Desde o início da campanha eleitoral, temos visto, por um lado, uma disputa pelo "voto evangélico" —visto como determinante para a vitória de um ou outro candidato— e, por outro, um tratamento dos evangélicos como se fossem um bloco único, formado por pessoas ignorantes e fanáticas, massa de manobra de pastores inescrupulosos.
Nesse momento, é importante perguntar: que tipo de aproximação se pretende ao tratá-los como cidadãos de segunda classe? Além disso, não seria isso culpabilizar quem ficou por tanto tempo abandonado pelo Estado, sendo alvo e fruto de uma comunicação de (des)informação e (des)educação?
Para entender de quem estamos falando quando falamos dos evangélicos, é preciso contextualizar a expansão cristã evangélica de nosso tempo, que tem muito a ver com o crescimento de suas vertentes pentecostal e neopentecostal —mas não só, afinal de contas, somos todas, todes e todos frutos de uma colonização-exploratória-escravocrata-patriarcal-racista-cristã.
Mas, quando falamos de pentecostalismo, estamos tratando daquela mensagem que, no início do século 20, foi difundida especialmente por uma mulher, Frida Maria Strandberg, e sua atuação sensível, pensante e pulsante, que propiciou a muitas mulheres negras e afroindígenas se tornarem protagonistas religiosas.
Tratava-se de pessoas empobrecidas pregando para outras tão empobrecidas quanto elas. Nada a ver com as lideranças mercenárias da contemporaneidade. Dentre muitas contradições, era o alívio que essa gente cansada, explorada, sofrida, violada em sua dignidade, proporcionava e recebia.
Já na segunda metade do século passado, com a ditadura militar no Brasil, ocorreu significativo crescimento das igrejas Assembleias de Deus (a primeira e ainda a maior igreja pentecostal do Brasil), e as igrejas e suas lideranças começam a prosperar materialmente, embora os fiéis permanecessem empobrecidos e explorados. Mas as igrejas pentecostais continuaram a ser espaços seguros de acolhimento, ajuda mútua, de irmandade para muita gente, e também para as novas gerações.
Eu sou fruto desse movimento. Nasci em 1971, em ambiente evangélico pentecostal nutrido de piedade e de misericórdia, inclusive para com os encarcerados. Bandido bom não era bandido morto. E a fome entre os irmãos e irmãs pentecostais era tratada com muita seriedade e urgência. Era economia da vida, sobrevivência pela prática da partilha, do pobre ajudando o pobre.
Cresci nesse "berço pentecostal". Meu pai era um dos poucos irmãos que tinha carro. O automóvel era velho, mas prestava "para servir ao Senhor", dizia ele, levando os irmãos e as irmãs necessitados para o hospital ou entregando alimentos na casa de quem tinha fome.
Lembro-me também da avó da igreja, a irmã Luzia. Fazia o papel da mãe e da sogra que minha mãe não tinha. Era uma mulher indígena casada com um homem negro, com quem tinha muitos filhos. Ela ajudava e era ajudada nessa rede de apoio, carinho e cuidado recebidos em nossa comunidade de fé. Enquanto cuidava dos doentes com seus remédios de ervas engarrafadas, em nossa casa ela nos ensinava músicas e danças de sua cultura indígena. Esse era o "espírito" pentecostal da classe trabalhadora —o da solidariedade.
E, embora em meio a muitas contradições, esse espírito é parte da memória coletiva de muitos irmãos e irmãs da classe trabalhadora, assim como de seus filhos e filhas que, pelas políticas públicas recentes, passaram a ser os primeiros da família a entrar no ensino superior, quebrando esse ciclo de marginalização generificada e racializada.
Nas décadas de 1990 e 2000, o pentecostalismo tomou contornos diferentes, com forte "investimento evangelístico" para divulgação e implementação das Teologias da Prosperidade e do Domínio, da Marcha para Jesus, com slogans como "Tudo é do senhor Jesus", "Precisamos ocupar a política", "Crente vota em crente" e tantas outras ideias de dominação, advindas de investimentos evangelísticos estadunidenses e que logo foram se apresentando totalmente contrárias à prática evangélica vivenciada por tantos.
O que se percebe hoje é muito investimento (muito dinheiro mesmo) no pânico moral, que divide famílias, invade grupos de "zap", rompe amizades, sobe nos púlpitos e esvazia igrejas.
No entanto, as grandes lideranças políticas-religiosas-midiáticas não controlam, como gostariam, os votos dos e das fiéis de suas igrejas. Há resistências, porque muitas mulheres, mães, e vós Luzias não se deixam enganar. Elas sabem o que está por trás disso, e sabem porque vivenciam outras realidades.
Não se trata de justificar o injustificável. Em toda sociedade há quem se identifica com discursos e práticas de ódio e violência. Mas é preciso pontuar que, entretanto, ainda existe entre os evangélicos muita solidariedade, amor, vontade de viver —e de viver bem, com abundância e justiça social. Aliás, para os cristãos, essa foi a promessa do próprio Jesus: vida em abundância.
A maioria das igrejas evangélicas é composta de mulheres empobrecidas e negras, o que se conecta com nosso eleitorado brasileiro, que é composto de 52,7% de mulheres. Por isso, não haverá transformação social sem as mulheres, religiosas ou não.
O movimento de Mulheres EIG (Evangélicas pela Igualdade de Gênero) tem conseguido proporcionar e acompanhar algumas trincas e rachaduras nesse sistema de poder: o que chamamos de santa desobediência!
Nós não votaremos pelas armas. Nós somos o Brasil de "joelho no chão e louvores nos lábios". Resiliência pela fé, por comida, emprego, vaga na creche, filhos na faculdade, saúde, e um lar sem violências. Algum desses desejos é diferente dos seus?
Então não há cidadão de segunda classe, o que há é o desconhecimento de que a religião não pode ser apartada de outras áreas das nossas vidas.
Encerro desejando que, um dia, todas as pessoas façam parte da construção, da promoção e da proteção do bem comum, princípio que guia a maioria das religiões, porque o amor é sagrado, e o ódio e a violência são profanos.
Valéria Vilhena
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