domingo, 24 de novembro de 2024

Ruy Castro - Cada qual com seu gimmick, FSP

 Há não muito, falei aqui ("Fantasiados, acrobáticos e pirotécnicos", 6/10) dos artistas que não se contentam em cantar —cada qual adota um gimmick que o consagra, como simular dançar para trás, despedaçar guitarras ou comer morcegos em cena. Fui levado a essa ideia por Ivete Sangalo, que entrou no palco voando de tirolesa no Rock in Rio e me fez perguntar o que isto tinha a ver com música. Mas, então, concluí que em todos os tempos e lugares os artistas apelaram para algum truque, achado ou acessório, e fizeram disso sua marca.

O jazz sempre esteve cheio deles. Dizzy Gillespie inventou um trompete com a campânula para cima —sem a menor função e que, por isso, ninguém adotou. O pianista Erroll Garner, baixinho, sentava-se sobre dois ou três catálogos telefônicos para alcançar o teclado —por que não rodopiava o banquinho? Thelonious Monk trocava de chapéu a cada show. Duke Ellington nunca repetia um terno. O contrabaixista Slam Stewart inventou a técnica de duplicar à bocca chiusa o som que tirava do cello com o arco. E Miles Davis, quando cortou relações com o mundo, passou a tocar de costas para a plateia.

Os lenços no bolso do paletó dos músicos de Glenn Miller tinham de estar perfeitamente alinhados. Todas as big bands de swing obrigavam seus homens a coreografias aéreas com os trombones. Xavier Cugat regia sua orquestra de rumbas com um cachorro no pulso. E Perez Prado, o rei do mambo, emitia gritos de "Ugh!" como se estivesse tendo os testículos espremidos com alicate.

No Brasil, as antigas duplas sertanejas vestiam-se à moda das festas juninas, com chapéu de palha, camisa xadrez e dente preto. As duplas fake de hoje preferem se fantasiar de cowboy americano. Aliás, o falecido Waldik Soriano, nos anos 1960, já se vestia de Bat Masterson. O ultrarromântico Orlando Dias chorava de verdade ao cantar e tirava um enorme lenço do bolso para se enxugar. Os joelhos de Nara Leão marcaram época até serem desbancados pelas minissaias de Wanderléa.

Elis Regina, com seus vestidinhos cavados e braços em hélice, foi a introdutora das axilas na música brasileira.

Bruno Boghossian- Golpismo radical traça fronteira definitiva entre direita e bolsonarismo, FSP

 

BRASÍLIA

Há anos, o bolsonarismo faz a exibição de escabrosidades que testam os limites das elites políticas de direita. Pode ser uma defesa apaixonada da tortura, uma manifestação sombria de apreço pela ditadura, a sabotagem à vacinação, uma cruzada pela destruição institucional ou um extravio de joias milionárias vendidas como muamba.

Com a ressalva de um punhado de deserções, a fidelidade e o entusiasmo da direita por Jair Bolsonaro se mostraram mais do que firmes. Sobreviveram, inclusive, a uma derrota nas urnas atribuída a seu radicalismo. Por devoção genuína a esses princípios ou pragmatismo puro, os principais líderes políticos desse campo ficaram ao lado de um ex-presidente que nunca escondeu quem era.

Um atentado, um plano de assassinato e um indiciamento por tentativa de golpe estabelecem uma linha divisória definitiva. De um lado, fica delimitada a direita, que pode ser mais ou menos conservadora, mas segue regras civilizacionais e democráticas. Do outro, está o bolsonarismo.

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e o ex-presidente Jair Bolsonaro - Rafaela Araújo/Folhapress

A sobrevivência de Jair Bolsonaro será a bandeira única de seu grupo a partir de agora. Estará ancorada numa guerra cada vez mais dura com o STF e na insistência de uma candidatura do ex-presidente, mesmo que esteja impedido de disputar. O que resta da direita, por sua vez, deveria cuidar da própria vida como uma força política independente.

A turma de Bolsonaro tenta confundir as duas coisas, com o objetivo de convencer políticos que correm na raia da direita, dos extremistas aos tradicionais, de que o ex-presidente é um líder imprescindível. Quando a PF revelou o plano para matar Lula e Alexandre de Moraes, o vereador Carlos Bolsonaro perguntou por onde andava "o tal Pablo Marçal" naquele momento delicado em que a direita deveria estar unida.

O filho do ex-presidente mirou em Marçal para acertar gente como Tarcísio de Freitas, que se mostra dependente do capitão, mas flerta com a ideia de um voo solo. O governador de São Paulo, que tenta desfilar com um figurino da direita tradicional, vestiu a farda do bolsonarismo: defendeu o padrinho e aderiu à cegueira deliberada diante das provas contra o ex-presidente. Com a fronteira traçada, ele escolheu seu lado.


Hélio Schwartsman - Sobre a liberdade, FSP

 Gostei de "On Freedom", de Timothy Snyder. Ele parte de uma distinção radical entre liberdades negativas e positivas e toma partido das segundas.


Para Snyder, nós até podemos achar que somos livres quando o Estado não nos impõe restrições, mas a verdadeira liberdade é muito mais do que isso. Só somos realmente livres quando temos condições de fazer escolhas significativas para nós mesmos e para as comunidades em que vivemos. A liberdade é, para o autor, o valor que torna todos os outros valores possíveis.

Ilustração de Annette Schwartsman para a coluna de Hélio Schwartsman
Ilustração de Annette Schwartsman para a coluna de Hélio Schwartsman - Annette Schwartsman


Ao longo do livro, Snyder faz uma espécie de radiografia dos domínios que ele entende necessários para que possamos desenvolver as capacidades que nos permitirão tomar decisões de modo autônomo e fazer boas escolhas. Aí entram vários ingredientes, como acesso a boa informação, empatia e algum tipo de proteção contra a manipulação por algoritmos.

É difícil discordar da tese de que as liberdades positivas, especialmente do jeito que o autor as descreve, formam um conjunto mais completo (e tentador) que o oferecido pelas negativas. Creio, porém, que Snyder foi rápido e veemente demais ao descartar as negativas como ilusão ou propaganda direitista.
Snyder é um autor "hands on". Seu trabalho de historiador com dissidentes do antigo bloco comunista da Europa Oriental o levou a tornar-se um dos mais severos críticos dos novos autocratas. Acho que é esse aspecto mais militante de sua trajetória que explica a virulência para com as liberdades negativas. Elas acabaram se tornando bandeira de grupos radicais, como trumpistas, muskitas, bolsonaristas e mileistas, e Snyder têm muitos e bons motivos para opor-se a essa agenda.

Penso, contudo, que ele exagerou na dose. Um exemplo: revogar as leis segregacionistas que vigoraram nos EUA entre fins do século 19 e os anos 1960 —caso incontroverso de liberdade negativa— foi um passo fundamental, ainda que insuficiente, na luta contra o racismo.

E também não acho que seja tão simples descartar os riscos que Isaiah Berlin mostrou existirem nas liberdades positivas.