terça-feira, 1 de outubro de 2024

É injusto punir beneficiário do Bolsa Família que aposta em bets, diz pesquisadora, FSP (definitivo)

 

São Paulo

A pesquisadora Laura Müller Machado, professora do Insper e ex-secretária de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo, considera "injusto" retirar o direito dos participantes do Bolsa Família de usarem como quiserem o cartão do benefício, como milhões têm feito nas apostas em bets.

Para Machado, esse é um problema de saúde pública, e o governo deveria se preocupar em regular a publicidade e informar a população sobre os malefícios da atividade, não em punir quem joga.

A economista e pesquisadora Laura Müller Machado, do Insper.
A economista e pesquisadora Laura Müller Machado, do Insper. - Zanone Fraissat/Folhapress - 23.set.21

Ela afirma ainda que trata-se de uma "vitória" o Bolsa Família ter alcançado o atual patamar em beneficiários e valores. Mas que o governo falha gravemente ao não oferecer mais nada no programa, como mecanismos de inclusão produtiva.

"Damos o Bolsa Família. Ótimo. E daí? Qual é o serviço que vai incluir essas pessoas, que vai conectá-las ao mercado de trabalho?", questiona. Machado diz ainda que o piso de R$ 600 pago de forma indiscriminada "não faz sentido nenhum".

O Bolsa Família atende hoje 20,7 milhões de famílias, o que leva o benefício a alcançar 1 em cada 4 brasileiros. O valor quadruplicou durante a disputa eleitoral entre Lula e Jair Bolsonaro, numa espécie de quem dá mais, e hoje paga cerca de R$ 600, em média. O orçamento saltou de R$ 41 bilhões em 2019 para R$ 169 bilhões em 2024. Como avalia o resultado da forte expansão?

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Gostaria que meu país pudesse ser o mais generoso possível com os vulneráveis, com responsabilidade fiscal. Pessoalmente, fico muito feliz e acho uma vitória que tenhamos aumentado o valor do Bolsa Família. Mas, assim como o valor melhorou, gostaria que o desenho do programa fosse o melhor possível também.

Porque entendo que existem restrições legais e fiscais, de limite orçamentário. Mas não há restrição para termos um desenho adequado. Já há consenso há muito tempo de que um programa adequado é o que leva em conta o per capita. Caso contrário, você cria incentivos perversos de diversas naturezas.

No passado, a gente tinha programa per capita, com um desenho amigável para transição para o mercado de trabalho. Hoje, não temos mais. Agora, temos um piso, que não faz sentido nenhum. Pois um casal recebe R$ 600. E um único indivíduo também recebe R$ 600, o que é injusto. Não faz sentido que um casal em condição de vulnerabilidade receba um valor per capita menor que uma pessoa sozinha.

Além de isso ser injusto, há um incentivo às pessoas fazerem declarações incorretas. Uma única família acaba declarando serem duas, porque isso é financeiramente benéfico. Esse desenho inadequado do programa também acaba gerando uma ineficiência grande.

Mas, tão importante quanto isso, é a transição para o mercado de trabalho. Desde os anos 2000, o percentual de ocupados entre os mais vulneráveis cai ano após ano. Eu gostaria que esses vulneráveis arrumassem trabalho. Queria dar um prêmio a eles, não tirá-los do Bolsa Família, porque é muito difícil as pessoas conseguirem uma ocupação digna.

Hoje, quem consegue um trabalho tem como prêmio a perda do Bolsa Família. Deveríamos mantê-la com o benefício por um período. Caso contrário, só desincentivamos, atrapalhando a transição dela de volta ao mercado de trabalho. O mais adequado seria uma transição lenta, segura, onde se dê tempo à pessoa para que ganhe segurança no mercado de trabalho, e que se vá tirando [o Bolsa Família] aos poucos.

Sobre esse ponto, o Brasil tem mais de uma dezena de estados em que há mais beneficiários do Bolsa Família do que trabalhadores formais. Em muitos casos, os vulneráveis não acessam o mercado formal, ficando à mercê de ocupações informais precárias, que podem pagar menos que o Bolsa Família. Há um desincentivo a buscarem trabalho?


Existe uma coisa chamada salário reserva. Que todos os seres humanos têm. É o valor mínimo pelo qual você aceita começar a trabalhar. Um fenômeno que um programa como esse gera é aumentar o salário reserva. E isso é bom. Porque, por exemplo, você previne trabalho escravo. Ninguém vai precisar mais trabalhar por menos de R$ 600.

Mas se estamos induzindo a população a ter um salário reserva maior, temos que ter um mercado de trabalho que ofereça para ela, no mínimo, um valor um pouco maior do que o Bolsa Família. O problema está na transição de falarmos para as pessoas que se elas arrumarem um trabalho, eu tiro o Bolsa Família. E elas vão ter de trocar uma coisa segura por outra insegura, o que é inviável.

Aumentar o valor do benefício é um mérito. Agora, não ter lançado a transição desse modelo de política social para o mercado de trabalho foi um erro. O que precisamos, mais do que brigar com o valor do Bolsa Família, é adequar uma política social que transite para o mercado de trabalho de uma maneira suave e inteligente.

Porque fazer um Bolsa Família desse tamanho sem política de trabalho para a população pobre, vai dar besteira mesmo. E é uma baita exclusão, porque a gente vive numa sociedade pautada pelo trabalho. Goste-se ou não, para você se inserir socialmente é preciso estar trabalhando.

E o que fazemos ao tirar o Bolsa Família de quem consegue trabalho é gerar insegurança. E não temos uma rede de cuidado com o trabalhador, para qualificá-lo profissionalmente, para dar acesso a microcrédito, intermediação de mão de obra, ensinar ele a embalar o produto dele para valer mais. O que a gente faz? Transferimos renda, mas não cuidamos da inserção dessas pessoas no mercado de trabalho.

Estava ouvindo um caso de um motorista de fretes que se enrolou com dívidas e teve de vender seu caminhão. Entrou para o Bolsa Família e ficou deprimido. Ninguém disse a ele que poderia trabalhar como Uber e tirar R$ 3.000 por mês. Porque ele já tinha uma profissão, uma carreira, e podia continuar nela. Mas não tem ajuda.

Antes, com o Brasil Sem Miséria [2011-2016, no governo Dilma Rousseff], tínhamos 17 ações, e o Bolsa Família era uma delas, para garantir a inclusão dessas pessoas no mercado de trabalho. Isso não existe mais.

Ou seja, isso deveria ser uma iniciativa do governo federal, de reorganizar o programa e aperfeiçoa-lo, em vez de simplesmente transferir renda de forma até desigual, como você disse no início, certo?

Sim. Eu não estou vendo nenhuma política de inclusão no trabalho para o mais pobre. Onde é que está? Damos o Bolsa Família. Ótimo. E daí? Qual é o serviço que vai incluir essas pessoas, que vai conectá-las ao mercado de trabalho? É preciso microcrédito, intermediação de mão de obra, treinamento. Mas, cadê?

Precisamos conversar com a população, entender o que ela precisa, incluir essas pessoas, ajudá-las a fazer um "match" entre sua experiência e as necessidades do mercado.

O Brasil e o mundo inteiro se empolgou com a transferência de renda porque é mais fácil, mas está faltando complemento. O Brasil Sem Miséria era lindo, gigante. Tinha duas frentes: política de trabalho para o meio rural e o meio urbano, pautados em agricultura familiar e em qualificação profissional, com intermediação de mão de obra.

Hoje, quem está fazendo programa de inclusão ao trabalho são os estados. Em Minas Gerais, com o Percursos Gerais, de combate à pobreza rural; no Paraná, com a Nossa Gente Paraná, com inclusão social. Mas no governo federal, não vejo mais. E os desenhistas e implementadores do Brasil Sem Miséria estão por aí, no BNDES, espalhados pelo governo. Não sei, não entendo.


Na semana passada, uma nota técnica do Banco Central revelou que 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família fizeram apostas em bets em agosto, num total de R$ 3 bilhões, com mediana de gastos de R$ 100. Alguns sugerem que o Bolsa Família talvez esteja sendo pago às pessoas erradas, pois é um dinheiro para sobrevivência, ou que o valor é alto demais. Como você avalia esse fenômeno?

A população como um todo está fazendo isso, e o beneficiário também faz parte da população. Com o recurso que ele tem. Pois, se entendermos isso como um fenômeno de saúde e de vício, ele vai abranger toda a população, igual à Covid. Pega um monte de gente, pega todo mundo.

Temos um histórico enorme de combater jogo do bicho, o cigarro. Se você comprar cigarro vai estar escrito no verso, com uma foto horrorosa, uma mensagem explicando todas as coisas ruins que vão acontecer com você.

Compra de bebida é a mesma coisa. É regulado. Esses consumos danosos têm de estar regulados. Como é que pode fazer propaganda desse jeito de jogos? Um monte de comercial na TV, vídeos no YouTube, Instagram, explicando para as pessoas que aquilo é um jeito fácil de ganhar a vida. E vamos punir as pessoas que jogam?

Isso aí é vício. A pessoa é enganada, e não tem educação financeira. A população não entende as implicações que pode ter, pois está sendo enganada. É preciso regular a propaganda, informar as pessoas do que se trata. Informar o percentual dos que de fato ganham e têm essa vida maravilhosa que aparece na propaganda.

O governo avalia medidas para interditar o uso do cartão do Bolsa Família em apostas eletrônicas. Como avalia a medida?

Isso é mais um problema de saúde pública do que do benefício do Bolsa Família. A população como um todo que faz apostas soma um número infinitamente maior. Acho muito triste o que está acontecendo. O jeito certo de fazer as coisas é explicar para as pessoas as consequências.

Essa coisa de tolher e dizer o que a pessoa tem que fazer... Eu acho injusto. A pessoa tem um dinheiro ali no final do mês e ela quer se divertir, comprar uma cerveja, sei lá. As pessoas têm esse direito, de se divertir à sua maneira. Mas o que elas têm também direito é de estar informadas sobre as consequências das coisas que elas fazem e realmente bem informadas sobre do que se trata essas apostas.

Do que eu tenho visto, fico é com dó das pessoas. Todos esses influenciadores na rede digital vendendo uma vida ótima, e o pessoal do Bolsa Família nem trabalho tem. Têm de pedir para trabalhar. Aí ficam o dia inteiro no celular, olhando essas coisas aí, que estão contando pra ela que ela vai enriquecer rápido se fizer aquilo. Uma população sem educação financeira, com esse nível de propaganda, dá nisso.

LAURA MÜLLER MACHADO
Mestre em Economia Aplicada pela USP, é professora do Insper e foi secretária de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo. É colunista da Folha.

Caso Amazonas Energia provoca vários espantos, Jerson Kelman, FSP

 

A área de concessão da Amazonas Energia (AE) é campeã nacional no índice de perdas não técnicas de energia (um eufemismo para furto). Com arrecadação claudicante, a AE ficou insustentável, inclusive deixando de pagar pela energia que compra das térmicas da Eletrobras.

O governo teve de fazer escolhas. Uma possibilidade seria intervir na concessionária ou declarar a caducidade da concessão. Faria sentido se as atuais dificuldades de AE fossem devidas somente à má gestão. Não parece ser o caso.

Outra possibilidade seria ajudar a concessionária, pelo menos transitoriamente. Idealmente essa ajuda deveria se materializar como despesa no Orçamento da União. Porém, dada a situação fiscal do país, realisticamente o custo da ajuda se materializará encarecendo a conta de luz de todos os brasileiros.

A ajuda deveria ser dada ao atual ou a um novo controlador da AE? A escolha, aliás, correta, foi pela segunda opção. Quem deveria ser o novo controlador e qual deveria ser o tamanho da ajuda? O razoável teria sido estabelecer uma competição entre eventuais candidatos a controlador, selecionando aquele que oferecesse a continuidade do serviço para os amazonenses e mínimo custo para os consumidores de todo o país. Em vez disso, o governo, ao que tudo indica, escolheu a Âmbar.

Fachada Aneel
Sede da Agência Nacional de Energia Elétrica, em Brasília - Aneel/Divulgação

"Ao que tudo indica" porque, num primeiro movimento, a Âmbar comprou as térmicas "micadas" da Eletrobras. Poucos entenderam. Para a Eletrobras, parecia um excelente negócio se livrar de unidades de energia cujo único cliente, a AE, era inadimplente. Mas, para a Âmbar... por que fazer tão mau negócio? A resposta veio pouco depois da transação, por meio da edição da medida provisória 1.232/2024, que transformou os contratos "micados" entre as térmicas e a AE em contratos de energia de reserva, com garantia de adimplemento. Explicação oficial para essa sequência de eventos: mera coincidência. Se foi isso mesmo, a Âmbar é muito sortuda!

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A medida provisória também determinou que a Aneel examinasse o plano de transferência do controle acionário preparado pela dupla AE-Âmbar e o aprovasse caso fosse demonstrado que sua implementação ensejaria a recuperação da sustentabilidade econômico-financeira da concessionária, com o menor impacto tarifário possível. A área técnica da Aneel examinou o plano e o rejeitou, porque oneraria as contas de luz de todos os brasileiros em R$ 16 bilhões. O necessário, segundo técnicos da Aneel, seria apenas a metade dessa quantia.

A AE entrou na Justiça e obteve uma liminar decidida por juíza de primeira instância da Justiça Federal no Amazonas dando prazo de 48 horas para a diretoria da Aneel "aprovar imediatamente o plano de transferência de controle societário na forma apresentada... pela autora ...". É isso mesmo: a liminar não determina que a Aneel decida sobre o plano, e sim que o acate como proposto, em implícita manifestação de desprezo pelo conhecimento técnico dos servidores da Aneel. Um espanto!

A diretoria da Aneel se reuniu pouco antes do término do prazo da liminar, mas não conseguiu chegar a uma decisão. Ocorreu um empate entre duas posições. O governo remanesce sem indicar o quinto diretor que teria desempatado essa e outras decisões. Um espanto!

Maria Lucia Karam - Presunção de inocência também vale para acusações de cunho sexual. FSP

 

Maria Lucia Karam

Juíza-auditora na Justiça Militar Federal e defensora pública no Rio de Janeiro; foi juíza de direito no TJ-RJ

atribuição ao ex-ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos), logo exonerado, de condutas de importunação e assédio sexual sugere uma advertência.

Não é possível se prosseguir corroendo a garantia da presunção de inocência em nome de uma superproteção a mulheres que se dizem vítimas de ofensas relacionadas a seu gênero ou sexualidade.

Sustenta-se que sua palavra seria inquestionável, sempre verdadeira e suficiente até mesmo quando sob anonimato. Assim advogam-se condenações sem processo, simplesmente desprezando o princípio "nulla poena sine judicio" ("nenhuma pena sem lei"). O processo se tornaria uma farsa, pois, antes mesmo de seu início, já se teria estabelecido a verdade, a ser veiculada por uma acusação incontestável.

Silvio Almeida, ex-ministro dos Direitos Humanos, que foi demitido após acusações de assédio sexual - Silvio Almeida no Instagram/Silvio Almeida no Instagram

Já nas primeiras eras de elaboração do direito questionava-se não apenas a solitária palavra de autoproclamadas vítimas, mas a própria palavra de uma só testemunha. É lição do direito romano: "testis unus, testis nullus" ("testemunha única, testemunha nula"). Mas, há lição mais recente, consagrada com os direitos humanos fundamentais: dispõe a garantia da presunção de inocência que a acusação não passa de hipótese a ser ou não comprovada. Como os demais elementos trazidos pela acusação, a palavra da apontada vítima nada mais é do que uma versão do alegado fato, sujeitando-se a questionamentos e dúvidas que, submetidos ao contraditório, serão ou não desfeitos. Antes e no curso do processo não há verdade, toda palavra de qualquer apontada vítima sempre sendo questionável. Verdade sobre a alegada prática de um crime só é algo possível de ser reconhecido se e quando acontecer condenação definitiva ao final de processo regularmente desenvolvido.

O discurso que não se acanha em violentar a presunção de inocência, pretendendo tornar inquestionável a palavra de mulheres vítimas, apela para uma suposta posição de fragilidade e opressão em que estariam. Mas, no processo penal, vítimas não são frágeis ou oprimidas. Estão sim alinhadas com o Estado, com o Ministério Público, com a acusação; isto é, com o lado forte da relação ali estabelecida, visando impor o poder punitivo —poder dado ao Estado de, através da imposição da pena, deliberadamente infligir sofrimento a autores de condutas criminalizadas.

Pena significa sofrimento. No processo penal, quem é frágil é o réu, ameaçado de sofrer o peso desse poder. Esclarece o jurista italiano Luigi Ferrajoli: "O direito penal, em seu modelo garantista, equivale à lei do mais fraco que, se no momento do crime é a vítima, no momento do processo é sempre o réu, cujos direitos e garantias são —essas sim— leis do mais fraco".

Constrangimentos ao livre exercício da sexualidade, desigualdade entre os gêneros ou quaisquer outras relações hierarquizadas e discriminatórias jamais poderão ser superados com o sacrifício de direitos fundamentais. Ao contrário. Direitos fundamentais, como a garantia da presunção de inocência, pilar do Estado democrático de Direito, hão de ser sempre reafirmados. Só assim poderemos ter sociedades mais iguais e mais justas.