Redação, O Estado de S.Paulo
09 de novembro de 2019 | 06h00
Há 30 anos, no dia 9 de novembro de 1989, caia o Muro de Berlim, estabelecendo também o fim da divisão entre capitalismo e socialismo que marcou o século 20. Dois colunistas do Estado, William Waack e Helio Gurovitz, relembram suas coberturas do evento que mudou o curso da história.
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Foi uma cobertura do meu ponto de vista pessoal espetacular. Não que ela tivesse sido a cobertura espetacular, mas participar de um movimento histórico desses, do qual as pessoas ainda hoje falam para mim foi uma das grandes experiências profissionais e pessoais da minha vida.
As pessoas me conhecem hoje muito mais por eu ter sido apresentador de TV, mas o que eu mais fiz foi ir à rua cobrir coisas como, por exemplo, a queda do Muro de Berlim.
E eu usei um velho truque de repórter: como eu falo alemão, tinha morado na Alemanha e sido correspondente do Estadão, eu peguei um taxi e fui na Alemanha Oriental buscar pessoas que queriam visitar alguém na Alemanha Ocidental. E oferecia carona pra eles. No caminho eu vinha entrevistando o pessoal. Então eu registrava a primeira emoção de um alemão-oriental ao passar o muro da morte, que era um muro que se a pessoa tivesse coragem de tentar transpor acaba fuzilada, como aconteceu em dezenas de casos.
Isso me proporcionou como repórter a extraordinária possibilidade de ver a psicologia daquelas pessoas, como que elas reagiam diante daquele fato histórico. Foi realmente uma daquelas coberturas que a gente, como jornalista, costuma dizer que foi emocionante.
Eu tinha como repórter na ocasião dois problemas: um era tentar abordar em uma linha de trabalho o que eram as evidentes, enormes consequências políticas daquilo, e que a gente está vivendo até hoje - ou seja, a ordem internacional criada com o fim do império soviético na Europa e a reunificação das Alemanhas, isso explica a ordem liberal que começa no fim da 2ª Guerra e termina agora com Trump.
O outro problema era evidentemente o aspecto humano de tudo aquilo. Quando a gente fala da divisão da Europa, não estamos falando apenas, embora também, de uma questão geopolítica. Estamos falando do destino de milhões de pessoas, como que elas se sentiam diante daquela brutalidade. Eu tentei explorar essas duas linhas de forma paralelas nas reportagens enviadas de Berlim para São Paulo.
Sobre a ascensão do nacionalismo hoje, particularmente na Alemanha, vejo como uma questão preocupante já que a Alemanha supera uma divisão artificial, mas reforça os regionalismos que levaram em boa parte à imobilidade da Angela Merkel - ela tem uma dificuldade muito grande de falar hoje numa totalidade de um eleitorado.
As ilusões da queda do muro se dissiparam com certa rapidez e entrou no lugar daquilo uma noção muito realista de duas Alemanhas: uma Alemanha de primeira classe, tradicional, ocidental, e uma Alemanha de segunda classe. E é essa noção de ser habitante de um país que é considerado subjetivamente de segunda classe que explica em boa medida o sucesso de grupos que no espectro político alemão nunca tiveram grande lugar, como o Alternativa para a Alemanha (AfD), que tem uma postura quase asquerosa, de repulsa ao outro e que explora alguns veios profundos que são desagradáveis.
O outros aspecto é o da Europa. A Alemanha volta a ser o centro da Europa, volta a ser a principal potência, não só do ponto de vista econômico, mas por suas questões afetarem todo bloco e, portanto, todo o relacionamento da chamada ordem liberal internacional, que o Trump está sepultando agora.
É o fim de uma época, sem dúvida, o que estamos vendo agora.
Nenhum muro é capaz de conter a força da liberdade (Helio Gurovitz)
Como era duro! Parecia uma rocha. Para um fracote como eu, foi dificílimo arrancar um pedaço do Muro de Berlim, ainda de pé nas duas vezes em que visitei a cidade nas primeiras semanas de 1990. Não bastavam a marreta e o formão pontiagudo, emprestados de alguém mais precavido. Não adiantava bater com força. Nada parecia fazer ceder a mistura resistente de concreto e ferragem, engendrada com capricho pelos alemães-orientais.
Da primeira vez, até arranquei uma lasca da superfície coberta de pichação (pedaço mais valioso). Da segunda, só depois de muito esforço soltei uma pedrinha do concreto. Se ninguém jogou no lixo, estão ambas guardadas nalgum lugar aqui em casa.
São a prova, com a foto tirada por uma amiga, de que também fui um Mauerspecht. Se alguém vier com aquela conversa de que o muro imaginário sempre foi maior e mais forte que a barreira física, bem, na certa é porque jamais teve de derrubar o muro de verdade.
Àquela altura, já era só um símbolo. Estava cheio de buracos, nalguns trechos começava a ser demolido. Num subúrbio, dava para passar de um lado ao outro sem ninguém dar bola. Ainda havia Alemanha Oriental, mas todos sabiam que não duraria. Wiedervereinigung – reunificação – foi a primeira palavra nova que aprendi em alemão naquele tempo. Ninguém falava noutra coisa.
Para quem vinha da Alemanha Ocidental, a viagem até Berlim ainda era uma aventura. Desde 1971, um acordo estabelecera os quatro caminhos que carros ocidentais poderiam usar para chegar ao enclave capitalista de Berlim Ocidental. Também era possível ir de trem. Da primeira vez viajei de ônibus, vindo do Sul da Alemanha.
Quando ele atravessou a fronteira entre Rudolphstein e Hirschberg, era flagrante o contraste da Autobahn ocidental com a estrada oriental, vigiada de ambos os lados, entradas e saídas fechadas, cercas de arame farpado em vários trechos. Em vez da pista dupla sem limite de velocidade, uma via de duas mãos, ultrapassagens raras e difíceis. Era preciso rodar abaixo de cem por hora. O asfalto tinha qualidade lastimável, cheio de buracos.
No meio do caminho, só era permitido parar numa loja duty free, onde comprei duas garrafas de vodca polonesa, pelo que lembro à pechincha de cinco marcos ocidentais cada uma. Para entrar em Berlim Ocidental, o ônibus cruzava a passagem de Drewitz conhecida como Checkpoint Bravo (irmã da Checkpoint Alfa, entre Helmstedt e Marienborn, usada por quem entrava na Alemanha Oriental vindo de Colônia, e da célebre Checkpoint Charlie dos romances de espionagem, entre as duas metades de Berlim).
A metrópole estava em transe. O clima de festa contaminava o festival de cinema, as discotecas subterrâneas do Ku’damm, os concertos da Filarmônica, as cervejarias de Charlottenburg. A Disneylândia, claro, estava do lado de lá, em Berlim Oriental.
Para entrar, o turista era obrigado a fazer um câmbio extorsivo no controle fronteiriço, instalado na única estação de metrô que continuava a conectar as duas metades da cidade depois da divisão: Friedrichstraße. Eram, se não falha a memória, 25 marcos à taxa de um para um.
Em troca, o visitante recebia um carimbo da Alemanha Oriental no passaporte e notas que lembravam o dinheiro do Banco Imobiliário (até hoje guardo de lembrança uma de cinco marcos orientais). No lado socialista, o papel que nada valia de repente ganhava valor. Na Alexanderplatz, dava para comprar por nove pfenig um currywurst que do lado de cá não saía por menos de um marco.
A cerveja não era ruim. Mas, depois de visitar Nefertiti no Pergamon, dar uma volta por Unter den Linden, admirar as foices e martelos espalhadas pelos edifícios imponentes do governo, ver onde Bruce Springesteen tinha reunido milhares num show histórico, ninguém tinha muito mais o que fazer por lá. Os filmes, as discotecas, as orquestras, até as compras na KDW, tudo de interessante estava do lado ocidental – inclusive a chance de arrancar um pedaço do muro, ainda de pé.
Ele tinha começado a cair no ano anterior. Não em 9 de novembro, data que entrou para a história, mas premonitoriamente no dia 11 de setembro, quando foi aberto o primeiro rombo na Cortina de Ferro. Naquele dia, a Áustria retirou o arame farpado da fronteira com a Hungria, e milhares de alemães-orientais que passavam férias no país vizinho decidiram atravessar para o Ocidente.
Nos meses seguintes, outros buracos foram abertos. A embaixada alemã em Praga, na então Tchecoslováquia, começou a receber um fluxo enorme de refugiados buscando asilo. Cidades como Leipzig ou Dresden foram tomadas por protestos, aos gritos de “Gorbi! Gorbi!”, homenagem a Mikhail Gorbátchov. Organizações políticas, como o partido Novo Fórum, começaram a ganhar forma.
Quando o porta-voz Günther Schabowski anunciou por engano, na noite de 9 de novembro, que os alemães-orientais poeriam deixar o país sem autorização a partir daquele momento, parecia um mal-entendido. Dali a poucos minutos, foi impossível conter a onda humana que derrubou o muro. Viajando de trem no lado ocidental nas semanas seguintes, era comum encontrar jovens alemães-orientais que conheciam o próprio país pela primeira vez.
A mesma fronteira com a Áustria voltou a ser fechada em 2015 pela Hungria, para evitar a entrada de refugiados sírios em seu território. Como todo o Leste Europeu, o território da antiga Alemanha Oriental se tornou terreno fértil para a xenofobia, onde o nacional-populismo floresce no solo arado pelo comunismo.
Berlim não. Dividida ao meio por 28 anos, reunificada há 30, voltou a ser a metrópole cosmopolita de Albert Einstein e Bertolt Brecht, Marlene Dietrich e Fritz Lang, Schoenberg e Gropius. Traz, nos destroços do nazismo e do comunismo, a lição mais necessária para o mundo de hoje: nenhum muro contém a força da liberdade.
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