sábado, 8 de outubro de 2022

O PECADOR DE ESTIMAÇÃO Por Leonardo Pimentel, MEIO

 A campanha do segundo turno começou com a religião sendo o tema principal e usando como munição três notícias antigas envolvendo o presidente Jair Bolsonaro (PL). Na primeira, um vídeo de 2016, ele afirma ter vontade de comer carne humana, em particular de “um índio”. Na segunda, uma entrevista publicada em 2000, ele admite ter pedido à então futura segunda mulher, Ana Cristina Valle, que fizesse um aborto, prática que, publicamente, condena com veemência. Ela se recusou e teve Jair Renan, o filho Zero Quatro. E a terceira, de maior repercussão, foi um vídeo gravado em 2017 em uma loja maçônica, provavelmente em Brasília, mostrando o então pré-candidato Bolsonaro discursando para integrantes da ordem. O objetivo é desacreditá-lo junto ao eleitorado religioso em geral e evangélico em particular. Ainda não é possível avaliar se a estratégia surtiu efeito. Líderes evangélicos bolsonaristas correram para minimizar a presença dele em um templo maçônico, e o próprio presidente disse ter sido “muito bem recebido” lá.

A questão é que, embora estejam sendo amplificados pelas redes sociais, os três casos são anteriores à primeira eleição de Bolsonaro. Além disso, comentários misóginos, racistas e de apologia à tortura e à violência são marca registrada desde sua primeira eleição para vereador no Rio de Janeiro, no já distante 1988. Antes de chegar ao Planalto, afirmou usar o auxílio-moradia da Câmara para “comer gente”, mesmo sendo casado. O que leva muitas pessoas, especialmente as mais secularizadas, a indagarem como o eleitorado evangélico, que apregoa valores tão rígidos, pode apoiar um político de opiniões e comportamentos não exatamente cristãos. Existe uma explicação, inclusive teológica.

Bolsonaro laranja

Para começarmos a entender esse fenômeno é preciso prestar atenção em um importante modelo para Bolsonaro, o ex-presidente dos EUA Donald Trump. Fora a forma física e o fato de o americano já ser rico antes de entrar para a política, os dois são praticamente idênticos. Três casamentos com mulheres cada vez mais jovens, histórico de comportamento machista e de casos extraconjugais, suspeitas de negócios nebulosos no mercado imobiliário, discurso ultraconservador nos costumes não condizente com a própria conduta, etc. E, claro, o apoio monolítico dos mais expressivos líderes evangélicos.

No exterior, especialistas têm se debruçado sobre esse aparente paradoxo. Doutora em Estudos das Religiões pela Universidade de Oslo, Hanne Amanda Trangerud publicou um dos mais detalhados artigos sobre o caso e chegou ao cerne da questão, exposta em um discurso do apóstolo Guillermo Maldonado em janeiro de 2020, no lançamento da coalizão Evangélicos com Trump: “Pai, eu oro por (nosso) presidente. (...) Nós rogamos, Pai, para que ele possa ser Ciro, trazendo a mudança para esta nação.”

O Ciro em questão não é qualquer um daqueles com os quais estamos acostumados, mas Ciro II (580 a.C.-530 a.C.), o Grande, primeiro shahanshah do Irã, ou, nos termos da historiografia ocidental, primeiro imperador da Pérsia.

Um tiquinho de História

A partir de 553 a.C., Ciro II (Kurus no idioma parsi), rei da cidade de Ansã, derrotou no campo de batalha e assimilou por casamento o império Medo, unificou as tribos persas e partiu para guerras de conquistas. Ao morrer em combate, aos 50 anos, governava um dos maiores impérios da História, estendendo-se do Estreito de Dardanelos, hoje ponto mais ocidental da Turquia, ao Vale do Indo, no atual Paquistão. Entre suas muitas vitórias, a que nos interessa aconteceu em 539 a.C., quando ele tomou, praticamente sem resistência, o império neobabilônico, no qual os judeus viviam como exilados e cativos.

Os persas tinham uma religião oficial, o Zoroastrismo, fé monoteísta da qual vieram os conceitos de Céu e Inferno, redenção e Juízo Final que seriam mais tarde incorporados pelo Cristianismo e pelo Islã. Ciro e seus sucessores, porém, tinham uma política de estrita tolerância religiosa. Se seus vassalos pagassem tributo, não importava que deuses adorassem. Com base nesse princípio, ele não apenas permitiu que os judeus voltassem para seu reino, agora um Estado vassalo da Pérsia, como financiou a reconstrução de Jerusalém e de seu templo, arrasados quase 50 anos antes pelo babilônio Nabucodonosor.

O rei gentio ungido por Deus

O povo de Judá teve poucos benfeitores tão generosos ou suseranos tão liberais. Não é de se surpreender, então, que as Escrituras tratem muito bem o imperador persa. Em Isaías 45:1, ele é referido como “ungido” de Deus; no segundo livro das Crônicas, 36:23, o monarca, por inspiração divina, faz a seguinte proclamação: “Assim fala Ciro, rei da Pérsia: O Senhor, Deus do céu, deu-me todos os reinos da terra e me encarregou de lhe construir um templo em Jerusalém, que está na terra de Judá. Todo aquele dentre vós que for de seu povo, esteja seu Deus com ele e que ele para lá se dirija!”

Mas Ciro era um gentio, um não judeu, excluído da Aliança entre Javé e seu povo. Seria como um pagão para um cristão ou um infiel para um muçulmano, embora em ambos os casos a conversão seja não só fácil como desejada pela religião. Para explicar como o gentio se torna “ungido” existe o princípio do “instrumento de Deus”, alguém que, não sendo parte do povo escolhido, é usado por Javé para fazer sua vontade. Após a Diáspora, no século I d.C., houve diversos momentos em que governantes cristãos foram comparados a Ciro por adotarem políticas favoráveis aos judeus em seus países.

Segundo Rebecca Barrett-Fox, professora-visitante de Estudos da Religião na Universidade do Arkansas, ao incorporarem o conceito do instrumento de Deus e compararem Trump a Ciro, os líderes evangélicos puderam inserir o presidente em sua narrativa dos EUA como uma nação cristã. Ele não é apresentado como um irmão de fé, mas como o defensor dos crentes. A comparação com Ciro é reforçada pelos evangélicos sionistas, que apoiam o Estado de Israel visando a realização de uma profecia apocalíptica — que, aliás, envolve a destruição de Israel, mas essa é outra conversa. Enquanto Ciro reconstruiu Jerusalém, Trump reconheceu-a como capital israelense, transferindo para lá a embaixada dos EUA.

Lá como cá, os evangélicos são um grupo diversificado, e não faltam os que criticam essa visão idealizada de Trump. Em entrevista à Vox, John Flea, professor de História Evangélica no Messiah College, na Pensilvânia, avaliou que a comparação com Ciro funciona como um “batismo” do presidente. “É como uma lavagem de dinheiro político-teológica. Usam-se as Escrituras para limpar a imagem do candidato”, disse ele.

Não olhem para Bolsonaro

No fim das contas, o raciocínio é “o governante pode até ir para o Inferno, mas antes fará a obra de Deus na Terra”. Valeu para Trump e vale para Bolsonaro, como deixa claro o influenciador digital evangélico Deive Leonardo: “Por favor, meu lindo, talvez você não goste do Bolsonaro, mas esqueça o Bolsonaro e olhe só para a ideologia.”

O fato de que, com ou sem ideologia, é a pessoa Bolsonaro que terá nas mãos o destino do país em caso de reeleição não passa de um detalhe.

O GAMBITO ESTÁ NU

Por Flávia Tavares

Hans Niemann escolheu fixar em seu perfil no Twitter o vídeo de uma entrevista que concedeu no dia 6 de setembro. Diz que ali está sua “verdade”. Depois de analisar com o apresentador cada lance de um empate que teve instantes antes, a câmera fixa no enxadrista americano de 19 anos de cabelos encaracolados. Havia muitas controvérsias a esclarecer. A palavra era sua. “Primeiramente, sobre meu sotaque”, Niemann começou. “Estou há dois anos vivendo dentro de malas, viajando pela Europa. Passo tanto tempo pensando em xadrez que simplesmente não saio, não socializo com pessoas que falam inglês fluente. E mesmo quando estou nos Estados Unidos eu não saio, só para buscar meu delivery duas vezes por dia, porque só penso em xadrez.” Essa, sem dúvida, era a menor das polêmicas envolvendo seu nome. Sobre a maior, com a polidez de um adolescente, Niemann decretou: “As pessoas são idiotas. A explicação que vou dar vai fazer todos parecerem idiotas completos”. Não é o jeito mais inteligente de angariar simpatia depois de ser acusado por Magnus Carlsen, campeão mundial de xadrez, de ser um trapaceiro. Niemann faz explicações técnicas de suas jogadas, de como conseguiu vencer, dois dias antes, o norueguês Carlsen, de 31 anos. Então, num tom mais humano, relembra quando sua mãe o levou, ainda criança, para assistir a Carlsen numa exibição. A mãe queria pagar US$ 2 mil no leilão para Niemann, aos 9, jogar contra Carlsen. “Não, mãe, um dia vou jogar contra ele de graça”, o garoto respondeu. Na entrevista, consternado, Niemann resume. “Eu vivi meu sonho por um dia, vencendo Magnus. E aí tudo isso acontece.”

Para quem não acompanha os torneios de xadrez com tanta frequência, um resumo. Carlsen é campeão mundial desde 2013. Até a partida com Niemann, vinha numa sequência de 53 vitórias. É tão insuperável que, tão jovem, já aventou uma aposentadoria precoce por “falta de motivação”. Niemann teve uma ascensão luminosa nos últimos dois anos, passando da 800ª posição para a 38ª no ranking dos enxadristas. É um garoto de São Francisco, na Califórnia, que iniciou sua carreira jogando online e como streamer de xadrez — o que existe, sim. Ambos têm o título de Grandes Mestres, ou seja, são a elite do xadrez mundial. Depois de perder, Carlsen largou a competição. Primeiro, fez insinuações sobre a trapaça. Mais tarde, foi explícito. A suspeita é de que Niemann receba, de alguma maneira, a ajuda de computadores que sugeririam jogadas que humanos não fariam naturalmente. Desde que o computador da IBM Deep Blue derrotou Garry Kasparov, o que a inteligência artificial é capaz de antever nas jogadas mudou o esporte. E atualmente os aplicativos de xadrez colocam um Deep Blue gratuitamente e com extrema simplicidade dentro do seu celular.

Na mesma entrevista do agora longínquo 6 de setembro, Niemann admitiu que aos 12 e aos 16 anos trapaceou pontualmente em jogos online que não valiam dinheiro. Disse que precisava pagar o aluguel, já morava sozinho em Nova York, queria bombar sua carreira, e que se arrepende profundamente do que classifica como um erro de criança. Essa confissão lhe rendeu a expulsão do site Chess.com, onde os episódios de trapaça ocorreram e maior plataforma de xadrez online do mundo, modalidade que explodiu na pandemia. Niemann negou veementemente que tivesse sido desonesto em qualquer jogo de tabuleiro real, o que seria uma ofensa infinitamente mais grave. E propôs-se a jogar nu, numa sala sem qualquer acesso a aparelhos eletrônicos, para provar que seu sucesso não passa por trapaça, mas por seu talento. “O rancor sempre foi um combustível para mim.”

Por que nu? Bem, as regras do xadrez profissional vêm sendo aperfeiçoadas há décadas para evitar falcatruas. Sobraram pouquíssimas ferramentas de burla. Ainda assim, o mundo do xadrez é de paranóicos. Há dois casos que ilustram essa mentalidade. O primeiro é de 1978. A equipe do então campeão mundial Viktor Korchnoi estava certa de que o rival Anatoly Karpov havia trapaceado ao receber um iogurte de mirtilo de sua entourage — estaria ali um indicativo de qual jogada Karpov deveria fazer para derrotar Korchnoi. O iogurte suspeito estava no contexto muito mais bizarro de que Karpov mantinha, na primeira fila da plateia, um hipnotizador. Korchnoi, por via das dúvidas, jogou de óculos de sol espelhados, para desviar qualquer olhar mal intencionado. O segundo episódio de paranoia foi em 2006 e ficou conhecido como Toiletgate. A equipe de Veselin Topalov questionou o campeão Vladimir Kramnik de usar o banheiro vezes demais durante as partidas. Quis instalar um banheiro comum aos jogadores. Depois de muitas idas e vindas da Federação Internacional de Xadrez (Fide, na sigla em francês), Kramnik pôde manter seus hábitos sanitários e sagrou-se campeão novamente. Não ficou provada nenhum tipo de má-fé ali. Voltando a 2022, aventou-se que a maneira encontrada por Niemann para trapacear contra Carlsen tenha sido por meio de um plug anal, que vibraria como a ditar que jogada o rapaz deveria fazer. Por isso, ele se dispôs a jogar com o gambito de fora. (Perdão, mas você sabe que era inevitável).

Campeões do passado vieram a público defender Niemann das acusações de Carlsen. Isso inclui Susan Polgar e Garry Kasparov, atualmente mais dedicado na oposição a Vladimir Putin, e até um editorial do The Guardian, que tem setorista de xadrez. O argumento de todos era de que não havia indícios consistentes de que Niemann tenha roubado profissionalmente. Muita convicção, pouca prova, aquela coisa. Do outro lado, acusando Niemann, além de Carlsen, estava Hikaru Nakamura, um Grande Mestre americano que já foi o número dois no mundo tornado influencer e streamer. Acontece que no dia 4 de outubro o Chess.com divulgou um relatório de 72 páginas dizendo que Niemann “provavelmente recebeu assistência ilegal em mais de 100 jogos online” até 2020, inclusive em eventos em que prêmios em dinheiro estavam em jogo. A acusação se baseia em ferramentas de detecção de trapaças como uma comparação das jogadas de um enxadrista com aquelas que supercomputadores recomendariam. O documento não tira conclusões sobre jogos presenciais e sugere “uma investigação mais aprofundada com base nos dados” de seis torneios de tabuleiro. A Fide já comunicou que convocará seu próprio painel de três experts para analisar as alegações.

Mas no dia seguinte ao da divulgação do relatório Niemann ganhou mais uma partida. Numa nova entrevista ao mesmo canal daquela primeira, Niemann avisou que o jogo era “uma mensagem para todos. Essa coisa toda começou comigo dizendo 'o xadrez fala por si' e acho que este jogo falou por si e mostrou o jogador de xadrez que sou. Também mostrou que não vou recuar e vou jogar meu melhor xadrez aqui, independentemente da pressão.” Antes de deixar o estúdio abruptamente, acrescentou, com a modéstia de um adolescente emparedado: “Foi um jogo tão bonito que não preciso descrevê-lo”.

Só deu ela. Os leitores estiveram vorazes por entender os termos do apoio de Simone Tebet a Lula. Ah, e por Beatles:

1. Metrópoles: "Reconheço seu compromisso com a democracia", diz Tebet ao apoiar Lula.

2. Metrópoles: A linguagem cristã usada por Tebet em sua declaração.

3. Metrópoles: O almoço que selou a aliança.

4. TSE: Os resultados das urnas no dia 2 de outubro.

5. CNN: Duas novas fotos dos Beatles no Cavern Pub, em 1961.

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