sábado, 8 de outubro de 2022

Edição de Sábado: PT e MDB, a hora da reconciliação, MEIO

 

Por João Villaverde*

Tamba-Tajá foi um sucesso instantâneo. Todo mundo queria comprar o primeiro disco daquela jovem de voz poderosa, que chegava ao Rio vinda de Belém do Pará. Na capa do LP, Fafá de Belém, com 19 anos, aparecia como que saindo de um sonho envolta em árvores, em meio a uma mata densa. A mais marcante canção do disco era Vento Negro, composta por José Fogaça, um jovem professor de cursinho na gélida Porto Alegre. Era 1976, ditadura militar, governo Ernesto Geisel.

Aquele professor-compositor, cabeludo, tinha 28 anos. Hoje ele tem 75, ainda vive em Porto Alegre e é uma das vozes fundamentais para a disputa eleitoral mais impactante de nossa geração, entre Lula e Jair Bolsonaro.

Antes de estabelecer a conexão entre o compositor de Vento Negro e a mais tensa eleição presidencial dos últimos 50 anos, temos que ter em mente o que está em jogo.

Para vencer a máquina bolsonarista, que arrastou um séquito de extremistas para o Congresso Nacional, para governos estaduais e que ainda pode levar a Presidência, Lula precisa ampliar ainda mais a sua base. O movimento de frente ampla, no primeiro turno, foi importante — mas não suficiente.

Resta, no campo democrático, trazer de volta para o campo lulista o maior partido do Brasil, o MDB.

Você, leitora e leitor, já deve ter feito um desenho mental ao ler essa sigla de três letras. Você pode ter pensado que uma parte grande do MDB já está com Lula, dado que senadores como Renan Calheiros (Alagoas) e Eduardo Braga (Amazonas) já estavam neste barco. Ou, talvez, você tenha pensado em outras alas do MDB, que também já estavam como Lula, mas que era melhor não lembrar: Geddel Vieira Lima (Bahia), Eunício Oliveira (Ceará) e Leonardo Picciani (Rio de Janeiro). Por fim, você talvez tenha pensado naquelas alas do MDB que já tinham aderido ao bolsonarismo, como em boa parte do Sul e do Centro-Oeste, e que, portanto, não estarão com Lula de jeito algum.

Mas falta uma ala importante do MDB. Uma ala que estava esquecida, adormecida: a ala original.

Depois de ter Vento Negro cantada por Fafá de Belém, José Fogaça continuou a compor e a dar aulas para jovens gaúchos. Outras canções suas seriam gravadas por Nara Leão, Mercedes Sosa e MBP4. Até que o senador Pedro Simon, principal figura do MDB gaúcho, decidiu convidar o compositor a entrar para a política e na luta contra a ditadura. Fogaça topou. Em 1986, Fogaça foi eleito senador constituinte e se mudou para Brasília.

De imediato, Ulysses Guimarães, o presidente do MDB e da Assembleia Nacional Constituinte, selecionou Fogaça para as comissões mais importantes (de sistema de governo e, depois, de sistematização). A Constituição encerra formalmente o período de arbítrio. Anos depois, Fogaça foi o relator no Senado da Medida Provisória que estabeleceu o Plano Real, que terminou com a hiperinflação herdada do regime militar. De volta ao Rio Grande do Sul, Fogaça foi eleito e reeleito prefeito de Porto Alegre no começo desse século. A partir de 2011, decidiu deixar adormecer a política para voltar à música.

Isso mudou em 2022.

Com cabelos curtos e brancos, José Fogaça passou o ano como um dos líderes da área de educação do programa de Simone Tebet à Presidência. A amigos próximos, o compositor-político tem dito que a candidatura de Simone “ressignificou” o MDB, engajando pessoas que estavam há anos desmotivadas a se envolver com a sigla.

Os “originários” do MDB formam um grupo pequeno. Entre as figuras expoentes, além de Fogaça, estão também o ex-governador gaúcho Germano Rigotto, que foi o coordenador do programa de governo de Simone Tebet, além do ex-governador pernambucano Jarbas Vasconcelos e do senador piauiense Marcelo Castro.

Os termos-chave para definir os integrantes dos originários são “luta pela democracia” e “estabilidade política”. São marcos muito distintos daqueles que o partido, especialmente quando usava a letra “P” antes do nome (PMDB), ficou associado: fisiologismo, corrupção desbragada e “toma-lá-dá-cá”. Alguns dos nomes mais associados à fisiologia do antigo PMDB não estão mais no partido, como Eduardo Cunha ou Sérgio Cabral. Outros, como Geddel Vieira Lima e Michel Temer, ainda estão: Geddel, como mencionado, está na campanha de Lula; Temer chegou a vazar apoio a Bolsonaro, mas recuou diante de pressões internas.

O grande esforço do grupo de originários do MDB está em resgatar as ideias originais do partido que nasceu do combate implacável à ditadura militar e das lutas por uma Constituição Cidadã.

Tendo isso estabelecido e sabendo que essas figuras estavam no entorno de Simone Tebet, há, portanto, duas formas de compreender o apoio dela a chapa Lula-Alckmin. A primeira é a simbólica: ao galvanizar figuras originais do MDB, a campanha de Simone de fato ressignificou perante a opinião pública a imagem do MDB.

A segunda é de ordem prática: Simone pode ser a “árbitra neutra” para reestabelecer uma relação entre as duas maiores forças partidárias do país, PT e MDB.

É aqui, no campo do pragmatismo, que as coisas ficam complexas. Peço licença então, leitora e leitor, para uma breve mudança de linguagem. Sairemos das composições musicais e dos avanços institucionais de nossa história democrática e entraremos no ramo da política prática.

Na prática, a teoria é outra

O MDB é multifacetado, como qualquer organização de grande porte. Imagine uma empresa com mais de 1 milhão de integrantes, espalhados em um dos mais vastos territórios do planeta. Não é moleza organizar e formar discurso único.

Mas diferente do PT, que funciona como um bloco quase uníssono e tem em Lula a sua figura onipresente, o MDB é uma colcha cheia de remendos, cada um de uma cor. Cada Estado atua de um jeito e essa liberdade de atuação é marca constitutiva do partido. Quando os interesses de uma ala do MDB se cruzam com a de outra, elas trabalham juntas; quando não, cada um atua como deseja.

É por isso que o PT fecha questão sobre um assunto e o MDB libera seus quadros para atuarem como desejarem. Sempre foi assim.

Enquanto o PT é um típico partido presidencialista, em que os incentivos partidários estão voltados para a conquista do Executivo (federal, estadual, municipal), o MDB atua como partido parlamentarista. Seus quadros sempre dominaram o Congresso, as assembleias e as câmaras regionais. Não à toa, o comando relativamente estável e homogêneo do MDB no Congresso Nacional entre 1985 e 2018 foi fundamental aos ocupantes do Executivo no período.

Quando foi governo, sob José Sarney, o MDB forjou instituições como o Ibama (criado em 1989), a Secretaria do Tesouro Nacional (1986), a unificação orçamentária federal (1987) e as primeiras políticas sociais (“Programa do Leite”, 1986) para aplacar a insegurança alimentar infantil, herdada da ditadura. Além, claro, da Constituição de 1988.

Depois, as principais reformas do governo FHC foram relatadas por parlamentares do MDB ou tiveram caminho facilitado por presidentes emedebistas na Câmara e no Senado. Algo semelhante ocorreu com o governo Lula e durante boa parte do governo Dilma Rousseff.

A vocação presidencialista do PT encontrou no destino parlamentarista do MDB o espírito ideal para governar de forma estável por mais de dez anos. Em uma palavra: funcionou.

O negócio começou a desandar a partir da tempestade perfeita que ocorreu no país a partir de 2014: os graves erros de política econômica de Dilma Rousseff começaram a ficar escancarados; a Lava Jato desnudou indicados políticos que usaram cargos para desvio de recursos (para fins patrimoniais ou políticos); o país se acirrou politicamente, com passeatas frequentes, radicalização e uso desenfreado das redes sociais. Por semanas e semanas, o país ficava em transe acompanhando operações policiais, enquanto investimentos eram postergados, manifestações de rua eram convocadas e o governo Dilma entrava em parafuso.

Quando Bolsonaro venceu em 2018, PT e MDB estavam no auge de sua crise relacional.

O presidente Michel Temer era — e ainda é — acusado de “traidor, golpista e proto-fascista” pelos petistas. Temer, afinal, herdou o governo federal quando o impeachment de Dilma Rousseff foi aprovado pelo Congresso Nacional. O racha entre os dois foi ruidoso e acompanhado de perto pela imprensa. Cobri, como jornalista, muito de perto todo aquele caos em Brasília: no Congresso, no Tribunal de Contas da União e no Palácio do Planalto (o que rendeu meu primeiro livro, Perigosas Pedaladas).

Do ponto de vista dos recursos humanos, no entanto, a gestão Temer não foi muito diferente de um governo federal petista: Henrique Meirelles, Dyogo Oliveira, Suely Araújo, Moreira Franco, Gilberto Kassab, entre outros. Temer também manteve a indicação para a Procuradoria-Geral da República (PGR) a partir de lista tríplice da categoria, prática iniciada pelo PT. A despeito dessas semelhanças, o governo Temer representou grandes cisões com a pauta petista, em especial por aprovar uma profunda reforma trabalhista e sindical e por abrir o governo civil para quadros militares.

Assim chegamos à campanha de 2022, com PT e MDB ainda se estranhando. Isso terá que mudar nas próximas três semanas.

O começo do fim

Pense um pouco agora, leitora e leitor, nas lutas que levaram ao fim da ditadura militar. Homens e mulheres que se engajaram pela anistia, pelo fim da tortura, pelo voto direto, pelo SUS, pela Constituição. Aquela luta, dos anos 1980, foi uma luta levada adiante por cinco partidos principais: nos sindicatos, o PT; no Congresso, o MDB; na esquerda tradicional, o PDT; na social democracia, o PSDB; no racha do regime militar, o PFL (DEM).

Agora vejamos, leitora e leitor, o que ocorreu com três desses cinco partidos durante os anos Jair Bolsonaro. No ano passado, o DEM (ex-PFL) cometeu suicídio político ao se unir a sigla micro-radical do PSL, criando o monstrengo União Brasil. Sem programa, sem ideias, sem nomes nacionais, a União Brasil é um grande e rico... nada.

Em 2022, acompanhamos os obituários do PDT e do PSDB. O partido que já foi de Leonel Brizola e Darcy Ribeiro diminuiu dramaticamente de tamanho e teve em Ciro Gomes um símbolo da biruta de aeroporto que a sigla se tornou: terminou em distante quarto lugar, perdendo em todos os Estados e reduzindo a bancada federal. Já os tucanos perderam o governo de São Paulo pela primeira vez desde 1994, além de elegerem uma bancada menor que a do PSOL. FHC, 91 anos, não conseguiu votar. José Serra, 80, não se elegeu deputado. Tasso Jereissati se aposentará no fim do ano.

Quem sobrou daquelas lutas dos anos 1980? Pois é, o PT e o MDB.

Superar essa tremenda crise que há entre os dois partidos é absolutamente fundamental, seja para evitar uma vitória que consolide Jair Bolsonaro, seja para escapar do óbito partidário.

Que fique claro: se nem mesmo Lula conseguir vencer Bolsonaro, quem o PT terá a disposição depois? O pêndulo da luta anti-extremista no Brasil pode migrar para o campo verde (tal como ocorre na Alemanha) ou para o campo identitário (tal como ocorre nos EUA). Em ambas as searas, o PT não surge como primeira opção: parece claro que a Rede e o PSOL, respectivamente, liderariam essas frentes por aqui.

No caso do MDB, uma nova vitória de Bolsonaro servirá como pá de cal em um partido parlamentarista. O Congresso do futuro será liderado por siglas eminentemente bandoleiras, como o PL de Valdemar da Costa Neto, a já mencionada União Brasil ou o PP de Arthur Lira.

Será apagada a luz, também, sobre o grupo de “originários” do MDB, que ressurgiu com a campanha centrista de Simone Tebet.

A última saída

Colocando-se como alguém que está livre dos ressentimentos de lado a lado, Simone Tebet pode servir de ponte estável para a retomada de diálogo entre petistas e emedebistas. Caso vença a apertadíssima eleição que se avizinha, Lula terá um governo para tocar a partir de janeiro.

Como ensinava Ulysses Guimarães em sua pregação diária, “governo no Brasil é presidente da República mais o Congresso Nacional... presidente sem Congresso não governa”.

Com 42 deputados, o MDB terá uma bancada maior do que todas as outras siglas que apoiam Lula e Alckmin. Será uma bancada menor, apenas, que a do PT. Pode vir justamente do MDB, portanto, um nome de consenso para presidir a Câmara, sem gerar animosidades com o campo que atualmente domina a Casa, a partir do orçamento secreto. De seu lado, o MDB tende a oferecer Roseana Sarney, que foi eleita deputada federal, fez campanha ao lado de Simone Tebet e agora está com Lula. Ela entende do riscado.

Caso seja mesmo derrotado, Bolsonaro ainda assim será presidente durante todo o mês de novembro e todo o mês de dezembro. A destruição que o acompanha pode se aprofundar antes da posse do governo novo. O orçamento secreto, no Congresso, pode se perenizar.

O trabalho de frente ampla iniciado por Lula deve agora passar pelo MDB, mas não pode parar com a eleição. Para fechar, os versos de Fogaça cantados por Fafá de Belém:

“Quem me ouve vai contar
Quero luta, guerra não
Erguer bandeiras sem matar
Vento negro é furacão”

*João Villaverde é jornalista, professor e mestre em Administração Pública e Governo pela FGV-SP. Foi pesquisador visitante na Universidade de Columbia, em Nova York. É co-organizador (com Felipe Salto e Laura Karpuska) do livro Reconstrução: o Brasil nos anos 2020. É autor do livro-reportagem Perigosas Pedaladas (Geração Editorial, 2016), sobre o impeachment de Dilma Rousseff.

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