Lugar de encontro e das celebrações sociais, os restaurantes enfrentam a maior crise da história com o novo coronavírus. E tentam encontrar receitas para sobreviver a ele
Em plena avenida São João, no centro de São Paulo, a fachada amarela e laranja em estilo grafiatto, toldo vermelho com os dizeres “churrascaria e lanches”, era velha conhecida para muitos que sabiam que, na verdade, ela escondia um dos melhores pucheros da cidade — o cozido espanhol feito com carnes, frango e grão-de-bico.
O que nem todos seus frequentadores talvez já saibam é que a porta de ferro fechada desde o começo da pandemia do novo coronavírus não vai mais reabrir. Desde 1970, quando foi inaugurado na região, o PASV nunca deixou de funcionar. Mas os atuais sócios, que se dedicaram a vida toda ao restaurante cinquentenário, e que por isso já pensavam no futuro do restaurante, ponderam não conseguir manter o espaço e frente a um cenário tão incerto como o que está a se formar. O coronavírus antecipou a decisão.
O fechamento do PASV é símbolo do que pode ser uma nova era pouco otimista para os restaurantes no mundo todo. E não só apenas os tradicionais, mais familiares. Dos negócios independentes aos grandes grupos, a recessão deve afetar todo esse mercado. Na Dinamarca, o grupo Kadeau, dono de um restaurante com duas estrelas Michelin em Copenhague, entrou com pedido de falência em abril. “Tivemos que jogar a toalha”, confessou o presidente do grupo, Magnus Klein Kofœd, ao jornal local Finans.
A crise sanitária que se espalhou pelo planeta contaminou o setor da restauração de forma inédita. E implacável. Isso porque restaurantes vivem da interação social, algo que o vírus ceifou com a imposição global de quarentenas e lockdowns — essas palavras já tão habituais ao nosso vocabulário.
Um relatório global da JP Morgan mostra que restaurantes e bares são os negócios mais afetados: eles conseguem sobreviver apenas 16 dias sem funcionar, segundo os cálculos da consultoria. Na esmagadora maioria dos países, muitos já estenderam esses prazos em algumas semanas, quiçá meses.
Diante disso, empresários e cozinheiros no mundo todo pressionam seus governos por medidas para salvar a área — que, no Brasil, emprega 6 milhões de pessoas. Por aqui, um grupo de mais de 300 influentes chefs e donos de restaurantes de diversas partes do país se articulou para cobrar do poder público medidas como isenções fiscais, créditos e alívio de dívidas.
Nomes como Jefferson e Janaína Rueda (Bar da Dona Onça / A Casa do Porco), Rafa Costa e Silva (Lasai), Roberta Sudbrack (Sud / Arp), Alex Atala (D.O.M. / Dalva & Dito), Claude e Thomas Troisgros (Chez Claude / Olympe) criaram ações coordenadas nas redes sociais para dar mais voz às suas exigências, que foram (ao menos parcialmente) atendidas, especialmente com a chamada MP dos salários, que liberou mais de 51 milhões em auxílios a empresas e foi capitaneada pelo setor de bares e restaurantes. “Mas ainda não é suficiente”, diz Janaína, uma das organizadoras do grupo. “Precisamos, pelo menos, de uma prorrogação da MP, para mantermos os empregos”, ela diz sobre a medida que atualmente está programada para ir até o final de junho.
Enquanto outros pacotes não vêm, os empresários estão colocando sua criatividade à prova para conseguirem alguma receita para pagar ao menos as contas fixas (como aluguel, água, luz), evitar calotes a fornecedores e manter a folha de pagamento. Frente à urgência do momento, deliveries, serviços de takeaway, kits de refeições, cestas de produtos e até lives no Instagram (elas, de novo!) se tornaram medidas paliativas para uma mazela que deve se estender até muito depois que os restaurantes possam abrir.
Em meados de maio, o chef Benny Novak e o sócio Renato Ades iniciaram o delivery de seu restaurante italiano, o Tappo Trattoria, em São Paulo, como uma maneira de ter alguma entrada de dinheiro depois de permanecer semanas fechado. “Estudamos a viabilidade e chegamos à conclusão que valeria a pena investir no formato”, conta Novak, um dos integrantes do grupo dos mais de 300 chefs.
“Estamos buscando aliviar custos, fazendo acordos com fornecedores e proprietários dos imóveis e fortalecendo o caixa para que possamos sobreviver a essa crise absurda”, afirma. No começo de junho, o ICI Bistrô, seu restaurante francês aberto há uma década no Itaim Bibi, também deve seguir o mesmo caminho. “Acho que a partir do segundo mês conseguiremos eliminar nossos débitos anteriores e termos um olhar um pouco mais aliviado”, acredita.
O chef paulistano Luiz Filipe Souza têm se desdobrado para manter os negócios nesses tempos incertos. Além do Evvai, seu premiado restaurante nos Jardins, em São Paulo, ele recentemente abriu um espaço de rotisseria e mercado de pequenos produtores, criou uma operação digital de venda de cookies, a Blue Cookie, (cujo lucro é destinado para a caixinha dos funcionários, que ficaram sem gorjetas) e ainda adotou vendas de vouchers e camisetas para adiantamento do caixa. Não fosse o suficiente, ainda antecipou a abertura de sua pizzaria, a Evvita, que estava prevista para inaugurar só nos próximos meses, mas que abriu “sem os acabamentos” para atender apenas delivery por hora.
“Eu nunca consegui me acomodar com limitações. Nesse período tive que me desapegar de alguns dogmas para poder sobreviver”, conta. A adaptação ao delivery é difícil, segundo ele, porque um restaurante pressupõe, sobretudo, experiência. “A comida representa no máximo 30%, o resto é serviço, ambiente, vinho, música”, afirma.
Desde o primeiro dia do delivery do Evvai, ele diz que iniciou um intenso planejamento das possibilidades para comida mais “comfort”, como diz, e que coubesse no bolso dos clientes, mas sem que ferisse seus valores, e mantivesse os conceitos. “A maior dificuldade hoje é ‘entregar hospitalidade’”, diz. Nas caixas e embalagens, os chefs estão nus: não há hype, prêmios; só a comida.
Apesar de todo o trabalho, Luiz Filipe diz que o retorno financeiro tem sido desproporcional. “A estrutura de um negócio como esse é pesada, e nesse contexto os valores médios caem muito”, diz ele, que afirma que a queda de receita está em torno de 60%. Em geral, deliveries e refeições para viagem costumam representar no máximo 30% do faturamento normal de um restaurante com esse serviço consolidado, segundo dados da James Beard Foundation, nos EUA. Mas há casos bem sucedidos mesmo diante de um cenário tão negativo.
Aposta no conforto
Em Chicago, o grupo Alinea, que possui seis empreendimentos, entre eles o único 3 estrelas Michelin da cidade, agiu rápido para entregar comida aos seus clientes em casa. Um dos pioneiros da alta cozinha a se adaptar para o delivery, o grupo criou uma operação específica para o formato que inclui pratos de 35 dólares (10% do valor cobrado no restaurante homônimo) apostando em comidas afetivas, como cassoulet e filé Wellington. Foi um sucesso: chegaram a ter mais de mil entregas em um domingo e lucros polpudos no final do mês.
“O isolamento inimaginável e o medo do desconhecido gerado pela Covid-19 estão levando os consumidores a buscar conforto em alimentos mais familiares”, diz um relatório sobre os comportamentos sociais na pandemia da consultoria Mintel. Muitos restaurantes passaram a focar em refeições mais “caseiras” para aplacar esse afeto de comida de mãe que a pandemia tirou de nós.
O chef carioca Felipe Bronze criou uma nova operação especial durante o período, batizada de Marmipipo, com receitas comfort e mais acessíveis, como feijoada e moqueca, para entrega por aplicativo. Dono do Pipo, em São Paulo, e do Oro, no Rio de Janeiro, ele diz que já vinha tateando o mercado digital— a ideia das marmitas foi uma resposta rápida ao confinamento.
“Já estávamos de olho antes da Covid-19, mas a pandemia acelerou as coisas”, afirma. Bronze diz que vê o digital como um campo de livre experimentação. “Do lado do restaurante, é um universo que permite agilidade. Podemos ‘matar’ uma ideia sem prejuízo significativo. No mundo físico, o investimento é enorme, você fica preso a um conceito que pode ou não dar certo”, afirma.
Caso não dê, o empresário precisa fazer adaptações que levam tempo e dinheiro: trocar decoração, móveis, louças… Repensar e reestruturar as coisas. É um pouco o que o chef está vivendo com o Oro, que se encontra em “compasso de espera” com a pandemia. Bronze conta que está desenhando cenários para uma eventual volta, mas consciente que ela será lenta e difícil. “Provavelmente voltaremos menores”, acredita.
Deve ser sua resposta para se adaptar a um setor que pelos próximos meses poderá ser muito diferente de como o conhecíamos. Pela questão de isolamento, menos pessoas poderão ser servidas. Na Europa e na Ásia, onde restaurantes já voltaram a abrir, as regras de distanciamento impuseram uma quebra considerável de clientes — também pelo fato que, justamente por conta delas, muita gente ainda se sente insegura de sair para comer.
“Acho que receber em casa pequenos grupos de amigos será o primeiro grande passo pós-Covid. E se as pessoas estarão em casa, iremos até elas”, garante Bronze. Sem turismo, sem dinheiro circulando e com o perigo constante da doença, ele acredita que o mercado pode implodir. A Abrasel (Associação Brasileira de Bares e restaurantes) prevê que os restaurantes terão prejuízos nos próximos três ou quatro meses, e pelo menos um em cada cinco fecharão as portas em um futuro próximo.
Por outro lado, isso pode criar novas perspectivas no mercado de alimentação, que tende a evoluir diante de tantas mudanças e provações. Apesar dos tempos difíceis à frente, o chef acredita que isso pode “dar uma situada” no segmento.
“Pode ser uma boa prova de adaptação. Mais gente entregando em casa por um preço menor, e a experiência em restaurantes para menos pessoas dispostas a gastar um pouco mais.” Ao menos nesse primeiro momento, até que uma resposta mais definitiva à pandemia surja no panorama e os restaurantes voltem a ser o que sempre foram: os lugares para exercitarmos toda a nossa sociabilidade em torno da mesa.
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