Imóvel reformado pelo Fica, no centro de SP, é alugado por R$ 633, a metade do valor cobrado por imobiliárias da região
SÃO PAULO
A problemática situação habitacional brasileira é esquadrinhada por vários grupos acadêmicos e instituições que formulam relatórios, teses e muitos dados estatísticos.
Por exemplo, estudos da Fundação João Pinheiro, de Minas Gerais, mostram que o número de imóveis vazios no país (7,9 milhões) é maior que o déficit habitacional (6,3 milhões de residências no Brasil, sendo 640 mil na região metropolitana de São Paulo e 358 mil no município) em dados de 2015.
Há muitas informações sobre a situação atual e, a partir delas, são elaboradas propostas consistentes. Mas o que acontece quando um grupo de ativistas e pesquisadores sobre moradia social passa a ambicionar a compra de imóveis e a prática de aluguéis em condições justas para famílias de baixa renda?
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Com este intuito foi criado, em 2015, o Fica: Fundo Imobiliário Comunitário para Aluguel. A instituição sem fins lucrativos adquire apartamentos e os aluga a preços distintos de valores do mercado. Os primeiros quatro anos de existência do Fica foram dedicados a formulação de um modelo organizacional ainda inédito no Brasil.
Primeiro foi criada a associação, com CNPJ e conta bancária para captação de recursos. Os 65 associados elegem cinco diretores que se responsabilizam legalmente pela associação durante o mandato de três anos.
Em julho de 2017, o Fica adquiriu seu primeiro apartamento por R$ 162 mil. É uma quitinete de 47 metros quadrados no número 69 da praça Júlio Mesquita, centro de São Paulo. Como tantos imóveis da região, a residência esteve antes desocupada por 10 anos devido a disputas familiares na justiça. A moradia foi reformada, refazendo instalações elétricas e hidráulicas, restaurando esquadrias, piso e nova pintura.
Tendo essa primeira propriedade, os membros da associação passaram a estudar e debater internamente qual é o valor e as condições justas para aluguel.
Diferentemente das flutuações da lei da oferta e procura, o Fica buscou o “preço de custo”. Renato Cymbalista, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da USP, e diretor do Fica, esclarece que o movimento não faz caridade: “nós não temos lucro neste aluguel, mas também não conseguimos subsidiar.”
No valor da locação estão incluídos a conta de condomínio, o seguro do imóvel, uma taxa para futuras manutenções devido ao uso cotidiano do apartamento, além de uma contribuição do inquilino para a operação do Fica e na compra de outros imóveis. O resultado mensal é um aluguel de R$ 633. Outros apartamentos no mesmo prédio são alugados a R$ 1.200.
O contrato entre o proprietário (o Fica) e o morador segue o padrão da lei de inquilinato. A única diferença é que a associação não pede fiador —uma barreira para muitas famílias de baixa renda.
A jornalista Bianca Antunes, coordenadora geral do fundo, destaca que “o Fica consegue neutralizar a especulação imobiliária naquele apartamento.” E prossegue avaliando como uma iniciativa desta pode ter efeitos mais amplos para a região central de São Paulo: “Aquele imóvel não fica sujeito a gentrificação, que tem como mais trágica decorrência a expulsão de moradores em áreas que alugueis se valorizam.”
Por tanto, buscar uma família com raízes já estabelecidas no centro foi uma questão importante na seleção do morador desse apartamento inicial do Fica.
O perfil familiar dos inquilinos foi debatido internamente. Avaliou-se o número ideal de membros tendo a dimensão do espaço da quitinete como parâmetro. Também se firmou a necessidade de mais de uma geração —pais e filhos— entre os moradores. Por fim, a estabilidade empregatícia e financeira era importante para a capacidade de honrar os compromissos do aluguel.
O fundo pediu indicação de eventuais moradores para entidades como o Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e as Irmãs Missionárias Scalabrinianas, cuja missão tem sede no bairro do Pari. Foram enviados formulários para saber a composição familiar, a renda e o endereço de possíveis interessados.
No final, seis famílias foram selecionadas para entrevistas conduzidas por uma psicóloga e uma assistente social. Nas seis conversas, a interlocução se deu com a mulher da família. Ao fim, um fator decisivo foi o grau de melhoria da condição de vida familiar que o novo apartamento significaria.
Composta por casal e três filhos, a família selecionada morava antes em um ambiente pequeno sem abertura de luz e ventilação naturais. A redução dos problemas de respiração de uma das crianças foi um efeito elementar da mudança para a nova moradia em julho deste ano.
Tal experiência-piloto está sendo exposta na Bienal de Arquitetura de Chicago, aberta desde setembro até 5 de janeiro do próximo ano. A instalação elaborada pelo Fica parte da pergunta: “O que é um proprietário ético?” Tendo a mesma pergunta como título, o respectivo livro está sendo lançado no dia 6 de novembro, na sede do IAB-SP.
Além de explicar o modelo desenvolvido, revelam-se outras instituições pelo mundo que detêm propriedades e as destinam segundo princípios alternativos aos valores e oscilações de mercado. Se o Fica é uma associação singular no Brasil, encontram-se iniciativas com princípios semelhantes na Argentina, na Europa e nos Estados Unidos —notoriamente, o Cooper Square Community Land Trust que detém 21 edifícios em áreas valorizadas de Nova York para o aluguel social de 324 apartamentos.
Simultaneamente laboratório de pesquisa habitacional e fundo imobiliário que aproxima reflexão acadêmica das condições reais, o Fica é descrito pela arquiteta Marina Grinover, diretora da associação, como “uma plataforma de debate não para imposições, mas para indagações acerca de mecanismos que tornem mais justo o uso da cidade.”
Cymbalista complementa que a postura da instituição “não é de demandar do Estado. Mas sim oferecer um modelo que pode ser utilizado governamentalmente caso as autoridades queiram.” Portanto, o Fica não descarta parcerias com o poder público.
Um dos próximos passos é o aumento de escala do Fica, isto é, do número de propriedades e de inquilinos beneficiados com aluguéis não abusivos. Atualmente com 107 apoiadores mensais, o fundo tem R$ 135 mil em caixa para a compra do segundo apartamento.
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