sexta-feira, 5 de abril de 2024

LENIO LUIZ STRECK - O que não está dito sobre o 'palavrório de Gilmar', FSP

 Lenio Luiz Streck

Jurista, professor e advogado, é autor, entre outros, de "O que é Fazer a Coisa Certa no Direito" (ed. Dialética)

No último 29 de março, esta Folha fez contundente editorial criticando o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal ("O palavrório de Gilmar"). Diz que o magistrado faz papel de comentarista político e que desfia opiniões sobre investigações. Segundo o editorial, Gilmar deveria exercitar a autocontenção.

A crítica é daquelas que, lida sem contexto, terá a aprovação de qualquer leitor. Porém, todo texto tem contexto. Para começar, a Folha poderia explicar por que demanda tanto por entrevistas de julgadores. Por acaso deixaria de publicar o que dizem ministros? Ou vai publicar apenas opiniões que coincidem com as do jornal?

O decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes - Pedro Ladeira/Folhapress - Folhapress

Há que se fazer desleituras de falas, como diria Harold Bloom. O jornal exige autocontenção de Gilmar e do STF. Pois aqui é que reside o problema do contexto: tivesse a corte feito autocontenção quando dos ataques que sofreu, e da omissão do Ministério Público, e poderíamos ter perdido a democracia. Por deixar de lado a autocontenção, o Supremo, como razão última, lançou mão do seu regimento interno. E o resto da história conhecemos.

Ativismo da Suprema Corte? Uma desleitura, como em um palimpsesto, mostrará as múltiplas camadas escondidas da institucionalidade. Algumas, uma vez descascadas, mostrarão que, em momentos decisivos, a autocontenção seria —como já foi— destruidora. Pior: autodestruidora. O protagonismo de ministros e da corte foram decisivos na pandemia e no Brasil recente. Não deveria ser assim? Talvez não. Mas aconteceu, por ter sido necessário. E ainda bem, convenhamos.

Nessa desleitura, lembre-se que a Lei da Magistratura (Loman), invocada no editorial, é fruto da ditadura militar. A ditadura (cuja alvorada a Folha confessou ter apoiado) editou a lei para calar os magistrados. Cumprida à risca, a desejada autocontenção venceria. E o Brasil perderia.

Não há texto sem contexto. Há uma poluição semântica de palavras e ações. Descrições sobre o Brasil —que ainda cura as feridas da tentativa de golpe— podem ser confundidas com "palavrório". Ora, parafraseando o best-seller de Lionel Shriver ("Precisamos Falar sobre Kevin", o menino que matou 11 coleguinhas de escola), "precisamos falar sobre a tentativa de golpe no Brasil". Vamos dar o nome às coisas: acabamos de escapar de um golpe, não de um arrastão.

Ainda no contexto, deveríamos descobrir as razões pelas quais ainda precisamos do protagonismo do Supremo. Por que precisamos tanto de ministros com "palavrórios"?

Talvez a própria falta de editoriais de grandes veículos em momentos oportunos faz com que juízes da Suprema Corte, por adaptação darwiniana, produzam seus próprios "editoriais" —que por vezes pedem socorro à própria mídia. Da mesma forma que a mídia pede socorro ao Judiciário. Afinal, estamos falando da preservação da democracia. Ou só vale para um lado?

Decanos de Suprema Corte falam. Descrevem. Por vezes, prescrevem. Afinal, o que dizer diante de um twitter de um general que ameaça a corte? Esperar o editorial?

Contextos que explicam textos. O direito diz que o papel de um tribunal constitucional é o de fiador da democracia. Só que, no Brasil, existe gente querendo enforcar ministros. Quem defende a Suprema Corte?

Quando o ministro Gilmar diz que "derrotamos o autoritarismo" ou avalia como eficiente a investigação da polícia sobre o golpe, ele não age como comentarista político, como diz o editorial. Não. Ele apenas descreve, com densidade histórica, o estado da arte da recém-salva democracia. É disso que se trata.

Dado o que passamos, isso (até) é alvissareiro. Afinal, lá atrás, há 60 anos, tivemos presidente do STF que, chamado na madrugada, referendou o golpe —e essa noite durou mais de 20 anos. Velhos tempos.

Numa palavra, ministros do Supremo estão no centro dos acontecimentos por contingência histórica recente, não porque são vaidosos. Essa é uma crítica simplista. O que necessitamos, no contexto, é de pessoas corajosas que emitam opiniões. Contingencialmente podem (até) ser ministros do Supremo.

Jornal Português: como se fazia propaganda no país de Salazar - RTP Ensina

 


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Filmar atualidades para servir a ideologia do Estado Novo foi projeto de dois homens do regime. António Ferro e António Lopes Ribeiro acreditavam no poder da imagem. Salazar desconfiava, mas concedeu. E o país que se mostrava no cinema era quase ficção.

Em 1938 as sessões de cinema em Portugal abriam com as histórias de um país que vivia na realidade ficcionada pelo Estado Novo. A grande novela contada em episódios que continham informação manipulada, sempre favorável à ideologia do regime, durou 13 anos.

Antes da longa-metragem anunciada em cartaz, projetava-se o filme em que Salazar era o ator principal. Os portugueses assistiam sentados às cerimónias oficiais e a todas as festas que cimentassem tradições e valores nacionais. O resto do mundo mal aparecia no magazine, interessavam apenas eventos pró-regime, como o acolhimento de crianças austríacas ou a visita do General Franco, aliado do ditador português. Da segunda grande guerra nem se falava, “a imagem que querem passar no jornal é a de um país pacífico, pobre mas feliz e cheio de orgulho nas suas obras”, frisa na reportagem José Manuel Costa, diretor da Cinemateca Portuguesa, que recuperou e editou todas as edições do Jornal Português.

Organizações repressivas e de controlo do Estado Novo
EXPLICADOR

Organizações repressivas e de controlo do Estado Novo

O magazine de atualidades impulsionado por António Ferro, diretor do Secretariado de Propaganda Nacional, e produzido por António Lopes Ribeiro, cineasta do regime, foi um instrumento importante na difusão do fascismo. A indústria cinematográfica ao serviço da propaganda todavia não se desenvolveu porque Salazar, além de desconfiar da modernidade do cinema, dizia que era “demasiado caro”.

A peça que mostramos começa por recordar este país retratado pelo escritor José Cardoso Pires, em “Dinossauro Excelentíssimo”, uma fábula do tempo em que os animais falavam e os homens sufocavam.

TEMAS

Bruno Boghossian - Impasse em regulação de aplicativos vem de um mundo jurássico, FSP

 Lula não hesitou antes de incluir o assunto Uber na campanha eleitoral. O petista dizia com convicção que era preciso regulamentar o trabalho por aplicativo de motoristas e entregadores. "Tem que ter descanso semanal remunerado, jornada de trabalho, férias, senão ele voltou a ser escravo", afirmou, em abril de 2022.

O tema entrou no governo como prioridade. O Ministério do Trabalho criou um grupo para elaborar um projeto de lei, chamou empresas e ouviu trabalhadores. Houve tanta incerteza desde o início que foi preciso desmembrar a proposta. Em março, Lula assinou um texto que tratava só de motoristas de carros, deixando as motos para depois.

O projeto chegou ao Congresso há poucas semanas, mas há gente no governo decretando a morte da proposta. Alguns auxiliares de Lula dizem que não há votos para aprovar uma regulamentação ampla. Outros aliados argumentam que os petistas já haviam perdido o debate público antes do início das discussões.

O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, e o presidente Lula (PT) no anúncio do projeto de lei de regulamentação do trabalho dos motoristas de aplicativo - Pedro Ladeira/Folhapress

Reuniões sobre o tema nos últimos dias ficaram marcadas por uma tensão entre governistas com opiniões distintas sobre o mundo do trabalho. Num encontro, um petista disse ao ministro Luiz Marinho que era preciso respeitar opções do trabalhador e que não era possível ficar preso à lógica sindical que formou o PT.

A discussão tardia dentro do governo reflete um conflito entre a visão histórica de Marinho e a maneira como muitos trabalhadores enxergam a atividade. Os pontos mais vulneráveis da proposta seriam o pagamento por hora trabalhada e a determinação de pagamento de contribuição previdenciária —o que, para alguns motoristas, engessaria e aumentaria o custo da atividade.

Na campanha, Lula definiu bem o assunto como uma questão de dignidade desse trabalhador. Ele tem dificuldade para transformar a defesa numa ação política porque há uma ação organizada de oposição nesse segmento, mas também porque certos integrantes do governo ainda operam mais perto de princípios jurássicos do que da realidade atual.