segunda-feira, 11 de novembro de 2019

A Líbia do Caribe, OESP

Moisés Naím, O Estado de S.Paulo
11 de novembro de 2019 | 06h00


Em 2011, a Líbia se estilhaçou em mil pedaços. Com autorização da ONU, uma coalizão de países atacou o país, uma turba assassinou Muammar Kadafi, seu regime sanguirário entrou em colapso e a nação se fragmentou. Eventualmente, dois governos se consolidaram: um baseado em Trípoli e outro em Tobruk.
Cada um tem um líder, Forças Armadas, burocracia e, inclusive, o banco central e papel-moeda próprios. Os dois governos contam com apoio de outros países. O de Trípoli é reconhecido pela ONU, enquanto o de Tobruk é respaldado, entre outros, pelo Egito, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e Rússia.
O controle dos ricos campos de petróleo da Líbia tem sido motivo de fortes conflitos armados, mas até agora nenhum governo conseguiu derrotar o outro. Além disso, operam no território líbio, com grande autonomia, centenas de milícias, tribos, grupos terroristas, assim como organizações criminosas que traficam drogas, pessoas e armas. A ampla disponibilidade de todo tipo de arma entre a população torna a situação ainda mais perigosa. 
Nicolás Maduro - Venezuela
O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, em Caracas  Foto: Yuri Cortez/AFP
O prolongado colapso do país se tornou um problema europeu. Trípoli fica a apenas 300 quilômetros de Lampedusa, a ilha italiana na qual desembarcaram milhares de imigrantes africanos que chegam à Líbia e, dali, entram na Europa. O caos e a corrupção reinantes deixam muito difícil controlar esses fluxos de pessoas, que geram imensos ganhos para os traficantes.
Nada disso estava nos cálculos das potências estrangeiras que intervieram militarmente na Líbia. Sua prioridade era acabar com o regime de Kadafi e evitar que o líder lunático promovesse um genocídio. Segundo o plano, uma vez derrubado Kadafi um governo de transição convocaria eleições que iniciariam a passagem da Líbia para a democracia. A exploração de suas enormes reservas petrolíferas financiaria o renascimento econômico do país. Oito anos depois do ataque militar, esse promissor “dia seguinte” não chegou e nem é vislumbrado no horizonte.
A Venezuela corre o perigo de se tornar a Líbia do Caribe. Obviamente, são países muito diferentes e as circunstâncias diferem significativamente. As semelhanças, porém, são surpreendentes. Como suporte à Líbia, a Venezuela também tem dois centros de poder que se enfrentam e até agora um não pôde desalojar o outro. Juan Guaidó é o presidente interino cuja legitimidade constitucional é reconhecida por mais de 60 países, incluindo as principais democracias do mundo.
Nicolás Maduro chegou à presidência por meio de eleições comprovadamente fraudulentas e ocupa o poder graças ao apoio das Forças Armadas e de grupos paramilitares. Conta com o respaldo de Cuba, Rússia, China, Irã, Turquia e Síria, entre outros.
Tanto a Líbia quanto a Venezuela são Estados falidos, incapazes de desempenhar funções básicas. Nenhum de seus governos controla todo o território nacional, e esse vazio é preenchido por atores perigosos. Na Líbia, operam a Al-Qaeda e o Estado Islâmico, enquanto na Venezuela atuam o ELN, as Farc e cartéis de traficantes colombianos. Caciques regionais, milícias e grupos criminosos também controlam regiões e cidades, ou parte delas. 
Na Líbia, há grandes entrepostos criminais que traficam gente. Na Venezuela há influentes organizações que traficam drogas e minerais. A Líbia é um bazar de armas. A Venezuela também. Nos dois países reinam a anarquia e o crime. E ambos se converteram em foco de graves crises regionais. Os imigrantes africanos que chegam da Líbia desestabilizaram a política da Europa, enquanto a chegada de milhões de refugiados venezuelanos está desestabilizando a política na Colômbia e outros países.
Líbia e Venezuela também se parecem no fato de serem países petrolíferos que não conseguem produzir e exportar o enorme volume de óleo que suas vastas reservas permitiriam. Ambas as nações estão sob sanções internacionais e no foco do Kremlin. Putin conseguiu dar à Rússia uma grande influência no conflito sírio. Agora está tentando fazer o mesmo na Líbia e na Venezuela.
Nos dois países tem havido diálogos e negociações com mediação internacional, que fracassaram. Outro traço comum entre a situação na Líbia e na Venezuela é que o cansaço está levando ao desalento e à pasmaceira. As crises se enraízam e se ampliam, sem perspectivas de solução, deixando de ser prioridade para a comunidade internacional agoniada por outros conflitos e emergências. Os curdos, os rohingyas e os refugiados do Iêmen, Síria, Turquia e América Central competem pela atenção e recursos da comunidade mundial.
Lamentavelmente, governos, organismos internacionais e meios de comunicação já mostram sinais de fadiga com a estagnação da situação na Venezuela. Se nos próximos meses não houver mudanças no status quo, a inércia e o “mais do mesmo” se imporão. É preciso evitar isso a qualquer preço. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

Nenhum comentário: