quinta-feira, 5 de agosto de 2021

De filho para mãe, editorial FSP

 Rompimentos e traições, assim como alianças e reaproximações, estão na essência do jogo da política. Não obstante, políticos têm pesadelos com a possibilidade de serem apunhalados pelas costas por correligionários que um dia apoiaram e elevaram a cargos mais altos.

Michel Temer (MDB) não foi fiel à presidente Dilma Rousseff (PT), de quem era vice. João Doria demonstrou pouca gratidão a Geraldo Alckmin, seu padrinho político no PSDB. Exemplos não faltam.

Na utopia dos políticos, eles só trariam para seu entorno pessoas cuja possibilidade de traí-los fosse zero, especialmente em cargos cuja incumbência seja a de substituí-los. No mundo real, é difícil.

Um candidato a presidente, governador ou prefeito precisa convidar para a chapa um vice que traga votos ou, ao menos, reduza resistências, o que invariavelmente resulta num copostulante com uma agenda política diferente da sua —isto é, um potencial traidor.

Existe, contudo, uma espécie de Shangri-La em que se podem indicar para vice apenas pessoas de extrema confiança: o Senado. Como ninguém presta maior atenção a quem são os suplentes dos candidatos a senador, os cabeças de chapa sentem-se livres para chamar quem bem desejarem.

Essa situação ficou escancarada com a ida de Ciro Nogueira (PP-PI) para a Casa Civil. Ocupará sua cadeira no Senado ninguém menos que sua mãe, Eliane Nogueira. Chamar a mãe para suplente constitui provavelmente o que de mais perto existe de um seguro antitraição.

Do ponto de vista do interesse público, contudo, a existência de suplentes de senador não é uma ideia feliz do constituinte. Pode-se argumentar que o problema está em eleitores e imprensa, que não dão o devido destaque a esses cargos, mas o fato é que estamos diante de um déficit democrático.

Pessoas que passam quase escondidas pelo escrutínio do voto são com alguma frequência convocadas a exercer temporária ou definitivamente mandatos na Câmara Alta do Parlamento.

Há meios de enfrentar o problema. Nos menos intervencionistas, apenas se proibiria que cônjuges e parentes se tornassem suplentes.

Numa saída mais radical, o próprio cargo poderia ser extinto —e, havendo impedimento do titular, uma nova eleição seria convocada, definindo-se um substituto temporário. Qualquer que seja o remédio, o caso de Ciro Nogueira demonstra que o tema merece debate.

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