quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Verdades e meias verdades sobre nossa Corte Suprema, OESP

Morris Kachani
14 de novembro de 2019 | 18h22

Não seria uma distorção o STF mudar de posição sobre uma mesma matéria por 3 vezes em um espaço de 11 anos? Em que medida isso reforça um ambiente de insegurança jurídica? Quem controla os excessos do STF? Aliás, que excessos o STF comete? O que esperar desta crise de desprestígio da Corte Suprema, em um cenário de polarização e esgarçamento das instituições democráticas?
Tomando emprestado um pedaço da célebre frase de Blaise Pascal – especialmente para quem é leigo nas letras jurídicas -, às vezes parece que não só o coração, mas também o STF, tem “razões que a própria razão desconhece’.
Decidimos assim, eu e meu colega Flavio Azm Rassekh, entrevistar separadamente os juristas Wálter Maierovitch e Fábio Konder Comparato, e conhecer suas visões distintas a respeito do julgamento sobre a segunda instância.
Wálter, 72 anos, é professor de Direito, desembargador de carreira e aposentado. Preside o Instituto Brasileiro Giovanni Falcone de Ciências Criminais. Pela luta antimáfia, foi condecorado, pelo presidente da República da Itália, com o título de Cavaliere della Repubblica italiana.
Fábio é doutorado pela Universidade de Paris, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e doutor honoris causa pela Universidade de Coimbra. Integrante da Comissão Arns de Direitos Humanos.
Considera a decisão do STF sobre segunda instância, acertada?
Comparato – Embora vivamos um período político turbulento – talvez não, para o Presidente da República e sua progenitura – creio que a Constituição Federal de 1988 ainda continua em vigor. Pois bem, em seu art. 5º, inciso LVII, ela declara que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”; entendendo-se como tal, desde sempre, aquela da qual não cabe mais recurso.
Maierovitch – O problema é ter o Supremo dado, por apertada maioria, uma decisão tecnicamente incensurável que, diante do nosso sistema de processo penal, vai gerar impunidade. E impunidade para poderosos e potentes, com colarinhos não somente brancos.
Como fazer ??
Desde sempre, o nosso Supremo passa a idéia e se declara um tribunal técnico e não um tribunal político.
E tivemos o primoroso voto técnico-jurídico do ministro Celso de Mello. E votos políticos dos 5 ministros com votos minoritários.
A respeito da garantia da presunção de não culpabilidade escrevi, logo após a Constituição de 88, artigos técnicos a respeito e ensinei aos meus alunos sobre a ilegitimidade da execução provisória. No entanto, avisei sempre que o nosso processo penal levava à impunidade.
Resumindo. A decisão do Supremo foi, pelo prisma da técnica jurídica, correta. Politicamente, com recurso ao chamado direito alternativo, decidiu a minoria dos ministros.
Dizem que assim, quem conseguir pagar um bom advogado, se livra da cadeia.
Comparato – Para esse resultado, não basta “conseguir pagar um bom advogado”. É preciso, também, contar com juízes suscetíveis de se deixarem convencer com os argumentos por eles apresentados.
Maierovitch – Certa vez um amigo, brilhante advogado, me contou estar o pai com um câncer agressivo, e cirurgias e tratamentos pretéritos não tinham resolvido o problema. Restava saber do pai doente qual a sua vontade sobre novas e arriscadas intervenções.
O mencionado paciente era um antigo e excepcional advogado. Respondeu de pronto: como na advocacia, vamos usar todos os recursos admitidos.
O advogado usa de todos os meios de defesa. Se a lei processual favorece, ele vai atuando e poderá, pelo caminho, se deparar com uma prescrição com prazo contado pela metade por ter seu cliente completado 70 anos de vida. E depois do transito em julgado, ou seja, da condenação definitiva, poderá ir atrás de uma revisão criminal.
Faz sentido o debate sobre segunda instância migrar para o Senado? Não seria um desperdício de energia e dinheiro, tanto tempo dedicado a uma questão e por diferentes instituições?
Comparato – A rigor, não entendi a sua pergunta. Por acaso, o Senado Federal tem competência para alterar ou suprimir uma norma constitucional, que não pode ser abolida nem mesmo mediante proposta de emenda à Constituição (art. 60, § 4º, inciso IV)? A não ser que se entenda que a norma do art. 5º, inciso LVII, não diz respeito aos direitos e garantias individuais, o que é uma interpretação surpreendente, para dizer o mínimo…
Maierovitch – Como já afirmei, uma PEC, conforme anunciada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, não terá sucesso para derrubar uma cláusula pétrea. Garantia pétrea só cai com uma nova Constituição.
Fala-se em alterar o artigo 283 da lei processual penal, segundo sugestão do ministro Tóffoli. O ministro fez contorcionismo jurídico. O STF entendeu que o artigo estava conforme a Constituição. Se mudar, vai trombar com a presunção de não culpabilidade.
Entramos para o colocado por Lampedusa, na obra Il Gatto Pardo. E na boca do personagem nominado príncipe de Salinas: É preciso mudar tudo, para ficar tudo exatamente como está.
Vejo no Congresso, pelos projetos em análise, a aplicação da regra de Lampedusa. Se vingarem, tenho certeza que cairão no Supremo.
E o Gilmar Mendes, que já votou a favor e contra a mesma matéria?
Comparato – Não foi o primeiro caso na História, em que um magistrado mudou de convicção.
Maierovitch – A Intercept Brasil divulgou, — e dá para acreditar até pela reação diversionista  dos envolvidos—, conversas reveladoras de relações promíscuas entre procuradores e o juiz da causa (Sérgio Moro).
Não é necessária uma divulgação como feita pela Intercept para se comprovar anos e anos de relações promíscuas entre Gilmar Mendes e uma quantidade pantagruélica de interessados.
Diz a nossa lei que aquilo que é público e notório independe de prova. É pública e notória a intervenção parcial de Gilmar Mendes. Dois episódios, só para não deixar em branco: reunião com Jobim e Lula no escritório do ex-ministro. Comunicação escandalosa por parte de Gilmar  do encontro a membros de partido político. Gilmar desmentido por Jobim e Lula sobre o acertado politicamente (nada de jurídico) na tal reunião. Mais ainda, o episódio no Tribunal eleitoral de impugnação do mandato da então presidente Dilma por abuso de poder econômico e político. E a mudança processual de rumo após o impeachment de Dilma e para salvar Temer, quando o abuso de poder econômico maculava toda a chapa: presidente e vice.
Gilmar, que é preparadíssimo juridicamente,  jamais será um juiz aceitável. Ele antecipa julgamentos e mantém promiscuidade com poderosos. Não tem isenção, por isso flutua ao sabor das suas conveniências, com a devida vênia e sem intenção de ofender a sua honra, mas, apenas, de responder ao jornalista.
Sempre com vênia ao cargo: Gilmar ainda tem o péssimo hábito, — inadmissível num magistrado–, de atacar a honra de pessoas que não fazem parte da relação processual e, por distante, não podem responder. Ele abusa da imunidade judiciária da sua cátedra de ministro do Supremo.
Não é uma distorção o STF mudar de posição três vezes em um espaço de 11 anos ?? Mais que isso, insegurança jurídica.
Comparato – Infelizmente, há já um bom tempo o STF perdeu aquela qualidade que os romanos chamavam auctoritas, a confiança do povo. Eis porque em 2013 redigi uma proposta de emenda constitucional (a PEC 275), apresentada pela Deputada Luiza Erundina, reorganizando o STF. Os novos Ministros seriam escolhidos pelo Congresso Nacional (e não pelo Presidente da República), a partir de listas tríplices de candidatos, designados pelo Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Nacional do Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil.
Maierovitch – Lógico, não é aconselhável, — até para evitar a chamada insegurança–, que a jurisprudência sofra mudanças ao sabor dos ventos políticos. Ela precisa de tempo adequado para se tornar mansa e remansosa.
Como se sabe, nas Cortes Constitucionais européias, um ministro tem mandato. E não se pode prorrogar o mandato, ser reconduzido. Como regra, o mandato é de sete anos. Imagina-se se a cada novo mandato se mudasse a jurisprudência constitucional.
Volto a insistir e já escrevi recentemente em análise publicada pelo jornal O Estado de S.Paulo. Tivesse o processo criminal um prazo razoável (duração aceitável), não estaríamos a discutir a ‘presunção de não culpabilidade’. Imagine-se, e tomo como exemplo o sistema italiano por ocasião de Operação Mãos Limpas, se tívessemos em primeira instância uma composição colegiada (Tribunal em primeiro grau). Além de tirar o protagonismo do juiz único, poderíamos reduzir o número de recursos e o número de graus de jurisdição: hoje, em matéria penal, o Supremo Tribunal funciona como quarta instância ( quarto grau de jurisdição), além dos casos de foro privilegiado.
Quem controla os excessos do STF? Aliás que excessos o STF comete?
Comparato – Indagação justa e necessária. Resposta: ninguém. Quando foi instituído o Conselho Nacional de Justiça, pela Emenda Constitucional nº 61, de 2009, o STF apressou-se em julgar que ele não estava submetido à jurisdição do novo Conselho. Montesquieu tinha, portanto, carradas de razão, ao dizer que, de acordo com uma experiência eterna, todo aquele que dispõe de algum poder é levado a dele abusar. Ele avança até onde encontra um limite. Mas em nosso País, o STF nunca encontrou limites para o seu poder de julgar.
Maierovitch – O Supremo é o órgão de cúpula do Poder Judiciário Brasileiro. Atua pelos seus ministros, nas Turmas, no Plenário e nas sessões administrativas.
Segundo entendimento acertado dos seus ministros, basta olhar a Constituição para se verificar que o STF está acima do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Portanto, o CNJ não detém competência para agir junto ao STF e não tem poder correcional sobre os seus ministros.
Os ministros do STF só estão sujeitos a impeachment. Nos últimos anos, os presidentes do Senado têm engavetado ou arquivado sumariamente pedidos de impeachment contra ministros do STF.
A nossa suprema Corte tem sido criticada, em casos de relevância, de invadir a competência do poder Legislativa e sair a legislar. O antídoto existe: basta o Legislativo elaborar a lei.
O que esperar desta crise de desprestígio da Corte Suprema, em um cenário de polarização e esgarçamento das instituições democráticas?
Comparato – Esta pergunta é realmente importante. O nosso Supremo Tribunal Federal foi organizado logo após a Proclamação da República (cujo 140º aniversário ocorre justamente agora), à imagem da Corte Suprema dos Estados Unidos. Ocorreu, no entanto, que em razão da velha tradição processual lusitana, demos ao STF uma competência recursal excessiva. Por outro lado, tal como nos Estados Unidos, determinamos que é o Presidente da República quem nomeia os Ministros do Supremo, com a aprovação do Senado. Ora, nos Estados Unidos o controle senatorial funciona adequadamente, já tendo havido a desaprovação de doze pessoas indicadas pelo Chefe de Estado para a Suprema Corte. Algumas vezes, quando o Presidente dos Estados Unidos percebe que a pessoa por ele escolhida não será aprovada pelo Senado, retira a indicação. No Brasil, ao contrário, até hoje o Senado somente rejeitou uma nomeação para o Supremo Tribunal Federal. Foi quando Floriano Peixoto resolveu nomear o doutor Barata Ribeiro, seu médico pessoal, para preencher uma vaga de Ministro no Supremo Tribunal.
Maierovitch – Todos os que têm compromisso com o Estado Democrático de Direito precisam esclarecer que a questão era polêmica. A Corte, em 2009, já havia decidido num sentido e mudado em 2016. Mudou de novo e ficou claro, como acontece na Itália cuja Constituição serviu de modelo à nossa, que se pode usar medida cautelar.
Não pode é o ministro Gilmar, ao contrario do que ocorre na Itália, querer, — diante de um processo penal moroso como o nosso–, fixar prazo para a prisão preventiva, cautelar.
Afinal, como avalia o papel do STF como guardião da Constituição?
Comparato – Infelizmente, como já deixei dito, a nossa mais alta Corte de Justiça deixa muito a desejar, como guardiã da Constituição.
Maierovich – O Supremo deveria ser apenas Corte Constitucional e não acumular com a função de quarta instância em matéria penal.
Sobre a credibilidade, alguns ministros são responsáveis por isso. É hora de se emendar a Constituição para estabelecer mandato para ministros do STF, sem possibilidade de recondução, e modo a maneira de indicação, hoje exclusiva do presidente da República.
Se a Constituição é uma só, por que temos uma Corte dividida entre legalistas e garantistas?
Comparato – Precisamos, urgentemente, reformar o Supremo Tribunal Federal, transformando-o exclusivamente em uma Corte Constitucional. Era o que ingenuamente esperávamos, quando se cogitou de criar o Superior Tribunal de Justiça. Lembro que em 2013, a Deputada Federal Luiza Erundina apresentou na Câmara dos Deputados a Emenda Constitucional nº 275, que não chegou a ser discutida na legislatura passada e aguarda um início de discussão na presente legislatura. Ela altera a composição do STF, a partir da nomeação dos novos Ministros, além de reduzir a competência da Corte à função de atuar exclusivamente como guardiã da Constituição.
Maierovitch – Não gosto dos carimbos. Nos EUA fala-se em juízes da suprema corte republicanos ou democratas.
No Brasil, veio o carimbo de garantistas, que seriam os que defendem a interpretação literal e conforme a vontade dos constituintes. Os outros, seriam os mais sintonizados com os apelos populares e a dar interpretação conforme o interesse da sociedade.
Na verdade, um juiz deve ser isento, independente e julgar conforme as suas convicções.
Para Bolsonaro, chegou o momento de se entregar uma cadeira a alguém “terrivelmente evangélico”. Como poderá indicar, se nem ao menos sab que o Estado brasileiro é laico e o Supremo não aplica regras religiosas, mas legais.

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