quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Pintou um silêncio, Juliano Spyer, FSP

 Uma das táticas da comunicação bolsonarista é responder rapidamente aos ataques e questionamentos ao presidente. Mas neste sábado (15) os grupos evangélicos se calaram. "Esse vídeo do ‘pintou um clima’ está viralizando demais. Estou impressionado," me escreveu um pastor. "Está em todos os grupos. Tem gente perguntando se é verdade, se não é fake. Apenas isso. Mas ninguém defende."

O disparo partiu do deputado André Janones (Avante-MG), que é evangélico. Ele compartilhou nas redes um trecho da entrevista em que Jair Bolsonaro (PL) diz que encontrou "menininhas bonitas, de 14, 15 anos" que, conforme ele sugere, seriam prostitutas. "Pintou um clima’, voltei. Posso entrar na tua casa? Entrei", diz o presidente.

Durante participação a um podcast nesta sexta-feira (14), o presidente Jair Bolsonaro (PL) disse que 'pintou um clima' entre ele e uma menina venezuelana de 14 anos - Reprodução

E por que falas sobre violência ou corrupção, por exemplo, geram menos incômodo? "Muitos missionários que implantaram igrejas evangélicas no Brasil foram puritanos vindos principalmente dos Estados Unidos," explica a teóloga pentecostal Regina Fernandes. "Mexer na questão sexual e ainda envolvendo crianças conduz a um tema delicado para os evangélicos."

"Pintou um clima" semeia a dúvida especialmente entre mulheres evangélicas que votam em Bolsonaro pragmaticamente, sem gostar dele. Ao associar o presidente a pedofilia, Janones chama a atenção dessas eleitoras para aquilo que elas rejeitam no presidente: a postura truculenta, a atitude desrespeitosa em relação a mulheres, e o histórico familiar com várias separações que não combina com a moral cristã.

O apresentador Luciano Huck, um dos globais mais admirados pela audiência evangélica, se manifestou pelo Instagram reagindo ao conteúdo do vídeo: "Não existe ‘pintar um clima’!!!! Exploração sexual infantil é um tema que não pode ser tratado com ‘normalidade’, nem empurrado para debaixo do tapete…".

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Outro front dessa contraofensiva ao bolsonarismo acontece no campo da música gospel. O lançamento da canção Messias é uma ação menos estridente porque acontece "intramuros" no mundo evangélico e sem escândalo. Mas ela dialoga com jovens evangélicos e desigrejados em geral, que estão mais descontentes com a ocupação das igrejas pelo bolsonarismo.

O gospel é o segundo gênero musical mais popular do Brasil hoje e Messias é o resultado da colaboração entre estrelas como Leonardo Gonçalves, Kleber Lucas e Clovis —só este último, o autor do hit mais ouvido na categoria gospel em todas as línguas, com mais de 700 milhões de visualizações no YouTube. É uma crítica que vem de dentro das igrejas a partir de pessoas influentes para esse público.

Messias registra a experiência dos evangélicos que vêm se afastando das igrejas por causa do ambiente de intolerância com a diferença. O final da faixa traz um desabafo: "A real é que eu tô triste… Lugares em que tivemos experiências incríveis, pessoas com quem tivemos experiências incríveis, se voltaram contra a gente, questionam a nossa fé. Dizem que não somos cristãos e falam da gente como se não nos conhecessem, como se já não tivéssemos partido o pão juntos incontáveis vezes por anos. E tudo isso por causa de política…".

Alguns músicos que aceitaram participar da gravação pediram para sair por medo de não serem mais chamados para cantar em igrejas. Um dos organizadores do projeto, o cantor Leonardo Gonçalves, perdeu, desde 2020, 200 mil ouvintes mensais no Spotify e cerca de 100 mil seguidores no Instagram. Mas a audiência está correspondendo o esforço dos criadores e em 24 horas Messias foi tocada mais de 300 mil vezes no YouTube.

Magali Cunha, pesquisadora do Iser (Instituto de Estudos da Religião) e estudiosa da cultura gospel, explica a relevância desse lançamento: "É música para jovens com até 40 anos, que têm afinidade com pop rap gospel. Esse segmento representa a parcela maior do eleitorado evangélico e a mais crítica da realidade presente das igrejas."

Messias toca especialmente aqueles evangélicos criticados e atacados por resistirem à pressão para votar no candidato das igrejas. "Para pessoas como eu, o Leonardo gera identificação e ‘refúgio’," conta o historiador Samuel Gandara. "[Esse tipo de ação] passa a sensação de que não estamos sozinhos e temos para onde olhar".

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