quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Evangélicos, cidadãos de segunda classe?, Valéria Vilhena, FSP

 Desde o início da campanha eleitoral, temos visto, por um lado, uma disputa pelo "voto evangélico" —visto como determinante para a vitória de um ou outro candidato— e, por outro, um tratamento dos evangélicos como se fossem um bloco único, formado por pessoas ignorantes e fanáticas, massa de manobra de pastores inescrupulosos.

Nesse momento, é importante perguntar: que tipo de aproximação se pretende ao tratá-los como cidadãos de segunda classe? Além disso, não seria isso culpabilizar quem ficou por tanto tempo abandonado pelo Estado, sendo alvo e fruto de uma comunicação de (des)informação e (des)educação?

Para entender de quem estamos falando quando falamos dos evangélicos, é preciso contextualizar a expansão cristã evangélica de nosso tempo, que tem muito a ver com o crescimento de suas vertentes pentecostal e neopentecostal —mas não só, afinal de contas, somos todas, todes e todos frutos de uma colonização-exploratória-escravocrata-patriarcal-racista-cristã.

Quadra da Grande Rio, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, lotada durante culto da igreja pentecostal Templo dos Milagres
Culto da Igreja Pentecostal Templo dos Milagres na quadra da Grande Rio, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense - 3.mar.21 - Reprodução

Mas, quando falamos de pentecostalismo, estamos tratando daquela mensagem que, no início do século 20, foi difundida especialmente por uma mulher, Frida Maria Strandberg, e sua atuação sensível, pensante e pulsante, que propiciou a muitas mulheres negras e afroindígenas se tornarem protagonistas religiosas.

Tratava-se de pessoas empobrecidas pregando para outras tão empobrecidas quanto elas. Nada a ver com as lideranças mercenárias da contemporaneidade. Dentre muitas contradições, era o alívio que essa gente cansada, explorada, sofrida, violada em sua dignidade, proporcionava e recebia.

Já na segunda metade do século passado, com a ditadura militar no Brasil, ocorreu significativo crescimento das igrejas Assembleias de Deus (a primeira e ainda a maior igreja pentecostal do Brasil), e as igrejas e suas lideranças começam a prosperar materialmente, embora os fiéis permanecessem empobrecidos e explorados. Mas as igrejas pentecostais continuaram a ser espaços seguros de acolhimento, ajuda mútua, de irmandade para muita gente, e também para as novas gerações.

Eu sou fruto desse movimento. Nasci em 1971, em ambiente evangélico pentecostal nutrido de piedade e de misericórdia, inclusive para com os encarcerados. Bandido bom não era bandido morto. E a fome entre os irmãos e irmãs pentecostais era tratada com muita seriedade e urgência. Era economia da vida, sobrevivência pela prática da partilha, do pobre ajudando o pobre.

Cresci nesse "berço pentecostal". Meu pai era um dos poucos irmãos que tinha carro. O automóvel era velho, mas prestava "para servir ao Senhor", dizia ele, levando os irmãos e as irmãs necessitados para o hospital ou entregando alimentos na casa de quem tinha fome.

Lembro-me também da avó da igreja, a irmã Luzia. Fazia o papel da mãe e da sogra que minha mãe não tinha. Era uma mulher indígena casada com um homem negro, com quem tinha muitos filhos. Ela ajudava e era ajudada nessa rede de apoio, carinho e cuidado recebidos em nossa comunidade de fé. Enquanto cuidava dos doentes com seus remédios de ervas engarrafadas, em nossa casa ela nos ensinava músicas e danças de sua cultura indígena. Esse era o "espírito" pentecostal da classe trabalhadora —o da solidariedade.

E, embora em meio a muitas contradições, esse espírito é parte da memória coletiva de muitos irmãos e irmãs da classe trabalhadora, assim como de seus filhos e filhas que, pelas políticas públicas recentes, passaram a ser os primeiros da família a entrar no ensino superior, quebrando esse ciclo de marginalização generificada e racializada.

Nas décadas de 1990 e 2000, o pentecostalismo tomou contornos diferentes, com forte "investimento evangelístico" para divulgação e implementação das Teologias da Prosperidade e do Domínio, da Marcha para Jesus, com slogans como "Tudo é do senhor Jesus", "Precisamos ocupar a política", "Crente vota em crente" e tantas outras ideias de dominação, advindas de investimentos evangelísticos estadunidenses e que logo foram se apresentando totalmente contrárias à prática evangélica vivenciada por tantos.

O que se percebe hoje é muito investimento (muito dinheiro mesmo) no pânico moral, que divide famílias, invade grupos de "zap", rompe amizades, sobe nos púlpitos e esvazia igrejas.

No entanto, as grandes lideranças políticas-religiosas-midiáticas não controlam, como gostariam, os votos dos e das fiéis de suas igrejas. Há resistências, porque muitas mulheres, mães, e vós Luzias não se deixam enganar. Elas sabem o que está por trás disso, e sabem porque vivenciam outras realidades.

Não se trata de justificar o injustificável. Em toda sociedade há quem se identifica com discursos e práticas de ódio e violência. Mas é preciso pontuar que, entretanto, ainda existe entre os evangélicos muita solidariedade, amor, vontade de viver —e de viver bem, com abundância e justiça social. Aliás, para os cristãos, essa foi a promessa do próprio Jesus: vida em abundância.

A maioria das igrejas evangélicas é composta de mulheres empobrecidas e negras, o que se conecta com nosso eleitorado brasileiro, que é composto de 52,7% de mulheres. Por isso, não haverá transformação social sem as mulheres, religiosas ou não.

O movimento de Mulheres EIG (Evangélicas pela Igualdade de Gênero) tem conseguido proporcionar e acompanhar algumas trincas e rachaduras nesse sistema de poder: o que chamamos de santa desobediência!

Nós não votaremos pelas armas. Nós somos o Brasil de "joelho no chão e louvores nos lábios". Resiliência pela fé, por comida, emprego, vaga na creche, filhos na faculdade, saúde, e um lar sem violências. Algum desses desejos é diferente dos seus?

Então não há cidadão de segunda classe, o que há é o desconhecimento de que a religião não pode ser apartada de outras áreas das nossas vidas.

Encerro desejando que, um dia, todas as pessoas façam parte da construção, da promoção e da proteção do bem comum, princípio que guia a maioria das religiões, porque o amor é sagrado, e o ódio e a violência são profanos.


Valéria Vilhena

É teóloga, trabalhadora, evangélica pentecostal, mãe e pesquisadora de questões de gênero-religião-violência. Fundadora da Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero

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