sábado, 29 de outubro de 2022

Antonio Prata -A vida como ela deveria ser, FSP

 Ontem, voltando do Rio a trabalho, vi uma dessas cenas que, de tão banais, acabam nos cegando para sua excepcionalidade. Parece haver uma contradição de termos na frase acima, mas não. Banal é só o que acontece sempre, mas acontecer sempre, embora normalize o evento, não o deixa menos absurdo. Se óvnis passassem a pousar, toda terça e quinta, às seis da tarde, na praça do Pôr do Sol, em uma semana ia ser banal, mas nem um pouco menos bizarro.

Não foi um óvni o que vi, embora fosse oval a almofada que o sujeito trazia no pescoço, enquanto arrastava a mala de rodinhas pela calçada do aeroporto de Congonhas. Eu o observei com a ferradura inflável num doce mata-leão e pensei: isso aí dá crônica. Imediatamente lembrei daqueles estudantes da Faculdade de Medicina da USP, que vão almoçar nos quilos de Pinheiros com o estetoscópio dependurado no pescoço. Lembrei do Doria com um cashmere nos ombros. A crônica, suspeitei, passearia entre o que ostentamos no pescoço e o que carregamos inadvertidamente nos ombros —talvez visitasse a ideia de que o que é normal ostentar num lugar, noutro é excepcional blablabla.

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 30 de Outubro de 2022, mostra o desenho de uma pessoa deitada na grama segurando um binóculo em direção ao céu. Nas lentes do binóculo é possível ver o reflexo de um pássaro voando.
Adams Carvalho

Embora tenha levado dois parágrafos pra explicar meu pensamento, ele durou só uns três segundos. Foi logo solapado por outro, bem mais poderoso: como posso eu escrever sobre almofadas infláveis quando hoje, domingo, o Brasil decide se volta a caminhar em direção à democracia ou afunda de vez na areia movediça do bolsonarismo? Faz dez anos que, semanalmente, me vejo nesta encruzilhada. Diante do desmantelo nacional, o que faço? Escrevo uma crônica, um texto engraçado ou bonito sobre as farpas e serragens do cotidiano, ou boto a boca no trombone denunciando as violências a que, diariamente, estamos sendo submetidos? Invariavelmente, as almofadas de pescoço perdem para as milícias, as Damares, os Robertos Jeffersons.

Nesta semana a Mariliz Pereira Jorge escreveu uma crônica parecida com esta aqui. (Sexta, ela me citou noutra crônica. Cito-a hoje não por compadrio, e sim por admiração). Num discreto manifesto, ela lutava pelo direito de escrever sobre seus gatos. Sobre a mudança de casa. Sobre sei lá qual situação com o marido. Ela queria o cotidiano de volta.

É isso o que o bolsonarismo nos rouba, além de vidas, florestas, educação, saúde, cultura e poder de compra: nos tira a alegria das pequenas coisas. Eu levei 20 anos de análise pra entender que não existe nada além disso aqui. Ou a gente aprende a ser feliz regando as plantas e comprando couve, ou não tem saída. Olha o Elon Musk, coitado. Não há mais felicidade possível para ele na Terra. Precisa ir pro espaço. Pra Marte. Comprou o Twitter porque não aguenta estar num jogo em que não é o dono da bola.

A sintonia fina some sob o subwoofer truculento dos dias correntes. (Tome "correntes" pelos dois sentidos da palavra). Bolsonaro, como a Covid, tira o nosso olfato e paladar. Vai ser lindo daqui a alguns meses, daqui a alguns anos, conseguirmos passar um dia todo, quem sabe uma semana inteira, sem se desesperar com o processo de savanização da Amazônia, com loas a torturadores, com a cassação de direitos. É o que eu mais quero. Escrever sobre a almofada de pescoço do figura no aeroporto. Ler sobre os gatos da Mariliz. A vida como ela deveria ser.


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