No último 29 de março, esta Folha fez contundente editorial criticando o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal ("O palavrório de Gilmar"). Diz que o magistrado faz papel de comentarista político e que desfia opiniões sobre investigações. Segundo o editorial, Gilmar deveria exercitar a autocontenção.
A crítica é daquelas que, lida sem contexto, terá a aprovação de qualquer leitor. Porém, todo texto tem contexto. Para começar, a Folha poderia explicar por que demanda tanto por entrevistas de julgadores. Por acaso deixaria de publicar o que dizem ministros? Ou vai publicar apenas opiniões que coincidem com as do jornal?
Há que se fazer desleituras de falas, como diria Harold Bloom. O jornal exige autocontenção de Gilmar e do STF. Pois aqui é que reside o problema do contexto: tivesse a corte feito autocontenção quando dos ataques que sofreu, e da omissão do Ministério Público, e poderíamos ter perdido a democracia. Por deixar de lado a autocontenção, o Supremo, como razão última, lançou mão do seu regimento interno. E o resto da história conhecemos.
Ativismo da Suprema Corte? Uma desleitura, como em um palimpsesto, mostrará as múltiplas camadas escondidas da institucionalidade. Algumas, uma vez descascadas, mostrarão que, em momentos decisivos, a autocontenção seria —como já foi— destruidora. Pior: autodestruidora. O protagonismo de ministros e da corte foram decisivos na pandemia e no Brasil recente. Não deveria ser assim? Talvez não. Mas aconteceu, por ter sido necessário. E ainda bem, convenhamos.
Nessa desleitura, lembre-se que a Lei da Magistratura (Loman), invocada no editorial, é fruto da ditadura militar. A ditadura (cuja alvorada a Folha confessou ter apoiado) editou a lei para calar os magistrados. Cumprida à risca, a desejada autocontenção venceria. E o Brasil perderia.
Não há texto sem contexto. Há uma poluição semântica de palavras e ações. Descrições sobre o Brasil —que ainda cura as feridas da tentativa de golpe— podem ser confundidas com "palavrório". Ora, parafraseando o best-seller de Lionel Shriver ("Precisamos Falar sobre Kevin", o menino que matou 11 coleguinhas de escola), "precisamos falar sobre a tentativa de golpe no Brasil". Vamos dar o nome às coisas: acabamos de escapar de um golpe, não de um arrastão.
Ainda no contexto, deveríamos descobrir as razões pelas quais ainda precisamos do protagonismo do Supremo. Por que precisamos tanto de ministros com "palavrórios"?
Talvez a própria falta de editoriais de grandes veículos em momentos oportunos faz com que juízes da Suprema Corte, por adaptação darwiniana, produzam seus próprios "editoriais" —que por vezes pedem socorro à própria mídia. Da mesma forma que a mídia pede socorro ao Judiciário. Afinal, estamos falando da preservação da democracia. Ou só vale para um lado?
Decanos de Suprema Corte falam. Descrevem. Por vezes, prescrevem. Afinal, o que dizer diante de um twitter de um general que ameaça a corte? Esperar o editorial?
Contextos que explicam textos. O direito diz que o papel de um tribunal constitucional é o de fiador da democracia. Só que, no Brasil, existe gente querendo enforcar ministros. Quem defende a Suprema Corte?
Quando o ministro Gilmar diz que "derrotamos o autoritarismo" ou avalia como eficiente a investigação da polícia sobre o golpe, ele não age como comentarista político, como diz o editorial. Não. Ele apenas descreve, com densidade histórica, o estado da arte da recém-salva democracia. É disso que se trata.
Dado o que passamos, isso (até) é alvissareiro. Afinal, lá atrás, há 60 anos, tivemos presidente do STF que, chamado na madrugada, referendou o golpe —e essa noite durou mais de 20 anos. Velhos tempos.
Numa palavra, ministros do Supremo estão no centro dos acontecimentos por contingência histórica recente, não porque são vaidosos. Essa é uma crítica simplista. O que necessitamos, no contexto, é de pessoas corajosas que emitam opiniões. Contingencialmente podem (até) ser ministros do Supremo.
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