O absurdo contemporâneo tem várias razões de ser: a eleição de um presidente com tentações autocráticas; a mistura de religião, negócios e política; o negacionismo; as fake news; a polarização; e a militarização da política. Estes são apenas alguns dos ingredientes que engrossam o caldo da estupidez golpista prometida para o 7 de Setembro.
Ocorre que outros elementos menos detectáveis contribuíram para a deterioração da esfera pública brasileira. O mais importante deles é a adesão de parcela da intelectualidade jurídica ao espectro golpista.
Bernd Rüthers e Michael Stolleis, juristas estudiosos do nacional-socialismo, demonstraram que só foi possível transformar o direito alemão num instrumento de atuação política do regime nazista por meio do apoio intenso dos intelectuais e juristas. A esse fenômeno, deu-se o nome de direito degenerado.
Duas perspectivas são ilustrativas dessa deterioração do pensamento jurídico no Brasil. A primeira é o ataque, por meio de fake news, a decisões do Supremo Tribunal Federal. A segunda é a defesa de uma nova Constituinte, acompanhada da interpretação “terraplanista” do artigo 142 da Constituição Federal.
Parte dos nossos juristas insiste em afirmar que a decisão da Adin (ação direta de inconstitucionalidade) 6.341 teria cortado poderes do presidente da República e o impedido de gerir a pandemia. Isso é mentira. O STF não restringiu qualquer prerrogativa do Poder Executivo; apenas declarou algo que já existe desde 1988: a competência concorrente entre municípios, estados e União.
Outra contribuição problemática da intelectualidade jurista-golpista diz respeito ao inquérito das fake news. Críticas teóricas e técnicas são sempre bem-vindas para o aperfeiçoamento das instituições. Contudo, qualificá-lo como “inquérito do fim do mundo” ou dizer que nele o STF investiga, acusa e julga ao mesmo tempo é uma falácia.
Contribuem para o movimento de vilanização do Supremo, ao serem deixados de lado, os seguintes fatos: inquéritos como esse têm previsão no regimento interno do STF; o inquérito das fake news foi referendado pelo plenário da corte, por 10 de 11 votos; e o Supremo, obviamente, nunca fez uma acusação penal, que é de competência privativa do Ministério Público.
Contudo, a contribuição máxima do pensamento jurídico para o golpismo está refletida na proposta de nova Constituinte. Já que todos os nossos problemas atuais surgiram da Constituição de 1988, bastaria fazer um “reboot” do passado. Que conservadores defendam essa “saída” é incompreensível.
A ela se soma a interpretação degenerada do artigo 142, que ressuscitou a noção de poder moderador a ser exercido pelas Forças Armadas. Além de impensável, a proposta é ainda mais grave por considerar que Exército, Marinha e Aeronáutica poderiam ser instrumentalizados para ameaçar e conter supostos excessos dos outros Poderes, em especial do Judiciário (STF), que é o maior freio democrático contra o golpismo contemporâneo brasileiro.
Esses exemplos ilustram como o golpismo não surge e se estrutura apenas pela reunião de boçais ou pela circulação de fake news. Ele adquire legitimidade pela manifestação de intelectuais degenerados.
No caso, juristas que interpretam o artigo 142 de modo a permitir a intervenção militar “constitucional” e divulgam falácias sobre o que decidiu o Supremo Tribunal Federal.
O respeito à Constituição não é exigido porque ela seja perfeita ou imaculada, mas porque ela ainda é —assim esperamos— um importante marco no processo civilizatório brasileiro. Em face do ambiente de polarização extrema e virulenta, recrudescida pelas plataformas sociais e aliada à glorificação do populismo mais parvo, os rompantes autocráticos que seguirão representam um convite para a crise total e permanente do país.
Identificar e refutar pensamentos golpistas são tarefas de todo democrata, pois, como já ensinou Emil Cioran, se as categorias intelectuais não puderem ser assentadas no edifício do pensamento, somente nos restará o travesseiro do caos.
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