O problema está nas decisões erradas e na captura do Estado por grupos organizados
Tempos atrás uma jornalista me disse que se preocupar com os mais pobres e não com a desigualdade era uma posição “conservadora”. Eu havia escrito um artigo baseado na visão de James Heckman de que era preciso capacitar e integrar as pessoas à dinâmica do mercado e me perguntava em que sentido isso poderia ser uma posição conservadora.
Na verdade, não é. Trata-se apenas de uma posição pouco sexy, em nossas democracias polarizadas. Falar mal dos mais ricos ou enfileirar gráficos com a diferença de renda entre as pessoas tem muito mais efeito, no mundo retórico, do que pensar com seriedade sobre como melhorar a vida dos mais pobres.
Imaginem a seguinte situação. João Pedro está para nascer e a loteria da vida decidiu que ele irá viver em algum lugar do Piauí. Sua chance de crescer em uma casa com acesso à rede sanitária é de 7%. Se a sorte o tivesse feito descer em algum lugar de São Paulo, seria o inverso: teria mais de 90% de chances de crescer em uma casa com esgoto tratado.
A pergunta a fazer: seu problema é a desigualdade de condições em relação ao seu alter ego paulista ou o fato de não dispor de acesso sanitário?
O Congresso está para votar o novo marco regulatório do saneamento básico. Ele parte de uma constatação básica: o Estado é responsável por 94% da coleta de esgoto do país e perto de metade dos brasileiros está até hoje sem o serviço. A ideia é atrair investimento privado para o setor, via competição e segurança jurídica para contratos de longo prazo.
É a melhor solução? Há alguma outra ideia na mesa? É possível que exista, mas é esta a discussão a ser feita. É assim o mundo real da decisão pública que de fato afeta a vida das pessoas, ainda que esteja muito longe da lógica do entretenimento que tomou conta da política.
O mesmo ocorre com nossa educação básica. Se abrirmos os números do Pisa, o teste educacional na OCDE, veremos que há dois brasis escondidos ali. O país das escolas particulares, que pontua próximo à média norte-americana, e o país das escolas estatais, nas últimas posições.
O Congresso está para votar o novo desenho do Fundeb, o principal instrumento de financiamento de nossa educação básica. A pergunta é: vamos continuar proibindo, contra o que está escrito na Constituição, que estados e municípios possam fazer parcerias com boas instituições privadas sem fins lucrativos e permitir que as crianças mais pobres estudem nas mesmas escolas que seus vizinhos de maior renda?
Esta é a pergunta séria a ser feita. Exatamente a pergunta que os que já têm a vida ganha e apreciam uma boa retórica não gostam de fazer.
Tempos atrás, li uma reportagem, aqui na Folha, sobre os super-ricos e a concentração de renda no Brasil. O foco era a desigualdade, mas os exemplos e histórias de vida contavam algo bastante diferente: elas mostravam os males da pobreza, em regra provocados por nossas escolhas erradas, no mundo real da política.
Uma dessas histórias era a do Guimarães, pequeno empreendedor que tentou abrir uma rede de barbearias e quebrou. Seu insucesso veio na crise brasileira de 2015/16. O desemprego bateu e sua clientela desapareceu. Nenhum bruxo mau transferiu seu dinheiro para o top 1%. A economia entrou em crise pelas razões sabidas, associadas à irresponsabilidade fiscal e às barbeiragens na condução da política econômica. E o Guimarães pagou a conta.
Vai aí uma lição: há um tipo de desigualdade que realmente devemos combater. Ela não diz respeito a quem produz valor, legitimamente, no mercado, mas, sim, a nossas decisões erradas e à captura do Estado pelos grupos organizados no mercado político.
A lista é grande. Incentivos fiscais localizados, como os jatinhos a juros subsidiados, via BNDES; as aposentadorias especiais, capturadas por quem se move bem no Congresso. Tudo que faz com que 75% das transferências públicas, no Brasil, sejam classificadas como “pró-ricos” pelo BID e os servidores federais ganhem em média 96% a mais do que seus pares do setor privado.
Reconheço que são temas indigestos. Eles tocam em interesses corporativos bem posicionados e exigem, para sua solução, um caminho espinhoso: que as demandas difusas, em especial dos mais pobres, sejam postas à frente das urgências dos grupos de pressão, com sua imensa capacidade retórica.
Ser um conservador, digo para a minha amiga jornalista, no mau sentido da expressão, é precisamente isto: sustentar o status quo de um Estado estruturalmente quebrado e que, a par disso, funciona alegremente como Robin Hood ao avesso.
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