sexta-feira, 4 de abril de 2025

Esquerda está isolada, e dificuldade nas ruas é evidente e óbvia, diz Manuela d'Ávila, FSP

 

São Paulo

Sem mandato, sem partido e se dizendo livre para traçar críticas à esquerda, a ex-deputada federal Manuela d’Ávila enxerga o próprio campo político com dificuldades de mobilização nas ruas.

Parte disso atribui ao sucesso da direita nas redes sociais, fruto de diversos fatores, e da incompreensão de que o mundo digital, hoje, não pode mais ser desassociado do mundo real.

No ano passado, deixou o PC do B, partido ao qual foi filiada por 25 anos, alegando descontentamento com os rumos da sigla. Ao avaliar a postura da esquerda, tem traçado um paralelo com o episódio no qual uma frase foi falsamente atribuída à Maria Antonieta, rainha da França no século 18, na qual dizia à população, que reclamava da falta de pão e passava fome, para se alimentar de brioches.

"Vários traços da vida institucional são, diante dos olhos do povo, luxos aos quais a população não pode se dar. A maneira como os parlamentares vivem é diferente da vida do povo trabalhador", diz Manuela.

Uma mulher com cabelo castanho escuro e ondulado está sentada em uma cadeira preta. Ela usa uma blusa branca com um detalhe floral. O fundo da imagem é rosa claro. A mulher está olhando para a câmera e sorrindo levemente.
A ex-deputada federal Manuela d'Ávila - 3.abr.2025 - Manuela d'Ávila no Youtube/Reprodução

O ex-prefeito de Araraquara Edinho Silva [PT] disse que é necessário reconhecer que a esquerda tem apresentado dificuldade de mobilização. Você concorda com isso?
Isso é um dado da realidade. Quem não enxerga a base social e a maneira como a extrema direita tem aglutinado setores sociais? Em contrapartida, as nossas instituições estão tentando maquiar um dado da realidade, que é duríssima. A gente precisa tirar as maiores lições disso. Essa afirmação do Edinho é, para mim, bastante evidente e óbvia, vinda de quem não está tentando negar a realidade, mas sim olhando para ela com atenção.

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Por que a esquerda enfrenta dificuldade de mobilização?
Isso se relaciona com dilemas que a gente enfrenta no Brasil e no mundo, entre eles a transferência da esfera pública para o ambiente digital. As redes são o principal espaço de debate social e não são intermediadas de forma transparente e neutra, mas sim por algoritmos que reproduzem conceitos mais próximos à extrema direita, que apresenta soluções mentirosas, mas simples. Não há uma resposta única para um problema tão complexo e que se confunde não só com a capacidade de mobilização da esquerda, mas com a própria defesa da democracia. Esse é um outro buraco, porque a esquerda está isolada, com poucos setores sociais defendendo a existência de um ambiente democrático.

Você tem dito que Maria Antonieta habita o campo da esquerda também. Por quê?
É um fato histórico que, apesar de não ter acontecido, virou emblemático. Vários traços da vida institucional são, diante dos olhos do povo, luxos aos quais a população não pode se dar. A maneira como os parlamentares vivem é diferente da vida do povo trabalhador. A extrema direita, com muita mentira, cria personagens, como quando o [Jair] Bolsonaro pega o pão dele e coloca leite condensado. Mesmo que ele seja acusado de roubar joias do patrimônio público e vender, ele não aparece ao lado de um garçom servindo vinho tinto e filé. Isso passa a ideia de maior proximidade e identidade. A gente tem que entender a dimensão do desgaste do nosso sistema político e as brechas que a extrema direita ocupa.

A comunicação do governo Lula tem sido muito criticada. Você acha que isso tem prejudicado a imagem dele?
Dizer que não tem problema nenhum na comunicação seria superficial e exagerado, mas na minha interpretação, atribuir todos os problemas à comunicação também é. Quando as pessoas dizem que o problema está na comunicação, elas se referem às redes sociais e usam como sinônimos coisas que não são equivalentes. Sabendo que a extrema direita opera no mundo da desinformação, tudo o que pode ser mal interpretado é previsível na elaboração de políticas. Eu, por exemplo, em tudo o que faço já penso qual é a fake news que pode gerar.

Isso tem sido uma das principais causas da avaliação ruim do governo Lula?
As redes não são só comunicação, elas são mobilização, organização e disputa intensa em torno de ideias. A incompreensão das redes é um dos problemas políticos mais comuns dentro e fora do governo. Mas não é exclusividade do governo. Não gosto da dicotomia falsa do real e do virtual, como falam às vezes. Parece que estamos nos anos 1980 jogando Atari quando eu escuto isso! A vida real das pessoas é atravessada pelo que circula no virtual. A série "Adolescência" não está só na Netflix, ela virou assunto nas escolas, na minha família, entre os meus amigos, na minha terapia. Como tratar o real e o virtual de forma diferente?

Entrando no tema partidário, por que você decidiu deixar o PC do B?
Embora não seja a única razão para minha saída, eu discordava da federação com o PT, porque acho que o PT, enquanto um partido muito grande, tiraria a autonomia do PC do B, que é um partido menor. A frente ampla é imprescindível, mas um partido de esquerda deve cumprir o papel de ser a esquerda dentro disso, e se você está federado com o PT, que é quem tem a responsabilidade de harmonizar essa frente, isso limita a sua capacidade de apresentar ideias. Na política brasileira se normalizou o fato de que as pessoas saem de um partido para disputar a eleição por outro, e esse não foi o meu caso.

Vê alguma chance de se filiar a um partido para sair candidata em 2026?
Quando eu não concorri em 2022, foi muito difícil para as pessoas entenderem. Fui alvo da extrema direita desde o início do processo de impeachment da presidente Dilma. Apesar de ter feito um esforço muito grande para manter a minha saúde mental, tive muito impacto físico da violência que sofri. Mas agora pode ser que exista a possibilidade de eu disputar, porque eu não tenho nenhum impedimento pessoal. Significa que eu vou disputar? Não. Mas sou o nome da esquerda que melhor pontua nas pesquisas para o Senado aqui no Rio Grande do Sul. As pessoas do meu campo político conversam comigo sobre essa possibilidade. Já não tenho mandato há seis anos, não estou pensando em me filiar a um partido apenas para concorrer à eleição. Até posso disputar, mas não são escolhas concatenadas.

Já conversou com algum partido?
Recebi convites para me filiar aos partidos do meu campo. Eles têm sido muito respeitosos, porque sabem que partido para mim é uma coisa séria, não é uma roupa que eu visto só para disputar uma eleição.

Quais foram esses partidos?
Não tem tantos partidos de esquerda assim no Brasil, né? [risos]

Caso Bolsonaro seja preso, você acredita que a direita pode se fortalecer ou enfraquecer para 2026?
Acho evidente que ele preso atrapalha a extrema direita, porque ele é ex-presidente e conta com prestígio popular. Mas isso não tira a competitividade da extrema direita, que mantém uma ofensiva política em torno de ideias que seguirão girando.


RAIO-X | MANUELA D’ÁVILA, 43
Jornalista, foi vereadora, deputada estadual e federal. É coordenadora do Instituto E Se Fosse Você, voltado para o combate à violência política de gênero, deixou o PC do B em 2024 após 25 anos filiada à sigla, pela qual disputou a eleição presidencial de 2018, como vice de Fernando Haddad (PT). Nas últimas duas eleições, prestou consultoria a campanhas pelo país.

Tarifaço desatinado de Trump ameaça o mundo e os EUA, editorial FSP

 Como era esperado e temido, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou uma nova onda de tarifas que pode provocar uma mudança estrutural no comércio global —para muito pior.

A integração de cadeias complexas de produção, desenvolvida ao longo de décadas, está agora sob risco de ruptura e amplo redesenho, o que deve resultar em considerável dano econômico.

Sob a justificativa de uma "emergência nacional", Trump impôs tarifas recíprocas, calculadas sabe-se lá como, a partir de 10%. No caso dos produtos da China, foram 34%, em adição aos 20% já cobrados antes.

União Europeia será taxada em 20%, enquanto Canadá e México, já penalizados desde março, escaparam de novos aumentos.

Há ainda setores que terão tratamento específico, caso de automóveis, aço, alumínio, semicondutores, farmacêuticos e determinados produtos energéticos.

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No agregado, a tarifa média passou de cerca de 9% para entre 19% e 25%, a depender de como será o desenho final, ainda incerto. É o maior patamar desde o século 19, superando até mesmo o protecionismo dos anos 1930.

Por trás do apelo da medida está a arcaica crença mercantilista de que déficits comerciais são necessariamente uma perda, algo já desmontado à exaustão pela teoria econômica —e pela prática.

Como já explicou didaticamente um antecessor republicano de Trump, Ronald Reagan, o protecionismo tarifário pode até preservar empregos locais por um breve período de tempo. Depois, as empresas se tornam ineficientes e dependentes dos favores do governo, as retaliações estrangeiras emperram o comércio global, os preços sobem, os mercados encolhem e milhões são demitidos.

A Casa Branca disse que está aberta a negociações, e muitos países que têm nos EUA seu mercado principal devem aceitar barganhas. De todo modo, o dano está feito e terá consequências. A inflação americana, já elevada pós-pandemia, deve subir para mais de 3%, talvez 4% neste ano.

O suposto estímulo à reindustrialização não é claro —as decisões empresariais devem ser travadas pela própria incerteza do processo. O risco de paralisia de investimentos é grande e poderá jogar o país numa recessão.

Se não se conseguir criar um bom ambiente econômico com a agenda de corte de impostos e desregulamentação ainda por vir, as eleições legislativas de 2026 podem reavivar os democratas.

Não por acaso, deve haver forte resistência ao tarifaço por parte de parlamentares republicanos, também pressionados por lobbies de setores prejudicados. Isolar o país do comércio mundial, ademais, pode empurrar emergentes para a órbita chinesa.

O Brasil, que não tem superávit no comércio com os EUA, sentiu impacto menor, com cobrança de 10%. O governo deve evitar retaliações precipitadas. Uma análise cuidadosa é essencial para não incorrer em mais perdas num conflito que já ameaça o mundo.

editoriais@grupofolha.com.br

quinta-feira, 3 de abril de 2025

Elon Musk usa fortuna para zombar da democracia eleitoral, Lucia Guimarães, FSP

 Repórteres que cobrem política fariam bem se agissem na contramão do provérbio "a cavalo dado não se olha os dentes". A tarde do tarifaço trumpista foi interrompida por um suspeito "furo exclusivo" do site Politico, sobre a partida antecipada de Elon Musk, após o fiasco da eleição para a vaga de juiz na Suprema Corte do estado de Wisconsin.

O bilionário nascido e criado na Pretória do apartheid gastou US$ 20 milhões tentando eleger o juiz trumpista Brad Schimel, num pleito que teria sido ignorado pela grande maioria dos americanos, não fosse a entrada de Elon Musk e de outros bilionários na campanha mais cara da história do Judiciário americano.

A imagem mostra a silhueta de uma pessoa em um ambiente noturno, com uma fonte de luz ao fundo. A figura está de perfil, destacando-se contra um fundo mais claro. A iluminação suave cria um contraste entre a silhueta e o ambiente ao redor.
O bilionário, CEO da Tesla e SpaceX e dono do X, Elon Musk - Roberto Schmidt/4.mar.25/AFP

Além da doação, Musk trouxe uma tropa de terceirizados de outros estados para bater de porta em porta pedindo apoio ao candidato e entregou dois cheques de US$ 1 milhão no domingo (30) como recompensa para os eleitores que assinaram uma "petição condenando juízes ativistas." É o que Jorge Amado teria descrito como coronéis do cacau comprando votos.

A manchete sobre a renúncia de Musk para retornar à gestão de suas empresas, inclusive a combalida Tesla, emergiu apenas horas depois do resultado em Wisconsin. Andrew Card, ex-chefe de gabinete de George W. Bush, dizia que uma Casa Branca organizada vaza informações de propósito, mas uma Casa Branca incompetente apenas vaza. A ideia de que Trump subitamente interrompeu o bromance com o homem mais rico do mundo tem, no momento, tanta credibilidade quanto aparições noturnas da mula sem cabeça.

Como a amaldiçoada figura do nosso folclore, o fantasma do impopular empresário deve continuar a exercer poder e causar ruptura no governo federal. Qualquer observador atento das encenações de mídia protagonizadas pela dupla Trump-Musk deve ter notado que há um elemento de temor do homem mais rico do mundo que, não só investiu quase US$ 300 milhões para eleger o presidente, como avisou, dedo em riste, aos deputados republicanos que não votarem alinhados com Trump: ousem me contrariar e eu financio um adversário na eleição legislativa de 2026.

O medo de Trump, somado ao medo dos bilhões de Musk é a força nuclear governante da política americana do momento, em que o partido do presidente controla as duas Casas do Congresso. Musk deve seu poder desgovernado —acumulado graças a uma fortuna subsidiada pelo contribuinte americano— a uma decisão emitida pela Suprema Corte há 15 anos.

Em 2010, o tribunal máximo dos EUA deu vitória a lobistas conservadores acobertados por uma ONG, a Citizens United, declarando que limitar doações de empresas e sindicatos a campanhas seria violar a Primeira Emenda da Constituição, que garante a liberdade de expressão. A decisão escancarou a porteira para a influência do dinheiro na política americana e desaguou no Frankenstein sul-africano, hoje decidido a ser coroado o banqueiro do trumpismo.

É cedo para avaliar a derrota em Wisconsin como um basta das massas furiosas para atravessar a ponte levadiça que as separa do castelo feudal. Mas a campanha vitoriosa foi concentrada em identificar Musk como o vilão. O juiz redator do voto pela Citizens United, em 2010, escreveu que "a aparência de influência ou acesso não fará com que o eleitorado perca a fé na nossa democracia."

E Musk respondeu: "Segure a minha cerveja."