caiu muito mal. Foi o tipo de tuíte que, se apaga, fica pior”, avaliou um interlocutor assíduo do ministro. Em contraponto com Haddad em meio às tratativas para se definir a volta do tributo, novela que assombra o governo desde o primeiro dia, Gleisi foi às redes defender uma prorrogação da isenção, pelo menos até abril, quando haverá mudança com Conselho de Administração da Petrobras, hoje apinhado de bolsonaristas. No Twitter, ela provocou: “Antes de falar em retomar tributos sobre combustíveis, é preciso definir uma nova política de preços para a Petrobras. Isso será possível a partir de abril, quando o Conselho de Administração for renovado, com pessoas comprometidas com a reconstrução da empresa e de seu papel para o país”. “Não somos contra taxar combustíveis, mas fazer isso agora é penalizar o consumidor, gerar mais inflação e descumprir compromisso de campanha”. O tom não agradou a comunicação do Planalto, que passou a operar no modo “contenção de danos”. Haddad estava em Bangalore, na Índia, participando da reunião do G-20, e ficou profundamente irritado, especialmente com as últimas palavras do texto: “descumprir compromisso de campanha”. Da Índia, ele telefonou para Gleisi imediatamente. Perguntou o que ela iria fazer caso a tese vencedora fosse a dele. No bom português, Haddad disse: “Vocês (do PT) vão ter coragem de dizer que o presidente Lula quebrou uma promessa de campanha quando ele aceitar reonerar os combustíveis?”. No mesmo telefonema, o ministro apelou pelo fim das críticas públicas. E foi duro, dizendo que “não dava para ela virar ministra da Fazenda no Twitter”. Gleisi, momentaneamente, calou-se sobre o assunto nas redes. Enquanto esperava a decisão de Lula, tratou de outros temas, como guerra da Ucrânia, terrorismo bolsonarista, quebra de sigilo do deputado Eduardo Pazuello (PL-RJ), vacinação e nova foto oficial de Lula. A presidente do PT só voltou ao assunto na terça-feira, dia 28, quatro dias depois da primeira publicação. Após a coletiva de Haddad, na qual ele anunciou a volta do imposto equivalente a 47 centavos na gasolina e 2 centavos sobre o litro de álcool, a presidente do PT foi mais ponderada. Ela elogiou a “sensibilidade de Lula” em adotar alíquotas mais baixas que as do passado e a taxação na exportação do óleo cru. Não houve referência a Haddad nem a uma eventual “quebra de compromissos”. Gleisi optou por tratar de dois temas mais consonantes com o governo: os planos para acabar com a indexação do preço dos combustíveis ao dólar e a crítica à atual forma de distribuição de dividendos da estatal. Para a equipe econômica, houve um “apaziguamento”, mas o episódio deixou uma lição. A verborragia sobre questões econômicas é, conforme disse um dos membros da equipe ao Meio, recorrendo ao “economês”, dada como uma coisa “precificada”. “Apaziguou até a próxima crise. A gente já sabe que ela não vai recuar. Ela sempre vai dar pitaco na economia”, disse um interlocutor do Planalto. O árbitro Lula Se realmente houve exagero por parte de Gleisi ao falar de quebra de compromisso de campanha, não houve por parte de Lula nenhuma repreensão. Ao contrário, Lula fez questão de voltar a ressaltar em público, ao longo da semana, sua confiança na petista, citando seu nome em discursos no Planalto. A turma veterana do PT admite que o presidente se refestela nesse tipo de conflito. “Lula, que é esperto, adora isso. Gosta do fato de ter duas pessoas que o ouvem e que são leais a ele dando opinião. Ele vai lá e arbitra”, avalia um petista das antigas, em reservado. “Você acha que a Gleisi faria isso se não fosse do conhecimento e do agrado de Lula? Sempre foi assim”, destacou outro petista dos primórdios do partido. “No final de tudo, não houve grande prejuízo de imagem para ninguém. Imagina se o PT concordasse de cara com aumento de impostos? Ia ser muito pior”, avalia outro dirigente. A própria Gleisi confia que Lula nunca lhe colocará uma mordaça. Nem nela, nem no partido. “O PT é governo, é o principal partido de sustentação e vai sempre defender Lula e as posições que nos trouxeram até aqui. Obviamente, estamos falando de um governo que é de coalizão, com um espectro amplo de partidos. E o PT, como um partido que compõe essa coalizão, tem a obrigação de defender o que é seu ponto de vista, aquilo que acredita. Sem prejuízo. Não é para fazer oposição. É só para alertar, para chamar a atenção, para disputar uma posição de governo.” Ela refuta a tese de que seus posicionamentos sejam orientados ou calculados por Lula. “Não, não é uma orientação. Mas Lula respeita. Ele tem um carinho e sabe o que um partido significa como instrumento da política. O presidente não vai se basear por tudo que a gente quiser para tomar suas decisões. Vai arbitrar, negar, decidir. Mas sempre vai ouvir e considerar. Lula considera natural que o partido tenha posições divergentes em relação a sua política”, garante a petista. Dentro do PT, as rusgas são minimizadas e têm um gosto de déjà vu. Não são raros os que recorrem ao primeiro mandato de Lula, lembrando a guerra entre posicionamentos do partido e do governo. Em 2005, enquanto a equipe econômica, liderada por Antonio Palocci, apostava em uma política fiscal mais restritiva e em altas taxas de juros, o PT, presidido por Ricardo Berzoini, não se furtava em deixar pública sua contrariedade. Houve um momento em que o então ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, ex-marido de Gleisi, nem fazia mais questão de esconder a irritação com o partido e respondia aos jornalistas que Berzoini estava com o “miolo mole”. E Berzoini devolvia, dizendo que era melhor ter o miolo mole que o “coração endurecido”. Lula seguia, ora agradando uma turma, ora contemplando outra. “Lula sempre fez isso. Ele bancou Palocci inteiramente, não fez o Palocci recuar em nada. Mas, ao mesmo tempo, mantinha no governo gente que falava mal do Palocci o dia inteiro. E bancou essa gente também. Às vezes, ouvia mais um lado, às vezes o outro. O próprio Paulo Bernardo, quando foi chamado para ser o ministro do Planejamento, ouviu de Lula que não queria que ele fosse um ‘palocinho’”, lembrou Celso Rocha de Barros, doutor em sociologia pela Universidade de Oxford, e autor do livro PT, uma História (Companhia das Letras). “Não há nada de errado nisso. Há outros governos pelo mundo que fazem a mesma coisa”, ressalta. “Se você pegar os diários do Fernando Henrique Cardoso na Presidência, as brigas do pessoal do José Serra, na Previdência, e do Pedro Malan, na Fazenda, ocupavam o dia todo. Boa parte do trabalho de FHC era administrar essas brigas”, comparou o sociólogo, em conversa com o Meio. Mas esse atrito permanente pode gerar, sim, um desgaste. Rocha de Barros lembra que, na década de 1980, muitos prefeitos e até governadores acabaram saindo do PT depois de eleitos, devido ao grau de crítica pública. “Algum nível de ruído é até saudável. Mas não pode afetar a funcionalidade do governo, como ocorria nos anos 1980. Nesse caso recente dos combustíveis, considero que foi um pouco mais público do que seria o ideal, na medida em que afetou o Haddad. Ao falar sobre quebra de promessa, cruzou-se uma linha. Foi bom que a tese de Haddad tenha prevalecido dessa vez”, avaliou. Essa delicada coordenação entre braço direito e braço esquerdo vai caber a Lula. |
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