Modelo misto de gestão da educação se transformou, numa alquimia bem tropical, em monopólio estatal
Lembrar de duas histórias nos ajuda um pouco a entender o que se passa hoje na educação brasileira. Uma delas nos leva a 1987, nos debates da Constituinte. Um dos temas em jogo era o monopólio ou não do Estado sobre a educação pública.
A questão era se os recursos para a educação deveriam ser usados apenas nas redes estatais de ensino, no modelo tradicional que todos conhecemos, ou se poderiam também ser investidos em escolas não estatais, sem fins lucrativos, a partir de contratos celebrados com estados e municípios.
A posição vencedora foi a segunda. Está lá, no artigo 213 da Constituição. Recursos públicos serão destinados “às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas”. Até hoje acho engraçado que muita gente boa desconhece, ou faz de conta que desconhece, esse trechinho da Constituição.
Esta é a primeira história. A segunda nos leva a exatos 20 anos depois, quando foi criado o Fundeb, o principal instrumento de financiamento da educação básica do país. Para resumir a história, a lei, por estas coisas bem brasileiras, decidiu restringir o uso dos recursos apenas para as redes estatais de ensino.
Com o requinte de vetar o seu uso, no ensino regular, exatamente para os tipos de escolas que a Constituição havia autorizado: as filantrópicas, confessionais e comunitárias.
O que era para ser um modelo misto de gestão da educação, instituído na Constituição, se transformou, numa alquimia bem tropical, em um quase-monopólio da educação estatal sobre nossa educação básica.
Os resultados são conhecidos. Apenas 1,6% dos nossos alunos (dados do MEC) alcançam o nível “adequado” de aprendizagem em língua portuguesa, ao fim do ensino médio. É difícil exagerar nas dimensões deste desastre.
O efeito mais perverso foi a criação de nosso silencioso apartheid educacional: a classe média correu para o setor privado, protegendo (no seu direito) seus filhos, enquanto os mais pobres ficaram amarrados ao Estado. O nome disso é desigualdade. Daquela que não vem dos céus, mas do modelo que nós mesmos criamos, e por vezes fingimos que é a nossa única alternativa.
Há uma chance agora de corrigir isso tudo. A vigência do Fundeb vai até 2020 e o Congresso deverá aprovar o seu novo regramento. A pergunta simples a fazer é: 31 anos após a promulgação da Constituição, autorizando o sistema misto, vamos continuar mantendo o monopólio estatal?
A questão não é decidir, em abstrato, se o ensino estatal é melhor do que o privado ou vice-versa. O ponto é dar autonomia para os mais de 5.500 municípios e 27 estados brasileiros façam essa análise à luz da realidade local e das melhores evidências disponíveis. A maior delas nós já temos: a falência do modelo atual. A pergunta é: quais as alternativas às quais estamos deixando de prestar atenção?
Observar, por exemplo, a experiência das “charter schools” em Nova York, na gestão Bloomberg. O Center for Research on Educational Outcomes, de Stanford, analisou os resultados obtidos e a conclusão é bastante clara: alunos negros pobres nas escolas charter tem um ganho de aprendizagem equivalente a 68 dias extras ao ano, em matemática, em relação a seus pares em escolas públicas tradicionais.
Esses dados são discutidos no detalhe em Reinventing America’s Schools, de David Osborne. Osborne é um progressista, conselheiro de Clinton e Gore, e tem uma visão interessante sobre o tema: é preciso livrar as escolas da burocracia do Estado.
Retomar o controle do governo, e dos professores, sobre a qualidade da educação, ao invés de culpar os alunos e o destino quando os resultados são pífios.
No Brasil, este tem sido um discurso comum. A tese conveniente de que os piores resultados obtidos pelos alunos mais pobres não seria resultado da má qualidade do ensino público, mas deles próprios.
Estudos feitos na base de dados do Pisa e do Enade mostram exatamente o contrário.
Estudos feitos na base de dados do Pisa e do Enade mostram exatamente o contrário.
Algo que qualquer um que leciona em boas instituições que integram alunos de menor renda, via sistemas de bolsas, sabe da experiência: alunos mais pobres podem aprender, virar o jogo, desde que recebam a oportunidade de estudar em pé de igualdade.
Vivemos um tempo de muda. Ficamos mais velhos. Quem sabe dessa vez nossa elite, que não abre mão de colocar os filhos em boas escolas privadas, mas insiste no monopólio da escola estatal para os filhos dos outros, repense alguns conceitos.
Três décadas depois de feita a Constituição, a palavra está novamente com o Congresso.
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