terça-feira, 5 de setembro de 2023

A desistência silenciosa é uma resposta saudável para trabalhos-bosta, João Pereira Coutinho - FSP (definitivo)

 Um dos sintomas de que um colapso nervoso se aproxima é a crença de que o trabalho que fazemos é terrivelmente importante. Assim falava Bertrand Russell.

Falava bem. Sempre que vejo alguém a falar do seu trabalho como se a humanidade dependesse dele, olho ao redor só para confirmar que os enfermeiros não estão chegando.

Mas que dizer de quem habita o outro extremo? Gente para quem o trabalho é nada e o entusiasmo que é dedicado ao assunto é nulo, ou quase nulo?

Carteira de trabalho - Gabriel Cabral/Folhapress

Não há dia em que não encontre na mídia a nova epidemia do momento: "quiet quitting". Traduzindo, desistência silenciosa.

Basicamente, consiste em fazer os mínimos olímpicos no trabalho, sem qualquer envolvimento —emocional, intelectual, pessoal— com a tarefa em questão. Sempre existiu? Certo. Mas, segundo um inquérito da Gallup divulgado pelo Wall Street Journal, a geração Z e os "millennials" praticam a arte com outro requinte.

Não são os únicos. Nos Estados Unidos, cerca de 50% dos trabalhadores são "quiet quitters" e o cenário só piorou com a pandemia. Sim, eles trabalham; mas trabalham como mortos-vivos, só o suficiente para se manterem à tona. Desconfio que o fenômeno não é um exclusivo americano.

As chefias das grandes empresas estão preocupadas. É natural: o entusiasmo zumbi é uma ameaça à produtividade.

Eu não estou preocupado. E chego a pensar que essa desistência silenciosa, longe de ser um sintoma de doença, é talvez um sintoma de sanidade.

Conheço os números. Nossos antepassados trabalhavam mais do que trabalhamos hoje. As condições em que o faziam —antes, durante ou depois da Revolução Industrial— eram incomparavelmente piores.

Mas nossos antepassados não tinham "bullshit jobs" (trabalhos-bosta). Tinham "shit jobs" (trabalhos de merda). Existe uma diferença e o saudoso David Graeber, no seu "Bullshit Jobs: A Theory", explica qual é. Recapitulemos, até porque já escrevi sobre Graeber e sua teoria para esta Folha.

Trabalhos de merda são mal pagos, mas são úteis (exemplo: se ninguém limpasse a sujeira das nossas cidades, o caos era imediato). Os trabalhos-bosta são bem pagos, mas sem sentido.

Para usar a definição cientificamente rigorosa de Graeber, um trabalho-bosta é uma forma de trabalho remunerada tão completamente inútil, desnecessária e perniciosa que nem mesmo o empregado parece acreditar na sua importância, embora se sinta obrigado a fingir o contrário.

Eis a tese de Graber: durante o último século, foram desaparecendo da paisagem os trabalhos no campo ou na indústria. Mas aumentaram de forma explosiva os trabalhos burocráticos e "administrativos" que, na maioria dos casos, nenhuma pessoa sã entende para que servem. Aliás, na teoria de Graeber, nem os próprios sabem.

A angústia psicológica que isso provoca deve ser imensa. A esse respeito, Graeber cita Dostoiévski e as suas "Memórias da Casa dos Mortos". Na prisão, escrevia o russo, você aguenta tudo. Até trabalhos forçados quando existe um sentido qualquer —construir uma ponte, uma casa, uma muralha.

Mas quando um presidiário é obrigado a transportar água de um balde para o outro, sem qualquer justificação, ele prefere a morte a tal sorte. Imaginar Sísifo feliz é coisa de filósofo.

O livro de Graeber continua a ser a melhor explicação para o tédio entre os trabalhadores de colarinho branco no pós-pandemia. Porque a pandemia, entre mil horrores, teve pelo menos essa virtude: obrigar o pessoal a parar e a pensar. Vale a pena sacrificar a vida no altar dos trabalhos-bosta quando a festa pode acabar de um momento para o outro?

Provavelmente, não vale.

Pode ser que a desistência silenciosa seja moda passageira. Mas, se não for, antevejo um impasse. Historicamente, e como lembra Jan Lucassen no seu excelente "The Story of Work", havia três formas de convencer o pessoal a trabalhar: pelo dinheiro, pela solidariedade e pelo chicote.

O chicote praticamente desapareceu no Ocidente. A solidariedade foi implodindo com o individualismo crescente das sociedades pós-modernas.

E, sobre o dinheiro, todos os estudos apontam no mesmo sentido: a geração Z e os "millennials" não dão tanta importância ao assunto como seus pais ou avós.

Comecei com Bertrand Russell. Acabo com ele. Em 1930, imaginando o futuro, Russell dizia que os avanços da tecnologia libertariam os seres humanos para trabalhos mais instigantes e vidas de maior sentido e fruição.

Mas, no fim das contas, foi Cyril Parkinson, o famoso autor da Lei de Parkinson, quem acertou no alvo: o trabalho fatalmente se expande para preencher o tempo disponível para a sua concretização.

Se a desistência silenciosa servir para enterrar a Lei de Parkinson e ressuscitar a proposta de Russell, nem tudo estará perdido.


João Pereira Coutinho - Submissão da arte à ideologia lembra períodos sombrios do século 20, FSP

 Pobre Salman Rushdie: o escritor, que sempre defendeu a liberdade de expressão, perdeu um dos olhos depois do ataque que sofreu em Nova York, às mãos de um fanático. Mas ainda lhe restou o segundo para testemunhar, com horror, o ato de censura que uma editora do Ocidente operou nos livros de Roald Dahl (1916–1990).

O escritor Salman Rushdie após atentato que lhe tirou a visão do olho direito, em foto postada no Twitter em 7/2/2023
O escritor Salman Rushdie, que perdeu a visão do olho direito, em foto postada no Twitter em 7/2/2023 - Twitter/Reprodução

"Censura", no contexto, é palavra branda. Aquilo é vandalismo cultural ao mais alto nível, digno do Talibã. Há frases inteiras que foram suprimidas e, ó beleza!, reescritas, só para não ofender a sensibilidade woke.

Tremo com o que o virá a seguir. Mas eu, se fosse o leitor, comprava uma passagem para Paris e visitava, sem mais demoras, a donzela pelada que Manet pintou em "Le Déjeuner sur l'Herbe". Se os dois homens que estão sentados com ela na grama estão bem abotoados, é uma questão de tempo até alguém pintar um vestido na senhora. Ou uma burca, talvez.

"Le Déjeuner sur l'Herbe", de Édouard Manet (1832-1883), no Museu d'Orsay, em Paris - Benoit Tessier - 4.abr.11/Reuters

O caso de Roald Dahl é apenas o exemplo extremo de uma tendência que se foi aprofundando nos últimos tempos: a negação radical da autonomia da arte e a instrumentalização do artista para fins políticos ou ideológicos. Que esse artista esteja morto há mais de 30 anos só confere um tempero macabro ao abuso.

É por isso que o livro de Jed Perl, um dos mais brilhantes críticos de arte americanos, é mais necessário que nunca. O título é "Authority and Freedom: A Defense of the Arts". É o melhor ensaio que li em 2023.

A autonomia da arte, por um lado, e a sua instrumentalização para fins políticos, por outro, foram oscilando nos últimos 150 anos.

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O primeiro quartel do século 20 apresentou-se como um território de experimentalismos vários, em que as inclinações políticas dos autores significavam muito pouco na avaliação das suas obras.

Como recorda Jed Perl, evocando a Greenwich Village de 1920, Kandinsky era um pintor revolucionário e Upton Sinclair era um escritor reacionário, independentemente das respectivas ideologias.

O mesmo poderia ser dito sobre os modernistas T.S. Eliot ou Ezra Pound, dois revolucionários da poesia que eram, para usar a fatal palavra, dois reacionários em política.

A Grande Depressão, a ascensão dos totalitarismos na Europa e a Segunda Guerra Mundial mudaram as regras do jogo: a arte passou a ser avaliada pela "causa" que apoiava, o que inevitavelmente levou à condenação de artes "degeneradas" ou "socialmente irresponsáveis" que não se submetessem à cartilha dos partidos. A revolução no mundo era mais importante que a revolução nas artes.

Depois da Segunda Guerra, e ainda segundo Perl, houve um alívio nessa obsessão programática. As peças de Beckett ou as esculturas de Giacometti marcavam um novo tempo onde a linguagem da arte procurava não se confundir com a linguagem da política, mesmo que as obras transportassem uma dimensão social ou filosófica importante e incontornável.

O crítico de arte norte-americano Jed Perl
O crítico de arte norte-americano Jed Perl - Reprodução

E hoje?

Hoje é o retorno aos momentos mais sombrios do século 20, com a submissão da arte a imperativos extra-artísticos.

É contra essa afronta que o ensaio de Jed Perl se insurge, lembrando o básico: o que define um escritor ou pintor ou compositor não é a "relevância" (grotesca palavra) da sua obra para as discussões histéricas das redes sociais.

A arte é, antes de tudo, a forma como um criador responde aos desafios da autoridade e da liberdade artísticas. É uma luta permanente, solitária, interior, entre ordem e impulso criativo: conhecendo a tradição da sua arte, até nas suas dimensões mais artesanais, um criador digno desse nome é aquele que prolonga ou refaz ou recria ou, no limite, recusa essa mesma tradição.

Esse bailado entre autoridade e liberdade não é um exclusivo de gênios como Rembrandt, Whitman ou Mozart. O mais humilde escritor, o mais humilde pintor, o mais humilde compositor não consegue escapar a este desafio: o domínio de uma linguagem artística que é sempre o domínio de um universo particular.

Na primorosa definição de Jed Perl, todas as representações de "Rei Lear" são uma exploração das possibilidades de "Rei Lear".

Quando esse confronto entre autoridade e liberdade não existe, também não existe uma obra de arte. Temos apenas obras "bem feitas", no sentido técnico ou académico da expressão: obras que se limitam a mimetizar a autoridade de um género, sem que a liberdade e a individualidade do artista se revelem.

Ou, em alternativa, quando só existe liberdade sem autoridade, temos obras informes e estéreis, porque a ausência de limites, ou até do conhecimento prévio desses limites, fez naufragar o criador em ruído e nada.

A essas duas modalidades, acrescento mais uma, em homenagem ao nosso tempo: a conversão da obra em panfleto, ou seja, a recusa trágica quer da autoridade, quer da liberdade.

Numa das melhores passagens do ensaio, Jed Perl relembra uma carta de Flannery O’Coonor em que a escritora, apesar de ser católica, criticava um romance declaradamente católico:

"[O livro] é apenas propaganda e ser propaganda para o lado dos anjos só piora as coisas. O romance é uma forma de arte e, quando você o usa para qualquer coisa além da arte, você o perverte".

E a sentença final, tão válida hoje como em 1956:

"A arte está totalmente preocupada com o material de que é feita; ela não tem um fim utilitário. Se você consegue usá-la com sucesso para fins sociais, religiosos ou outros, é porque você fez arte primeiro".