domingo, 17 de novembro de 2019

Janio de Freitas O novo valor do zero, FSP

Quem padece as políticas elitistas transfigura-se em arma de combate, e combate

Zero. É apenas um cisco de vergonha, não uma quantidade, que se encosta na verdade para estabelecer em 0,1% o crescimento econômico da América Latina neste ano, na mais recente estimativa da Cepal —a instituição mantida pela Organização das Nações Unidas para estudo da economia regional.
Zero de crescimento e, no entanto, excetuada a Venezuela, as classes altas não estiveram queixosas em nenhum país desta geografia do desemprego, das favelas, de vida com R$ 4,50 por dia, de morte pela falta de saneamento e violência sem limite. Da desigualdade e da injustiça como princípios básicos de cada país.
Não é preciso lembrar por que as classes altas não estiveram nem estão queixosas dessas políticas econômicas nacionais.
Jair Bolsonaro e Paulo Guedes não faltam com a já esperada contribuição ao divisionismo. O estudo da Cepal coincide com as atuais previsões daqui mesmo sobre o crescimento brasileiro neste ano.
Da campanha até à posse, os dois falavam em crescimento de 3%, e mesmo de 3,5% neste ano. O previsto está em 0,8%. A caminho da adesão às 17 economias, entre as 20 da região, já comprometidas com o ano de desaceleração. Mas as nossas classes altas não emitiram, até agora, nem a mais sussurrante insatisfação com algo do governo Bolsonaro. Bem ao contrário.
Os casos do Chile e da Bolívia são resumos perfeitos da América Latina. O Chile convulsionado seguia para crescer no ano quase 2%. Mas, fora as classes altas, os chilenos estão nas ruas, manifestando-se ou combatendo, por redução das usurpações e das opressões econômicas a que são submetidos.
Diz o noticiário que já são “mais de 25 mortos e mais de 200 com lesões nos olhos”. E, inerte, o que o governo Sebastián Piñera —um dos mais opulentos empresários do país— tem afinal a propor, “para a pacificação”, é um plebiscito em abril, daqui a cinco meses, sobre o tipo de Constituinte. É claro que pensa no esmorecimento da rebelião, para voltar ao que Paulo Guedes definiu como “paraíso chileno”. Explosivo, porém.
Recordista de golpes, país mais pobre do grupo latino-americano, embora seu território riquíssimo, a Bolívia enfim experimentou com Evo Morales quase 15 anos de estabilidade. Nesse período, o crescimento econômico, sem precedente, foi de 5% ao ano.
A pobreza, da ordem de 60% da população na posse de Morales, foi reduzida a quase 30%. As medidas de inclusão dos indígenas não se fizeram à custa dos abastados históricos, que não tiveram queixas econômicas.
O caudilhismo de que a direita brasileira acusa Evo Morales, por pretender o quarto mandato, não encontra justificativa no estilo que praticou, como o de seu decisivo companheiro de governo, o cientista e vice Álvaro García Linera.
A situação degenerou com os estímulos oposicionistas à rebelião de policiais, em resposta a decisões de governo contra a escandalosa corrupção da polícia. A campanha contrária à candidatura e logo à eleição da dupla prosperou com facilidade.
Mas o que precipitou a intervenção do comando militar na crise foi o chamado de Morales a uma nova eleição. Proposta que resolvia as acusações de fraude e dava outra oportunidade à oposição. Recusá-la seria desmoralizante. Aceitá-la? E se Morales ganhasse outra vez?
Melhor ativar os generais do que responder à proposta. Antes de acabar a semana, “mais de dez mortos”, centenas de feridos, convulsão instalada e uma falsa presidente apoiada pelo governo Bolsonaro, como o falso presidente venezuelano Juan Guaidó (Bolsonaro é adepto de falsas presidências).
Há, contudo, a inclusão da América Latina no recurso à violência urbana em progressão. Como na França dos coletes amarelos, na Espanha dos separatistas, no Equador do já derrotado Lenín Moreno, no “paraíso chileno”, na prosperidade interrompida da Bolívia, nos bravos de Hong Kong: quem padece as políticas elitistas transfigura-se em arma de combate, e combate. É parte da fase global de transformações, à qual o Brasil, até agora, não fugiu.

OPINIÃO ALEX S. LIMA Do desejo de ser cientista à 'fuga' da mão de obra, FSP

Insistir no Brasil pode ser o fim de uma carreira

Estamos acompanhando um desmanche na nossa principal agência de fomento de pesquisa do Brasil, o CNPq, a mesma que possibilitou o início da realização do meu sonho e de muitos outros jovens de se tornar um cientista. Os cortes de verbas das universidades federais, e a escassez de concursos para a contratação de docentes e pesquisadores, estão deixando toda a comunidade científica indignada. 
A formação de um cientista envolve aproximadamente 15 anos de investimento do Estado. Esse cenário de devastação limita as perspectivas de jovens cientistas. A não absorção deles pelo mercado de trabalho brasileiro, seja em empresas ou universidades, dificulta a sua contribuição e o retorno desse investimento estatal para a sociedade na forma de desenvolvimento da nossa educação, ciência e tecnologia
Alex S. Lima - Doutor em química pelo Instituto de Química da USP e pesquisador no Departamento de Química e Biologia Molecular da Universidade de Gotemburgo (Suécia)
O químico e pesquisador Alex S. Lima - Divulgação
A consequência direta desse descaso com a nossa ciência, que vinha crescendo e produzindo muitas coisas boas, é o colapso de pesquisas que estão diretamente ligadas ao bem-estar da população. 
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Todo o investimento na busca de curas para diferentes tipos de câncer, doenças neurodegenerativas, dores crônicas, pesquisas na área de energia e no aumento da produção de alimentos sem provocar desequilíbrio ambiental, dentre outras aplicações e avanços que a ciência nos traz, poderá ser perdido. 
A ciência atualmente é muito dinâmica, e um ano de congelamento pode levar muito tempo para sua recuperação. Outra consequência é o aumento das chamadas pseudociências, tais como os movimentos que acreditam que a terra é plana ou que vacinas não funcionam —filósofos de boteco influenciando milhares de pessoas, entre tantos outros absurdos que em um “mundo ideal” não seriam aceitos.
As informações sobre a situação da ciência no Brasil não estão restritas a nós. Frequentemente, os mais renomados jornais e revistas científicas internacionais veiculam artigos sobre a atual situação do nosso país. De certa forma, todos estão preocupados conosco, seja por interesses específicos ou por conhecerem o nosso potencial. A insistência de um jovem cientista em permanecer no Brasil pode custar o fim de sua carreira. É por isso que há um processo conhecido como “fuga de cérebros”, onde pessoas altamente qualificadas começam a migrar para outras nações em função da carência de posições no seu país de origem. 
É economicamente viável para esses países que recebem esses jovens, pois não precisam de nenhum investimento, apenas de posições para que possam usufruir de mão de obra altamente especializada. 
O Brasil investiu na minha formação durante 15 anos. Pagou meus estudos no exterior por pouco mais de um ano. Retornei para ser professor, montar um grupo de pesquisa e compartilhar o conhecimento que adquiri lá fora e aqui durante todos esses anos, mas as oportunidades no nosso país estão cada vez mais raras. Procurando alternativas, fui contratado na Suécia. 
Infelizmente, sou mais um jovem cientista que deixa o país para dar continuidade a um sonho iniciado na infância e viabilizado pelas agências de fomento à pesquisa brasileira. 
Fui, mas espero um dia voltar!
Alex S. Lima
Doutor em química pelo Instituto de Química da USP e pesquisador no Departamento de Química e Biologia Molecular da Universidade de Gotemburgo (Suécia)
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