sexta-feira, 28 de outubro de 2022

João Pereira Coutinho Nos cem anos da Marcha sobre Roma, vale lembrar por que o fascismo triunfou, FSP

 Matar uma democracia? É mais fácil do que parece. Olhando para o calendário, vejo que hoje é dia 28 de outubro. Data funesta na história da democracia. Há precisamente cem anos, os fascistas marchavam sobre Roma e levavam Benito Mussolini ao poder.

Existem bibliotecas inteiras que explicam o sucesso dos camisas-negras. Quase todas confluem na experiência trágica da Primeira Guerra Mundial, que matou 600 mil italianos e provocou 1 milhão de feridos.

Reprodução mostra a marcha de fascistas em Roma liderados por Benito Mussolini em 1922 - Reprodução

É um fato que a guerra dividiu as águas —literalmente: entre militaristas e "derrotistas"—, mas o ovo da serpente é anterior. Talvez remonte à própria unificação da Itália, em 1870, e à incapacidade do sistema político "liberal" de garantir um mínimo de estabilidade e prosperidade ao país.

Sobre a estabilidade, a Itália do "trasformismo" (uma espécie de centrão à brasileira, em que as diferentes facções se aliavam e se atraiçoavam por meros interesses particulares) produziu 29 primeiros-ministros entre 1870 e 1922.

Sobre a prosperidade, ela teve vida curta depois da unificação: a partir de inícios da década de 1890, o país viveu em estado de crise permanente, agravado pelas aventuras militares africanas na Eritreia e na Abissínia, onde os italianos foram humilhados por povos alegadamente "primitivos".

Quando a Primeira Guerra Mundial chegou, o país entendeu que a neutralidade era do seu interesse, apesar de fazer parte da Tríplice Aliança com a Alemanha e a Áustria-Hungria.

Mas a promessa fátua (e, como depois se viu, infundada) de que a vitória da Tríplice Entente garantiria à Itália um lugar privilegiado na mesa dos despojos, levou Roma a alinhar com a França, a Rússia e o Reino Unido a partir de 1915.

A guerra dividiu a Itália ao meio e, sobretudo depois da Revolução Russa de 1917, exportou para o país um clima de guerra civil entre a esquerda socialista e revolucionária, contrária à guerra, e o nacionalismo extremo que repudiava o "derrotismo" dos vermelhos e desprezava com igual hostilidade a fraqueza do liberalismo para travá-los.

Quando a paz chegou, e a vitória italiana se mostrou mais "mutilada" do que os nacionalistas imaginavam (os ganhos territoriais foram modestos na Conferência de Paz, em Paris), entrou em cena o elemento mais importante da ascensão do fascismo: a violência.

É essa história de violência que John Foot relata no melhor livro que li este ano sobre a efeméride que hoje se relembra —"Blood and Power: The Rise and Fall of Italian Fascism" (Bloomsbury, 432 págs.), ou sangue e poder, a ascensão e queda do fascismo italiano.

Tese de Foot: podemos explicar o fascismo por múltiplas causas; mas sem a violência que os camisas-negras espalharam pelo país (o "squadrismo"), jamais Mussolini teria chegado ao poder.

Difícil discordar: nas eleições de 1919, Mussolini era um caso de fracasso total. Os socialistas, pelo contrário, elegiam 156 deputados e tinham mais 1 milhão de votos do que em 1913.

Era preciso mudar de estratégia e, citando uma canção da gangue, confiar que "manganello, manganello, tu rischiari ogni cervello" —ou, bastão, bastão, você endireita todo cérebro.

Assim foi —e John Foot vai descrevendo, com pormenores, o modus operandi dos criminosos, que viajavam de caminhão pelo país e assaltavam, espancavam e matavam os opositores com ferocidade.

Pormenor importante: com ferocidade e impunidade, ante a complacência (e a cumplicidade) das autoridades do Estado.

Só entre março e maio de 1921, segundo o jornal italiano Corriere della Sera, havia 195 socialistas mortos e 774 feridos nesses assaltos; entre os fascistas, 64 e 226, respectivamente.

O objetivo da violência era aterrorizar, sem dúvida; mas era também obrigar o poder local, democraticamente eleito, a se retirar do palco.

De Bolonha a Bari, de Milão a Trento, de Nápoles a Ravenna, a democracia caía como se fossem peças de dominó sob os golpes do "squadrismo".

Quando Cremona elegeu os seus 40 conselheiros para a administração provincial, Roberto Farinacci, fascista célebre, apresentou-se como o 41º conselheiro. Quando lhe perguntaram quem o elegera, a resposta de Farinacci ficou célebre e resume o espírito do tempo: "Fui eu que me elegi a mim próprio". Ele e, claro, o bastão.

Que continuou sendo usado até dentro do próprio parlamento, quando os fascistas conseguiram eleger os seus primeiros 35 deputados nas eleições de 1921.

A democracia estava moribunda e ninguém, nem mesmo o rei, teve um gesto para salvá-la. Como defende John Foot, a Marcha sobre Roma foi, tão só, a conclusão lógica desse processo de assalto e decadência interna da democracia italiana.

O fascismo triunfou há cem anos. Foi derrotado há 77. Definitivamente?

Definitivamente é muito tempo: se é certo que o fascismo italiano só pode ser compreendido no contexto da Primeira Guerra Mundial e das suas consequências, existe uma atitude "fascizante" que continua a encantar certos discípulos.

E que emerge, sazonalmente, com seus temas prediletos: o desprezo pela lei e pela legitimidade eleitoral; o culto da violência; a repulsa pelas formalidades do Estado de Direito; o uso sistemático da mentira e da propaganda; o endeusamento do irracionalismo, da pátria e do sangue.

Mas a principal lição que retiramos do livro de John Foot, e da data trágica que agora se relembra, é que o triunfo do fascismo só foi possível pela desistência dos democratas.

Por medo, conveniência ou simples incapacidade para imaginar o desastre, foram eles que entregam o ouro ao bandido.


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