Houve algo de teatral na operação da Polícia Federal para trazer de volta à vitrine o escândalo da rede varejista Americanas.
Depois do vexame da Comissão Parlamentar de Inquérito, que não identificou responsáveis por um calote de R$ 47,9 bilhões, é nela e no Ministério Público que se depositam as esperanças de que a maior fraude corporativa da história de Pindorama seja exposta ao público. É coisa de R$ 25,2 bilhões.
Na sua expressão mais simples, já se sabe o seguinte: Miguel Gutierrez, o CEO da Americanas por mais de uma década, tinha uma sala exclusiva no prédio da empresa, onde só ele entrava.
A partir de julho de 2022, quando soube que seria substituído no comando da empresa, começou a transferir bens para parentes e vendeu ações da Americanas no valor de R$ 171,8 milhões.
Com nacionalidade espanhola, Gutierrez deixou o Brasil em 2023. Na semana passada foi expedido um mandado de prisão contra o doutor.
No segundo semestre de 2022, quando a Americanas se apresentava ao mercado como um prodígio de gestão, diretores da empresa desfizeram-se de ações no valor de R$ 241,1 milhões.
Vinte dias antes do estouro, Anna Saicali, uma de suas diretoras, transferiu para um filho um patrimônio de R$ 13 milhões e vendeu ações da empresa no valor de R$ 59,6 milhões. Contra ela a PF também expediu um mandado de prisão. Saicali deixou o Brasil.
Outro diretor, José Timotheo de Barros desfez-se de ações da Americanas por R$ 20,7 milhões.
A investigação recente estimou que a fraude pode ter começado em 2007. Em agosto de 2022, diretores da Americanas começaram uma operação para escondê-la.
Tudo bem, aceitando-se que ninguém havia desconfiado. Mais: como seria possível esconder a inexistência de R$ 25,2 bilhões? Sobretudo se, de uma hora para outra, os diretores começaram a vender suas ações.
Para que um esquema desses ficasse de pé, seriam necessários milhões de otários dentro e fora da Americanas. Se isso pudesse ser possível, sabe-se agora que no dia 27 de dezembro de 2022 a nova diretoria foi informada do que se chamaria de "inconsistência contábil".
A Polícia Federal já localizou contubérnios entre a turma da Americanas e funcionários de bancos encarregados de analisar seus números, bem como acertos com dois bancos para direcionar aplicações. A PF e o Ministério Público foram além da superfície do caso.
A Americanas explodiu em janeiro de 2023. Passou-se mais de um ano e até agora ninguém havia sido responsabilizado. A Comissão de Valores Mobiliários abriu inquéritos que ainda não fulanizaram responsáveis. (Nos Estados Unidos, o escândalo da empresa de energia Enron estourou em 2001. Um ano depois seu gênio financeiro tornou-se réu e, em 2004, tomou uma cana de dez anos.)
No Brasil, até agora, só foram penalizados milhares de acionistas, centenas de funcionários que perderam os empregos e 8.000 credores.
QUEM DECIDIU SACAR R$ 800 MILHÕES?
O país está assistindo ao funeral togado da Lava Jato. A ação da Polícia Federal e do Ministério Público pode impedir que aconteça o mesmo com a Americanas.
A turma da varejista era audaciosa. Remunerava-se regiamente e trocava mensagens explicitando a maquiagem de seus balanços. Se tudo isso fosse pouco, no dia 11 de janeiro de 2023 tentaram sacar R$ 800 milhões da conta da empresa no banco BTG Pactual. O BTG não pagou.
As investigações poderão revelar o processo decisório que instruiu essa iniciativa. Afinal, mesmo admitindo-a que ninguém sabia da fraude, está comprovado que o novo CEO, Sérgio Rial, soube do rombo no dia 2. (Seu diretor financeiro soube que havia gatos na tuba uma semana antes.)
No dia 4, começou-se a falar em "inconsistências contábeis". No dia 5, Rial contou o caso ao acionista de referência Carlos Alberto Sicupira, que, nas suas palavras, ficou "chocado". Sicupira era um dos astros do que se supunha ser um novo tipo de gestão.
No dia 11, horas depois da tentativa de saque, a Americanas explodiu.
A fraude da Americanas é o maior escândalo corporativo da história de Pindorama. Não envolve um só centavo de dinheiro público. Tudo coisa da iniciativa privada, com personagens que se apresentavam como modelares, meritocráticos e inovadores. (A rede varejista pagava em até 200 dias contas que devia ter pago em 90, mas essa é outra história.)
Desde 2023 o caso da Americanas inova também tecendo o grande tapete para debaixo do qual tenta-se varrer o escândalo.
A entrada da Polícia Federal e do Ministério Público na cena é uma esperança.
Valeria a pena que colocassem na operação um delegado e um procurador munidos de um mapa dos erros da Lava Jato. Eles teriam a tarefa de alertar os colegas para os riscos de ações teatrais e da manipulação da imprensa. No caso da Americanas, nada disso é necessário. Basta seguir o roteiro de fatos, cifras e golpes desprezados pela Comissão Parlamentar de Inquérito.