Quem estiver no estado de São Paulo e se pegar olhando, no meio de uma praça, uma estátua em bronze de uma figura humana que mira o horizonte, de cerca de três metros, provavelmente verá um bandeirante.
O personagem foi usado na primeira metade do século 19 para construir a memória da cidade como origem e ideal de progresso.
Mas parte da população enxerga nesses monumentos uma série de violências cometidas desde 1500 contra, sobretudo, povos indígenas e a população negra.
Com o crescente questionamento em países como EUA, Bélgica e Reino Unido a respeito de estátuas que exaltam líderes coloniais ou escravocratas, o eco dessas manifestações pela retirada ou ressignificação de tais símbolos começa a ganhar volume no Brasil, sobretudo em redes sociais, mas não só.
“Os bandeirantes foram os piores dos jurua kuery, dos não indígenas, que massacraram os povos indígenas, escravizaram nossos povos. E hoje a gente vê esse símbolo de herói”, diz Thiago Karai, liderança Guarani da terra indígena (TI) Tenondé Porã, na zona Sul da capital, e membro da Comissão Guarani Yvyrupa.
“São exemplos da construção de uma narrativa que consagra e enaltece a colonização branca no desenvolvimento paulista, forjada na opressão e extermínio dos povos negros e indígenas”, diz Cláudia Adão, pesquisadora da articulação do racismo com o espaço urbano.
Em São Paulo, a construção do bandeirante herói se deu sobretudo pela celebração do quarto centenário, na criação de uma história de bravura e oposição à coroa portuguesa, que passa pela Revolução Constituinte (também bastante homenageada).
“Um bom monumento é o que foi feito para algum dia ser derrubado, porque ele provoca um modo de contar uma certa história. Ele fica eternizado, ultrapassa o tempo de sua construção e se projeta para novas interpretações, e os novos tempos repousam novos olhares e novos questionamento sobre ele”, afirma o antropólogo e curador Hélio Menezes.
Em São Paulo há uma série destes monumentos ambíguos, que representam triunfos mas também mortes. São bandeirantes como Manuel de Borba Gato e Anhanguera (codinome em tupi de Bartolomeu Bueno da Silva, que significa "diabo velho"), ou militares como Luís Alves de Lima e Silva ou Duque de Caxias, líder das tropas brasileiras na Guerra do Paraguai.
Há ainda os navegadores europeus como Colombo e o português Pedro Álvares Cabral, cuja chegada ao Brasil deu início ao morticínio da população indígena no país.
“Tem uma série destes homens que são nomes de ruas”, diz João Priolli, professor de história do Colégio Equipe.
Há nesse rol monumentos de valor artístico reconhecido e nuances mais sutis, como o Monumento às Bandeiras, esculpido por Victor Brecheret (1894-1955), que sem um personagem específico ilustra índios e negros empurrando um ideal de progresso liderado por homens brancos. Não é raro, entretanto, quem leia a escultura como um símbolo dos povos que forjaram a cidade.
Priolli e o professor de artes Gilberto Mariotti iniciaram um projeto de incursão pela capital paulista, junto com a elaboração de um mapa para identificar essas homenagens e ressignificá-las no imaginário dos estudantes.
Não há unanimidade a respeito da melhor forma de tratar os monumentos, e muitos veem no movimento pela derrubada uma tentativa revisionista simplista. O jornalista e historiador Laurentino Gomes afirmou, em redes sociais, que as estátuas deveriam ser usadas para reflexão, e não extirpadas.
"Sou contra. Estátuas, prédios, palácios e outros monumentos são parte do patrimônio histórico. Devem ser preservados como objetos de estudo e reflexão", escreveu. "A atual estátua de Borba Gato no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, é feia que dói. Ainda assim, deve lá ficar. As pessoas devem saber quem foi o personagem e como foi parar no panteão dos heróis nacionais."
Priolli e Mariotti lembram que o sumiço de estátuas não é novidade em São Paulo, cuja história, afirmam, é de apagamento. Ilustra este movimento, por exemplo, a estátua de Ramos de Azevedo: construída na avenida Tiradentes, foi retirada de lá para o metrô poder passar.
“O monumento representava para a elite que o comissionou justamente o progresso. Quando o progresso chega, o primeiro que dança é o monumento”, explica Mariotti.
Outros símbolos somem sem rastro. Cláudia Adão cita o bairro do Bixiga, que concentrava jornais e associações negras; a praça da Liberdade era chamada de Largo da Forca, local de condenação, morte e enterro de escravos; o viaduto do Pacaembu correspondia ao Largo da Banana, onde negros aguardavam a chegada do trem e, nesta espera, jogavam capoeira, tiririca e faziam música, sendo um dos berços do samba paulista.
Como todas que foram controladas pela coroa portuguesa, a cidade tinha seu pelourinho onde hoje é o Fórum João Mendes, ao lado da praça da Sé e do Largo São Francisco.
Para Pedro Alves, “São Paulo tem a história feita em camadas de concreto, passando e apagando”. Ele conduz o projeto Cartografia Negra, junto com Carolina Piai e Raissa Albano de Oliveira.
Antes da pandemia, eles realizavam a passeios pelo centro da cidade para contar a história desses locais e também passar por estátuas como a de Luiz Gama, referência negra do movimento pelo fim da escravidão, ou de Zumbi dos Palmares.
O projeto nasceu da inquietação de não se reconhecer no centro de São Paulo e de se perguntar qual o lugar do negro na narrativa paulista. “O que eu quero representar quando coloco um homem branco, essa figura de bota, colete? É tudo uma criação. Bandeirantes eram genocidas, assassinos e capturavam pessoas para serem escravizados, povos originários ou negros fugidos”, contesta Oliveira.
O grupo defende a derrubada das estátuas como processo de afirmação de uma história plural e de inserção da narrativa negra e indígena.
“Por que estamos pensando em onde vai colocar a estátua do Borba Gato se a gente não pensa no Chafariz do Tebas? [o primeiro da cidade, projetado por um engenheiro negro, desmontado e esquecido]”, indaga Piai.
A figura de Borba Gato, no bairro de Santo Amaro, é agora vigiada 24 horas por dia após os acontecimentos fora do Brasil.
“É muito importante lembrar que a queda de monumentos sempre fez parte de contextos de contestação, e a queda de alguns monumentos abriu espaços a algumas das mais lindas praças do mundo, como praça Van Vendôme, em Paris”, explica Hélio Menezes.
O curador defende, ainda, que caso haja um valor artístico na obra, ela seja deslocada a um museu e apresentada com a devida contextualização, para que não haja um desserviço historiográfico.
Segundo Karai, os Guarani, dos quais parte vive hoje em espaços como o da TI Jaraguá (ilhado justamente entre as rodovias Bandeirantes e Anhanguera), não reivindicam a criação de monumentos na capital, mas pequenas terras do que foi um extenso território por onde circulavam e que abrangia também Bolívia, Paraguai e Uruguai.
Mariotti afirma que o próprio uso do suporte de estátuas para homenagens é um conceito eurocêntrico. Para os indígenas, por exemplo, a ideia não faz sentido uma vez que sua identificação se dá com a terra, não com ícones.
“A gente chama de yvyrupa, que é nosso território, mas também podemos traduzir como planeta”, diz Karai. “Como a gente faz estátuas de uma resistência? Para os jurua kuery [não indígena] é tudo símbolo. E para a gente, nossa cultura é vivida na prática, a gente chama nhandereko, é a nossa maneira de ser com a gente é”.
Em todo caso, a figura de Borba Gato, cravada no bairro de Santo Amaro e a mais vilipendiada no debate, é agora vigiada 24 horas por dia após os acontecimentos fora do Brasil.
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